29.12.07

"O maior drama da humanidade"

Por Rui Tavares
QUAL É O MAIOR DRAMA DA HUMANIDADE? A guerra, a fome, as doenças, a miséria, a ignorância, o fanatismo, a violência, as catástrofes ambientais, a indiferença pelo sofrimento dos outros? Não. O maior drama da humanidade, segundo o Cardeal-Patriarca de Lisboa, é o ateísmo.
O ateísmo é aquela opinião, hoje em dia trivial, de que a existência de Deus é altamente improvável ou mesmo impossível. Mas não é bizarro que, nos dias de hoje e com tanto por onde escolher, mesmo um cardeal designe tal ideia como “o maior drama da humanidade”? Aquele superlativo deixa implícito que qualquer outro drama, por grande que seja, é afinal menor do que o ateísmo, em toda e qualquer forma, desde todo o sempre. “Todas as formas de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade”, disse José Policarpo na homilia do Natal.

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O QUE EXPLICA QUE SE CONSIGA DIZER ISTO? Uma característica curiosa da linguagem religiosa que verificaremos através de um exemplo prático. Em princípio, concordaremos todos que a guerra causa mais devastação e sofrimento do que o ateísmo. Mas se por “guerra” entendermos um momento ou circunstância em que os homens “negam ou se esquecem de Deus”, logo a palavra “guerra” cabe dentro da definição de “ateísmo” do Cardeal. Assim será possível dizer que o “ateísmo” é o maior drama da humanidade, de que a guerra passou simplesmente a ser uma manifestação. E o mais fascinante é que isto pode incluir até as guerras religiosas.
Nesta redefinição, o Cardeal não quer dizer que ser ateu é pior do que matar alguém, mas que matar alguém é por definição uma forma de nos esquecermos de Deus e, por extensão, uma forma de ateísmo. Continua a ser absurdo, mas ao menos não é tão imoral.

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PORQUÊ ENTÃO O ATEÍSMO? Explicou o Cardeal: “Os diversos ateísmos, nas mais variadas expressões, tiveram origem neste reduzir a esperança humana à dimensão da história”, mas “nenhuma esperança deste mundo anula a esperança na vida eterna”. Contra esta ideia de que a “esperança na vida eterna” é mais virtuosa do que a vida que temos, poderíamos lembrar que os bombistas suicidas matam pessoas às centenas com base numa “esperança na vida eterna”. Mas não vale a pena. Isso seria apenas reeditar o debate inicial (o Cardeal poderia dizer que os fundamentalistas “se afastaram de Deus” e o terrorismo religioso seria redefinido como uma espécie de ateísmo inconsciente).
Alguém lembrará que José Policarpo falava apenas para os fiéis, a quem estas palavras despertam outros sentidos. Pode ser. Mas esse é um dos problemas de falar para dentro e, em particular, da “viragem europeia” que Bento XVI impôs no Vaticano. Para poder combater a irreligiosidade na Europa a prioridade passou a ser a doutrina, em detrimento dos problemas que realmente causam sofrimento à humanidade em todos os continentes. A estratégia é errada e, se os europeus virem a igreja mais preocupada com jogos de linguagem do que com o sofrimento real, acabará por agravar ambos os problemas. Mas ao menos explica porque vê o Cardeal como “maior drama da humanidade” aquilo que afinal é mais um drama da igreja europeia.
«Público» de 27 de Dezembro de 2007 - c.a.a.

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7 Comments:

Blogger pandacruel said...

Sim, aquele que foi professor de temática humana, a nível de ensino superior, teve uma saída infeliz, desastrosa: certamente que será o próprio a reconhecê-lo, mais cedo ou mais tarde. Lendo ou ouvindo o que disse Roma, por esses dias, percebe-se melhor - hierarquia, a quanto obrigas (e não devia ser assim, mas é-o, um pouco por toda a parte). Por outro lado, o ateismo militante também conduz a nada.

29 de dezembro de 2007 às 21:05  
Blogger Nortada said...

