Grande Angular - Mais uma oportunidade perdida
Por António Barreto
Como nunca, nestes cinquenta anos, as eleições e a campanha do ano corrente foram tão dirigidas para o “chefe”, o “líder”, o “cabeça” e o “primeiro”. Quase nada se sabe sobre a equipa, os colaboradores e os grupos de apoio. Pouco se conhece sobre as instituições, empresas, associações e outros grupos que se sentem mobilizados e empenhados. Mal se percebem as ideias e os programas que cada um deseja ou diz desejar para o seu país. Apenas se sabe que querem o poder. Conquistar o poder. As arruadas são procissões tristonhas de gente, por vezes paga, que seguem o que vai à frente. Só ele (ou ela) conta, só ele (ou ela) se vê, só ele (ou ela) fala, só ele (ou ela) distribui brindes e só ele (ou ela) dá entrevista. Os comícios, cada vez menos, organizam-se à volta dele (ou dela) que, no fim, dá entrevista breve às televisões, geralmente rodeado de múmias sinistras e apagadas, mesmo quando se trata de deputados e ministros. Os principais “eventos” eleitorais são almoços e jantares de carne assada, antes dos quais ele (ou ela), rodeado de carantonhas ou fantoches, desfila uns rápidos lugares-comuns. Antes dessas romarias, crucial é o debate na televisão. Entre eles (ou elas), de modo automático e programado, parecem bonecos articulados. Porque, na verdade, o que interessa são as avaliações, com notas e tudo, de dezenas de comentadores que, quase sem excepção, favorecem os seus amigos com ar sabedor e arrasam os outros com ar de desprezo.
É verdade que a eleição política sempre foi, sempre será, um acto de reconhecimento e identificação, para o qual a personalidade e o carácter do “líder” são essenciais. Mas que, excepto quando se trata de um “herói”, mesmo assim exige uma equipa, um programa, uma energia especial, uma preocupação fundamental, umas ideias sobre o que importa fazer e umas certezas sobre grandes princípios.
O desvio dos debates políticos para as contas e os impostos de cada um, para os favores prestados e as influências vendidas por cada um, é revelador disso mesmo: do esvaziamento político das eleições e da pasteurização cultural da democracia. O importante é cada vez mais o favor que se fez, a cunha que se meteu, o imposto que se evitou, o amigo que se promoveu, as influências que se exercem e os lugares que se preenchem.
Debates e discussões entre partidos e candidatos andam apenas à volta de um tema libidinoso: como se conquista o poder, quem o guarda, como se divide, quem o quer e quem fica sem ele.
Os protagonistas das eleições actuais são quase todos bem-talhados e adequados aos tempos que correm. E característicos das eleições que temos. O Chega, uma fabulosa energia de claque de futebol feita de fanatismo e de reflexos condicionados. O PSD (ou a AD), uma eficaz e sub-reptícia máquina de influências, o mais capaz de confundir clientes com eleitores. O PS, um sindicato desnorteado e sem destino, que parece ter negado o futuro, quando apenas queria esquecer o passado. A IL, de uma pureza impecável, a caminho da beatitude. O PCP, nervoso e tenaz à procura de não desaparecer da história. O Bloco, já sem graça, com o seu ar de superioridade das avenidas, de mãos nos bolsos e dogma bem oleado. O Livre, um neófito envelhecido, aparentemente imprescindível. O PAN, que quanto mais conhece os animais, mais gosta da política.
Que pensam estes nossos partidos, candidatos a mandar em Portugal e em nós todos, do destino da Europa, periclitante como nunca, ameaçada pela Rússia, marginalizada pela América, cobiçada por África e pelo Islão e desprezada pela China?
Que pretendem eles fazer com a Justiça portuguesa, cada vez mais desorganizada e injusta?
Que se preparam realmente para fazer com os grandes serviços públicos ou as grandes empresas nacionais, umas miseravelmente vendidas, outras estranhamente desmanteladas, outras ainda entregues aos mais desvairados traficantes de influências?
O Estado português, já agora a nação portuguesa, ou o país e a sua população, se quiserem, raramente estiveram tão dependentes, tão frágeis, tão vulneráveis como hoje. Quem o diz é designado por céptico e pessimista, fanático do “bota-abaixo” e descrente da pátria. Mas é garantido que esse tem mais razão do que uma mão cheia de burocratas, de “influenciadores” e de caciques. Quem se ocupa realmente dos caminhos de ferro, dos portos, do mar e dos rios? Quem está de facto a tratar dos aeroportos e da companhia de aviões? Quem se encarrega com força e solidez da energia do futuro? Quem vai tentar voltar a dar um módico de dignidade e de autonomia, ou de afirmação do interesse nacional, nas telecomunicações, na produção e na distribuição de energia? Quem vai tentar reconstruir ou construir alternativas autónomas à energia, às telecomunicações, aos cimentos, às celuloses, à madeira, à metalurgia e a outros sectores que demonstravam, pelo menos parcialmente, alguma solidez?
Para além do miserável oportunismo de última hora, que entendem fazer para elaborar, pôr em prática políticas de população e de imigração necessárias para a economia, dignas de uma nação antiga e orgulhosa, próprias de uma cultura, crentes nos direitos humanos, guardadoras das liberdades e respeitadoras do sentido de humanidade?
Para além de distribuir subsídios, ratear subvenções, fornecer descontos e isentar de impostos, alguém tem um plano, um projecto, uma intenção, uma ideia de como se cria riqueza, como se reforça a economia, como se formam gerações de profissionais, como se criam cientistas, como se dá liberdade a empresários?
É ou não verdade que a vida urbana, nas grandes cidades portuguesas, se deteriorou muito nos últimos anos, talvez últimas décadas? Que a situação na saúde e nos serviços públicos decaiu significativamente? Que o funcionamento da Justiça se danificou, parece que sem emenda? Que as oportunidades para os jovens diminuíram? Que o tráfico de pessoas e de trabalhadores aumentou sem controlo nem limites? Que os transportes públicos, sobretudo citadinos, se transformam em zona de perigo e incómodo? Que os riscos de cair na pobreza não diminuem? Alguém é capaz de negar, factos e números na mão, este declínio, este progresso adiado? Se assim é, por que razão os partidos e os candidatos não se sentem mobilizados para abandonar o “cliché” banal e o palavreado automático e para se sentirem empenhados em dar e procurar o melhor? O mais sensível? O mais sério? O mais sólido? Em vez do mais ligeiro, o mais fátuo, o mais ilusório e o mais enganador?
Há quem não confesse, nem sob tortura, em quem vai votar. É compreensível: não quer ser culpado.
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Público, 10.5.2025
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