31.12.14

Saudades da Vitória

Por Maria Filomena Mónica
TENHO DE ME LEVANTAR, a fim de, nos dias difíceis que atravesso, arranjar a árvore de Natal, mas vou adiando a tarefa. A Vitória, de seu nome completo Maria Vitória Lopes Nunes, teria resolvido o problema. Era ela quem mais gostava desta quadra. Chegara a casa dos meus pais em 1953, através de um padre, que mencionara à minha mãe uma família, cujo chefe morrera tuberculoso, tendo deixado a mulher e os filhos em situação precária. Recrutou-a logo. O estatuto da Vitória era ambíguo: comia à mesa connosco, dormia no quarto da minha irmã mais nova, então um bébé, e mandava nas «criadas de servir».
Foi-nos dito, a mim e à minha irmã Isabel, ser uma mademoiselle, equiparável às francesas que os nossos amigos tinham em casa, e que, como tal, deveria ser tratada. Não andava fardada e tratava-nos pelo nome próprio. Tão pouco cozinhava: competia-lhe tão só «destinar» os almoços e os jantares, fazendo, quando lhe apetecia, alguns doces. No Natal, esmerava-se no que considerávamos a sua obra-prima, um bolo de castanha coberto a chocolate preto. Mais tarde, foi-lhe atribuída uma função peculiar, a de vigiar o meu comportamento no que dizia respeito a namorados. Não sendo parva, a minha mãe reparara não ser eu feita da mesma massa da irmã que me seguia. Na Isabel, tinha a certeza de poder confiar; comigo, o caso era diferente. Nessa época, os meus conflitos com a Vitória estiveram sempre relacionados com o meu comportamento «imoral» – estar de mão dada com namorados – coisa que, mal chegasse a casa, tinha obrigação de relatar à patroa. Nessa altura, detestava-a.
Quando a minha irmã mais nova se casou, a minha mãe «ofereceu-lhe» a Vitória. A coisa chocou-me, mas percebi que ficara radiante: agora, era ela quem mandava. Foi o melhor período da sua vida, até porque, a certa altura, passou a existir uma criança que educou o melhor que podia e sabia. Tinha as suas preferências, entre as quais os meus filhos, mas estava sempre à mão para aquilo de que a família carecesse. Todos dependíamos dela, não só para os grandes, mas para os pequenos favores: tirar nódoas difíceis, fazer um bolo, cozer uma bainha. Passei então a conversar muito com ela. Quando, após a sua morte em Dezembro de 2002, o sacerdote perguntou, na capelinha do Convento de Jesus, quem eram os familiares da «falecida», além de uma irmã, uma cunhada e uma prima, foram os «seus» meninos a levantar-se.
Eram outros tempos: bons para famílias como a minha, mas opressores para os humildes. A disponibilidade da Vitória teve um custo elevado: a anulação da sua vida pessoal. Chegou a ter um capitão como namorado, coisa de que, na nossa maldade inconsciente, eu e a Isabel fizemos troça: gostar de magalas era coisa de criadas. Desde o dia em que transpôs a porta da nossa casa, quase deixou de frequentar os parentes. A minha família considerava-a pouco inteligente, o que se não coadunava com as funções que, a certa altura, passou a desempenhar (secretária do meu pai), nem com o sentido de humor que possuía. Foi pouco o que por ela fizemos.
«Expresso» de 20 Dez 14

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7 Comments:

Blogger Manuel Tiago said...

Caro Carlos Medina Ribeiro
Eu sei que tem por norma não enviar certos comentários aos autores dos posts
Peço-lhe, contudo, que abra aqui uma exceção.
Desde há muito que tenho a Mónica muito bem "catalogada" na minha mente.
São os anos de Oxford ou Cambridge sempre a virem à tona, são as descrições das idas para a Praia das Maçãs com os Papás, em que estes metiam no carro os filhos, os animais, em que se incluía a gaiola do pássaro e finalmente, as criadas (sic), etc., etc..
Para quê perder mais tempo a caracterizar a personagem?
Eis que, de repente, e sem nada que o fizesse esperar,surge a divisão nas criadas.
Explicando, surge a Maria Vitória Lopes Nunes, personagem multifunções, de secretária do Papá a vigilante de comportamentos sexuais, sendo mesmo, a dada altura, "oferecida" à irmã mais nova.
A prosa é toda um nojo.
A dúvida que me assalta é a seguinte: quando iam no carro para a Praia das Maçãs, a Maria Vitória Lopes Nunes, entrava no carro antes das criada e antes dos animais, ou entre estes e as criadas?
Peço a sua ajuda.

1 de janeiro de 2015 às 12:38  
Blogger 500 said...

Sim, um bocado para o pedante.

1 de janeiro de 2015 às 18:33  
Blogger brites said...


as pérolas da casa dos horrores.
as empregadas domésticas do antigamente são as escravas que ficaram no anonimato, porque todas as famílias com algum poder financeiro as tinham e tratavam muito mal.
gente de direita, esquerda ou do meio acarreta esse pecado sem remorsos.
sabem o que era a tortura da estátua? pois bem , a escrava ficava encostada à parede na melhor das hi+óteses, até os patrões e filhos regressarem das saídas nocturnas... não podiam adormecer, porque caíam!no dia seguinte não havia compensações. à hora toca a cumprir as habituais obrigações! muitas dessas escravas da Granja me confidenciaram cenas de terror.
no Interior do país,imaginem!


2 de janeiro de 2015 às 11:48  
Blogger SLGS said...

500, um bocado? Um bocado é muito pouco.

2 de janeiro de 2015 às 16:27  
Blogger Plácido said...

Faz-me lembrar a tia Jonet, a debitar conselhos de parcimónia aos destinatários das suas caridades, ou a da Comporta, a enxotar as moscas para brincar aos pobrezinhos.

Gente repugnante, para sermos educados...

2 de janeiro de 2015 às 19:47  
Blogger msd said...

Ó gentinha pequena das caixas de comentários, a tristeza que é ler e não perceber

12 de janeiro de 2015 às 16:18  
Anonymous Anónimo said...

Gosto da Maria Filomena Mónica. É uma mulher bonita, inteligente e frontal, talvez, por isso tão polémica.
Reconhecer e falar sobre a vida que teve, analisar a realidade e criticar os costumes da época, desde quando é pedantice? Não será, antes, uma forma de obrigar os leitores a debruçarem-se sobre um período do país que não se quer de volta?
Desde quando ser verdadeiro é pedantismo? Ou será que para alguns, só podem ter voz os que tiveram uma vida dura...

23 de setembro de 2015 às 17:04  

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