Acho uma tese interessante de que esteja no ateísmo a maior fonte de problemas da sociedade mundial.
O “bem” absoluto é algo que só pode ser concebido à luz de uma religião, espiritualidade à parte o bem absoluto é uma impossibilidade, poderei sempre imaginar que o bem de uns seja a desgraça de outros, da mesma forma que o nosso querido oxigénio é por certo um tão potente como inacreditável veneno para outras formas de vida algures no universo.
Se as nossas acções como vulgares cidadãos, profissionais ou políticos estivessem impregnadas dessa busca do bem absoluto, que afinal é génese da religiosidade, quantas injustiças seriam evitadas? Como seria o nosso equilíbrio social? Como seria o relacionamento entre as diferentes culturais no mundo? Haveriam guerras? Haveria fome?
É, sem dúvida, julgo que a tese lançada pelo Cardeal Patriarca merece mais alguma reflexão, como seria se os governados e governantes estivessem empenhados em ser o “bem”?

30 de dezembro de 2007 às 02:50  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Todas as religiões (pelo menos as principais) pregam a Paz e o Amor ao próximo. Porque será, então, que as grandes matanças são feitas em nome delas?

O que parece suceder é que só no início (quando as religiões nascem) é que os fiéis cumprem REALMENTE os requisitos apregoados.
Ao fim de algum tempo, os rituais passam a ser mais importantes do que os conteúdos das doutrinas.

Na «Carta a Guerra Junqueiro» («A Correspondência de Fradique Mendes») isso vem bem explicado.

Entra também a "sectarização", que leva a que religiões se sub-dividam em tendências:

Os cristãos dividiram-se (em católicos, protestantes, ortodoxos, etc); os muçulmanos fizeram o mesmo (em xiitas, sunitas, etc), e cada uma dessas tendências se odeia e se mata entre si.

30 de dezembro de 2007 às 10:38  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

A GUERRA JUNQUEIRO

Paris, Maio.

Meu Caro Amigo.

A sua carta transborda de ilusão poética. Supor, como V. candidamente supõe, que traspassando com versos (ainda mesmo seus, e mais rutilantes que as flechas de Apolo) a Igreja, o Padre, a Liturgia, as Sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos Mártires, se pode «desentulhar Deus da aluvião sacerdotal», e elevar o Povo (no Povo V. decerto inclui os conselheiros de Estado) a uma compreensão toda pura e abstracta da Religião — a uma religião que consista apenas numa Moral apoiada numa Fé — é ter da Religião, da sua essência e do seu objecto, uma sonhadora ideia de sonhador teimoso em sonhos!

Meu bom amigo, uma Religião a que se elimine o Ritual desaparece — porque as Religiões para os homens (com excepção dos raros Metafísicos, Moralistas e Místicos) não passa dum conjunto de Ritos, através dos quais cada povo procura estabelecer uma comunicação íntima com o seu Deus e obter dele favores. Este, só este, tem sido o fim de todos os cultos, desde o mais primitivo, do culto de Indra, até ao culto recente do coração de Maria, que tanto o escandaliza na sua paróquia—oh incorrigível beato do idealismo! Se V. o quer verificar historicamente, deixe Viana do Castelo, tome um bordão, e suba comigo por essa antiguidade fora até um sítio bem cultivado e bem regado que fica entre o rio Indo, as escarpas do Himalaia, e as areias dum grande deserto . Estamos aqui em Septa-Sindhou, no país das Sete Águas, no Vale Feliz, na terra dos Árias. No primeiro povoado em que pararmos, V. vê, sobre um outeiro, um altar de pedra coberto de musgo fresco: em cima brilha palidamente um fogo lento: e em torno perpassam homens, vestidos de linho, com os longos cabelos presos por um aro de ouro fino. São padres, meu amigo! São os primeiros capelães da Humanidade,—e cada um deles está, por esta quente alvorada de Maio, celebrando um rito da missa Ariana. Um limpa e desbasta a lenha que há-de nutrir o lume sagrado; outro pisa dentro dum almofariz, com pancadas que devem ressoar «como tambor de vitória», as ervas aromáticas que dão o Sômma; este, como um semeador, espalha grãos de aveia em volta da Ara; aquele, ao lado, espalmando as mãos ao Céu, entoa um cântico austero. Estes homens, meu amigo, estâo executando um Rito que encerra em si toda a Religião dos Árias, e que tem por objecto propiciar Indra—Indra, o Sol, o Fogo, a potência divina que pode encher de ruina e dor o coração do Ária, sorvendo a água das regas, queimando os pastos, desprendendo a pestilência das lagoas, tornando Septa-Sindhou mais estéril que o «coração do mau»; ou pode, derretendo as neves do Himalaia, e soltando com um golpe de fogo «a chuva que jaz no ventre das nuvens», restituir a água aos rios, a verdura aos prados, a salubridade às lagoas, a alegria e abundância à morada do Ária. Trata-se pois simplesmente de convencer Indra a que, sempre propício, derrame sobre Septa-Sindhou todos os favores que pode apetecer um povo rural e pastoral.

