17.5.19

Recôndita Harmonia

Por Joaquim Letria
Nunca perdi o gosto muito particular pela Rádio, não só o de trabalhar nela, de que tenho muitas saudades, mas também de a ouvir. Todos os dias, pela manhã cedo, ou à noite, antes de dormir, tenho o hábito de ouvir Rádio, por muito mal que ela possa ser feita – e é – por as vozes não serem adequadas, pela montagem ser descuidada e sem gosto, por não haver regularmente a identificação de estação – o que nos leva muitas vezes a estar a escutar não sabemos quem nem o quê, nesta Rádio dos nossos dias.
A Rádio continua a ser para mim, eu que trabalhei em todos os meios de comunicação social, uma grande paixão repartida com o sortilégio do anonimato e velocidade das agências de notícias. Mas se tivermos paciência, soubermos procurar e houver bons profissionais – e há – vale a pena ligarmos o receptor e fecharmos os olhos para escutar.
Tenho uma aparelhagem topo de gama em que podia ouvir Rádio, mas só a utilizo para escutar CDs ou estações mundiais via internet. Prefiro, no entanto escutar a Rádio de que gosto através de pequenos transístores que tenho espalhados pela casa e através dos quais ouço emissões boas e más, quase como dantes em onda curta se ouvia a BBC ou a Rádio Moscovo. Foi num desses pequenos transístores que a Antena 2 (“A Rádio que Toca”, como eles dizem ) me deu a ouvir uma emissão dum programa da saudosa Maria Helena de Freitas, numa actual emissão dum programa de memória. E foi assim que de olhos cerrados ouvi aquela ilustre senhora contar-nos o libreto da Tosca, recordar-nos Puccinni e falar-nos dos intérpretes que eram Montserrá Caballé e José Carreras e explicar-nos o significado da maravilhosa ária Recôndita Harmonia saída do génio de Puccinni.
Verdade que a TV (através do Mezzo e do Intermezzo) nos oferecem jóias musicais. Mas infelizmente, pelo desfasamento dos tempos e dos meios técnicos que havia e há, nem sempre podem fazer aquilo que Maria Helena de Freitas fazia e a Antena 2 faz, e que é animarem a nossa memória e enriquecerem o nosso conhecimento.
A memória rica da Antena2 assenta no espólio da antiga Emissora Nacional que nos punha a ouvir música e teatro radiofónico da maior qualidade. Que saudades eu tenho da beleza e do conhecimento que aqueles programas nos transmitiam. Que bom e que saudades de ouvir representar Cármen Dolores e escutar Raul de Carvalho a contracenar com Eurico Braga, a música de Luis de Freitas Branco, o emocionante concurso internacional de piano Viana da Mota, transmitido em directo ao longo de três dias, a Callas a cantar em São Carlos, os comentários de Maria Helena de Freitas, de Francine Benoit e de João de Freitas Branco e a vozes únicas e irrepetíveis de D. João da Câmara e de Maria Leonor. Uma saudade tão grande como a sentida por David Mourão Ferreira, Vitorino Nemésio, João Vilarett, Amália Rodrigues, António Pedro e Homem de Melo que nos apareciam na RTP. Tudo isso veio ao de cima com aquela Recôndita Harmonia, sem razão nenhuma para assim acontecer, a não ser pelo sortilégio em que a Rádio é capaz de nos mergulhar.
Publicado no Minho Digital

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2 Comments:

Blogger Dulce Oliveira said...

A rádio, sobretudo a Emissora 2, foram durante muitos anos minha assídua companhia. Estudava ao som dessa estação de rádio e foi por seu intermédio que ganhei a paixão pela musica sinfónica e pelo jazz. Continuo a ouvir a Antena 2 sobretudo quando me desloco de carro.

17 de maio de 2019 às 15:10  
Blogger José Batista said...

Não sei se a não identificação frequente da estação emissora terá que ver com a tecnologia actual: cá em casa, nos velhos aparelhos, podemos, eventualmente, não saber que estação sintonizamos, mas no (nosso) carro, por exemplo, o visor indica a estação que se ouve, assim como o tema das músicas que passam e os autores...

19 de maio de 2019 às 19:22  

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