Não há aqui Metafisica, nem Ética—nem explicações sobre a natureza dos deuses, nem regras para a conduta dos homens. Há meramente uma Liturgia, uma totalidade de Ritos, que o Ária necessita observar para que Indra o atenda — uma vez que, pela experiência de gerações, se comprovou que Indra só o escutará, só concederá os beneficios rogados, quando em torno ao seu altar certos velhos, de certa casta, vestidos de linho cândido, lhe erguerem cânticos doces, lhe ofertarem libações, lhe amontoarem dons de fruta, mel e carne de anho. Sem dons, sem libações, sem cânticos, sem anho, Indra, amuado e sumido no fundo do Invisível e do Intangível, não descerá à Terra a derramar-se na sua bondade. E se vier de Viana do Castelo um Poeta tirar ao Ária o seu altar de musgo, o seu pau sacrossanto, o almofariz, o crivo e o vaso do Soma, o Ária ficará sem meios de propiciar o seu Deus, desatendido do seu Deus—e será na Terra como a criancinha que ninguém nutre e a que ninguém ampara os passos.

Esta religião primordial é o tipo absoluto e inalterável das Religiões, que todas por instinto repetem — e em que todas (apesar dos elementos estranhos de Teologia, de Metafísica, de Ética que lhe introduzem os espíritos superiores) terminam por se resumir com reverência. Em todos os climas, em todas as raças, ou divinizando as forças da Natureza, ou divinizando a Alma dos mortos, as Religiões, amigo meu, consistiram sempre praticamente num conjunto de práticas, pelas quais o homem simples procura alcançar da amizade de Deus os bens supremos da saúde, da força, da paz, da riqueza. E mesmo quando, já mais crente no esforço próprio, pede esses bens à higiene, à ordem, à lei e ao trabalho, ainda persiste nos ritos propiciadores para que Deus ajude o seu esforço.

O que V. observou em Septa-Sindhou poderá verificar igualmente, parando (antes de recolhermos a Viana, a beber esse vinho verde de Monção, que V. ditirambiza) na Antiguidade Clássica, em Atenas ou Roma, onde quiser, no momento de maior esplendor e cultura das civilizações greco-latinas. Se V. aí perguntar a um antigo, seja um oleiro de Suburra, seja o próprio Flamen Dialis, qual é o corpo de doutrinas e de conceitos morais que compõe a Religião,— ele sorrirá, sem o compreender. E responderá que a Religião consiste em paces deorum quaerere, em apaziguar os Deuses, em segurar a benevolência dos Deuses. Na ideia do antigo isso significa cumprir os ritos, as práticas, as fórmulas, que uma longa tradição demonstrou serem as únicas que conseguem fixar a atenção dos Deuses e exercer sobre eles persuasão ou sedução. E, nesse cerimonial, era indispensável não alterar nem o valor duma silaba na Prece, nem o valor dum gesto no sacrifício, porque doutro modo o Deus, não reconhecendo o Sacrifício da sua dilecção e a Prece do seu agrado, permanecia desatento e alheio; e a Religião falseava o seu fim supremo—influenciar o Deus. Pior ainda! Passava a ser a irreligião: e o Deus, vendo nessa omissão de liturgia uma falta de reverência, despedia logo das Alturas os dardos da sua cólera. A obliquidade das pregas na túnica do Sacrificador, um passo lançado à direita ou movido à esquerda, o cair lento das gotas da libação, o tamanho das achas do lume votivo, todos esses detalhes estavam prescritos imutavelmente pelos Rituais, e a sua exclusão ou a sua alteração constituíam impiedades. Constituíam verdadeiros crimes contra a pátria—porque atraíam sobre ela a indignação dos deuses. Quantas Legiões vencidas, quantas cidadelas derrubadas, porque o Pontífice deixara perder um grão de cinza da ara—ou porque Auruspice não arrancou lã bastante da cabeça do anho! Por isso Atenas castigava o Sacerdote que alterasse o cerimonial; e o senado depunha os Cônsules que cometiam um erro no sacrificio—fosse ele tão ligeiro como reter a ponta da toga sobre a cabeça, quando ela devia escorregar sobre o ombro. De sorte que V., em Roma, lançando ironias de ouro à Divindade, era talvez um grande e admirado Poeta Cómico: mas satirizando, como na Velhice do Padre Eterno a Liturgia e o Cerimonial, era um inimigo público, um traidor ao Estado, votado às masmorras do Tuliano.

E se, já farto destes tempos antigos, V. quiser volver aos nossos filosóficos dias, encontrará nas duas grandes Religiões do Ocidente e do Oriente, no Catolicismo e no Budismo, uma comprovação ainda mais saliente e mais viva de que a Religião consiste intrinsecamente de práticas, sobre as quais a Teologia e a Moral se sobrepuseram, sem as penetrarem, como um luxo intelectual, acessório e transitório—flores pregadas no altar pela imaginação ou pela virtude idealista. O Catolicismo (ninguém mais furiosamente o sabe do que V.) está hoje resumido a uma curta série de observâncias materiais:—e, todavia, nunca houve Religião dentro da qual a Inteligência erguesse mais vasta e alta estrutura de conceitos teológicos e morais. Esses conceitos, porém, obra de doutores e de místicos, nunca propriamente saíram das escolas e dos mosteiros—onde eram preciosa matéria de dialéctica ou de poesia; nunca penetraram nas multidões, para metodicamente governar os juizos ou conscientemente governar as acções. Reduzido a catecismos, a cartilhas, esse corpo de conceitos foi decorado pelo povo:— mas nunca o povo se persuadiu que tinha Religião, e que portanto agradava a Deus, servia a Deus, só por cumprir os dez mandamentos, fora de toda a prática e de toda a observância ritual E só decorou mesmo esses Dez Mandamentos, e as Obras de Misericórdia, e os outros preceitos morais do Catecismo, pela ideia de que esses versículos, recitados com os lábios, tinham, por uma virtude maravilhosa, o poder de atrair a atenção, a bem-querença e os favores do Senhor. Para servir a Deus, que é o meio de agradar a Deus, o essencial foi sempre ouvir missa, esfiar o rosário, jejuar, comungar, fazer promessas, dar túnicas aos santos, etc. Só por estes ritos, e não pelo cumprimento moral da lei moral, se propicia a Deus,— isto é, se alcançam dele os dons inestimáveis da saúde, da felicidade, da riqueza, da paz. O mesmo Céu e Inferno, sanção extra-terrestre da lei, nunca, na ideia do povo, se ganhava ou se evitava pela pontual obediência à lei. E talvez com razão, por isso mesmo que no Catolicismo o prémio e o castigo não são manifestações da justiça de Deus, mas da graça de Deus. Ora a Graça, no pensar dos simples, só se obtém pela constante e incansável prática dos preceitos—a missa, o jejum, a penitência, a comunhão, o rosário, a novena, a oferta, a promessa. De sorte que no catolicismo do Minhoto como na religião do Ária, em Septa-Sindhou como em Carrazeda de Ansiães, tudo se resume em propiciar Deus por meio de práticas que o cativem. Não há aqui Teologia, nem Moral. Há o acto do infinitamente fraco, querendo agradar ao infinitamente forte. E se V., para purificar este Catolicismo, eliminar o Padre, a estola, as galhetas e a água benta, todo o Rito e toda a Liturgia—o católico imediatamente abandonará uma Religião que não tem Igreja visível, e que não lhe oferece os meios simples e tangíveis de comunicar com Deus, de obter dele os bens transcendentes para a alma e os bens sensíveis para o corpo. O Catolicismo nesse instante terá acabado, milhões de seres terão perdido o seu Deus. A Igreja é o vaso de que Deus é o perfume. Igreja partida — Deus volatilizado.
Se tivéssemos tempo de ir à China ou a Ceilão, V. toparia com o mesmo fenómeno no Budismo. Dentro dessa Religião foi elaborada a mais alta das Metafisicas, a mais nobre das Morais: mas em todas as raças em que ele penetrou, nas bárbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no mandarinato chinês, ele consistiu sempre para as multidões em ritos, cerimónias, práticas—a mais conhecida das quais é o moinho de rezar. V. nunca lidou com este moinho? É lamentavelmente parecido com o moinho de café em todos os paises budistas V. o verá colocado nas ruas das cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando duas voltas à manivela, possa fazer chocalhar dentro as orações escritas e comunicar com o Buda, que por esse acto de cortesia transcendente «lhe ficará grato e lhe aumentará os seus bens».

Nem o Catolicismo, nem o Budismo, vão por este facto em decadência. Ao contrário! Estão no seu estado natural e normal de Religião. Uma Religião, quanto mais se materializa, mais se populariza — e portanto mais se diviniza. Não se espante! Quero dizer que, quanto mais se desembaraça dos seus elementos intelectuais de Teologia, de Moral, de Humanitarismo, etc., repelindo-os para as suas regiões naturais que são a Filosofia, a Ética e a Poesia, tanto mais coloca o povo face a face com o seu Deus, numa união directa e simples, tão fácil de realizar que, por um mero dobrar de joelhos, um mero balbuciar de Padre-Nossos, o homem absoluto que está no Céu vem ao encontro do homem transitório que está na Terra. Ora este encontro é o facto essencialmente divino da Religião. E quanto mais ele se materializa mais ela na realidade se diviniza.

V. porém dirá (e de facto o diz): «Tornemos essa comunicação puramente espiritual, e que, despida de toda a exterioridade litúrgica, ela seja apenas como o espírito humano, falando ao espírito divino». Mas para isso é necessário que venha o Milénio em que cada cavador de enxada seja um filósofo, um pensador. E quando esse Milénio detestável chegar, e cada tipóia de praça for governada por um Mallebranche, terá V. ainda de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina, uma nova humanidade feminina, fisiologicamente diferente da que hoje embeleza a Terra. Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual e moralmente como a que Jeová, com uma tão grande inspiração de artista, fez da costela de Adão,—haverá sempre ao lado dela, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.
Essa comunhão mística do Homem e de Deus, que V. quer, nunca poderá ser senão o privilégio duma élite espiritual, deploravelmente limitada. Para a vasta massa humana, em todos os tempos, pagã, budista, cristã, maometana, selvagem ou culta, a Religião terá sempre por fim, na sua essência, a súplica dos favores divinos e o afastamento da cólera divina; e, como instrumentação material para realizar estes objectos, o templo, o padre, o altar, os ofícios, a vestimenta, a imagem. Pergunte a qualquer mediano homem saído da turba, que não seja um filósofo, ou um moralista, ou um místico, o que é Religião. O inglês dirá:—«É ir ao serviço ao domingo, bem vestido, cantar hinos». O hindu dirá:—«É fazer poojah todos os dias e dar o tributo ao Mahadeo».
O africano dirá:
—«É oferecer ao Mulungu, a sua ração de farinha e óleo».

O minhoto dirá:
—«É ouvir missa, rezar as contas, jejuar a sexta-feira, comungar pela Páscoa».

E todos terão razão, grandemente! Porque o seu objecto, como seres religiosos, está todo em comunicar com Deus, e esses são os meios de comunicação que os seus respectivos estados de civilização e as respectivas liturgias que deles sairam, lhes fornecem. Voilà! Para V., está claro, e para outros espíritos de eleição, a Religião é outra coisa — como já era outra coisa em Atenas para Sócrates e em Roma para Séneca. Mas as multidões humanas não são compostas de Sócrates e de Sénecas — bem felizmente para elas, e para os que as governam, incluindo V. que as pretende governar!
De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples há modos de ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de exterioridades rituais. Um presenciei eu, deliciosamente puro e íntimo. Foi nas margens do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vésperas de entrar em guerra com um chefe vizinho, comunicar com o seu Deus, com o seu Mulungu (que era, como sempre, um seu avô divinizado) . O recado ou pedido, porém, que desejava mandar à sua Divindade, não se podia transmitir através dos Feiticeiros e do seu cerimonial, tão graves e confidenciais matérias continha... Que faz Lubenga? Grita por um escravo: dá-lhe o recado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escravo tudo compreendera, tudo retivera: e imediatamente arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada tranquilamente— «parte»! A alma do escravo lá foi, como uma carta lacrada e selada, direita para o Céu, ao Mulungu. Mas daí a instantes o chefe, bate uma palmada aflita na testa, chama à pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rápidas palavras, agarra o machado, separa-lhe a cabeça, e berra:— «Vai!»

Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungu... O segundo escravo era um pós-escrito...
Esta maneira simples de comunicar com Deus deve regozijar o seu coração.

Amigo do dito.— FRADIQUE.

30 de dezembro de 2007 às 10:47  
Blogger Sepúlveda said...

É simples. A fé é um dos caminhos para começar a amar o próximo, que é aquilo que é mais importante de tudo o que a igreja diz. Partindo do princípio (errado, quanto a mim) que não sendo ateu se cumpre mais com esta lei do amor, menos mal haverá. Os problemas que surgem de pessoas "más" seriam menores com mais crentes. Imagino que fosse algo parecido com isto que ele tivesse em mente. É claro que é uma visão simplista da complexidade da sociedade humana.
(Mesmo assim, parece-me que é uma daquelas afirmações que são ridicularizáveis devido a serem tiradas do contexto.)

"Porque será, então, que as grandes matanças são feitas em nome delas?"
Porque apesar de serem minorias as que entram nessas matanças, esses actos são muito conhecidos e alguém os faz parecer a regra geral quando até são mais excepção do que se pensa.

"cada uma dessas tendências se odeia e se mata entre si" em alguns lugares bem conhecidos. As áreas onde isso não acontece são bem mais vastas.

30 de dezembro de 2007 às 16:31  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

O ser humano tem necessidade de canalizar a sua agressividade, o que faz pertencendo a um "grupo" hostilizando "outro".

Para isso, qualquer "grupo" serve, desde que forneça uma identidade bem definida, que permita opor-se a outro, equivalente.

É esse o fenómeno que lança adeptos de um clube (ou de um partido) contra outros;
se necessário, dentro do mesmo clube as claques combatem-se, o mesmo sucedendo dentro dos partidos.

As religiões fornecem essa mesma possibilidade, com a "vantagem" de que cada facção em confronto julga ter, em seu apoio, o "seu deus".

30 de dezembro de 2007 às 16:43  
Blogger pandacruel said...

Temos dificuldade, hoje em dia e em tempo de paz, em aceitar as sentenças universais: só de pensar nas presumíveis paisagens que nos esperam a milhares de anos-luz, nos ambientes totalmente inóspitos, muito para além do inferno que a Idade Média pintou nos altares, contíguo ao céu; enfim, ao deixarmos ir a mente para esses campos imensos, ficamos logo na conta do recado: qualquer doutrina vale o que vale, no seu tempo, no lugar da tribunícia que lhe venha a competir - porém, o mistério continua a arrasar. Agarro-me, nestes casos, ao sol, bem longe de mim, por favor, sempre a muita distância, para que assim me continuem a chegar os seus raios brandos e indispensáveis à vida.

30 de dezembro de 2007 às 18:32  

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