Grande Angular - Servir o povo
Por António Barreto
A expressão em título tem vida longa e significado variado. De Mao Tsé-Tung a Mário Soares, de partidos marxistas latino-americanos, asiáticos e escandinavos a radicais italianos, muitos foram os que utilizaram esta expressão como lema e bandeira, identidade e profissão de fé. Por vezes, por timidez semântica, a expressão é adaptada e transformada em Servir os portugueses ou Servir Portugal. Ou Servir o País, na versão mais laica. E pode bem dizer-se que, apesar do lirismo ingénuo e mau grado o cinismo provável, a verdade é que é uma bela expressão. Servir o Povo! É difícil encontrar desígnio mais nobre. Por isso, tantos políticos, militares, sacerdotes e intelectuais recorrem a este lema.
Modernamente, uma das melhores maneiras de realizar esse desígnio, será certamente a de organizar e manter vivos os serviços públicos. Estes são de toda a espécie, da saúde à educação, dos transportes à energia, da água corrente às telecomunicações, da assistência jurídica à informação e a tantas outras áreas de actividade. Organizar serviços públicos e mantê-los em funcionamento, eis a obrigação das entidades públicas. Ter direito é uma coisa. Faz parte do catálogo constitucional. Formalmente, entre nós, o direito está generosamente definido. Pior é a sua concretização. O acesso à saúde, por exemplo, está contrariado pela mediocridade dos serviços. O acesso à educação também está condicionado pela falta de qualidade dos serviços de instrução e formação. O direito à informação está tantas vezes limitado pela ausência de transparência. O direito a uma velhice digna também pode estar em causa por serviços medíocres. Em poucas palavras, os serviços públicos, a sua qualidade, a sua eficiência e a sua humanidade são condição para respeitar os direitos dos cidadãos. São meio essencial para servir o povo.
É neste domínio que o Estado português tem faltado e a situação se agrava dia após dia. É aqui que a política tem falhado. É no domínio dos serviços que a democracia mais tem desapontado os cidadãos. É por causa deste défice crescente que estes mais descrêem da democracia e dos democratas. É nestas condições que a abstenção política e o desinteresse são enormes. Todos os dias, a democracia se perde nas filas de espera, nos quilómetros de maus transportes, nos casos de justiça adiados, nos doentes desacompanhados, nos idosos desprotegidos, nos telefonemas sem resposta, nos meses e anos à espera de cirurgia, consulta ou exame.
Nos transportes públicos, dos autocarros aos eléctricos e dos comboios aos metropolitanos, os atrasos, a insuficiência, a miséria, os encontrões, as enchentes, o desconforto, a falta de higiene, a chuva, o calor e a insegurança são crescentes. Quem dirige e quem ordena não sabe o que é o drama quotidiano de milhões de pessoas às horas de ponta, nos longos percursos para o trabalho e para casa e nas idas às escolas com as crianças. As duas a três horas de transporte público por dia deveriam obrigar qualquer autarca ou político a ir ver e a parar para pensar.
Nos serviços do Estado, nas escolas, na segurança social, nos hospitais e nos centros de saúde, as horas de espera em fila, o incómodo e o desconforto de quem tem de esperar são dos factos mais opressivos da nossa sociedade. Em vários serviços, é necessário sofrer longas esperas, desde as primeiras horas da madrugada, não para ser atendido, não para tratar, mas sim para obter uma senha que dará, ou não, direito a ser recebido umas horas ou uns dias depois. Ou tirar um “ticket” que pode negociar.
Os serviços de imigração são belos retratos do modo como tratamos dos outros e de nós próprios. As filas de desespero e opressão, as noites de frio e de desconforto, a violência de tantas dessas situações, o aproveitamento da pobreza e da necessidade dos outros, fazem parte do nosso pior retrato.
Os chamados “serviços públicos” (como se os outros também não fossem…) de água, electricidade, gás, telefone e esgoto, além de vagarosos e de tão fraca qualidade em tantos locais do país, nos centros como nas periferias, comportam-se diante dos cidadãos da maneira mais déspota que se imagina. Mudam os preços sem aviso. Multiplicam-se em documentos incompreensíveis a fim de se poder defender em tribunal. Exploram os consumidores, sobretudo os mais fracos e sem meios de defesa, com desplante e soberba.
Na segurança social e nos serviços sociais de toda a espécie, sobretudo os que se ocupam dos doentes e dos idosos, as filas de espera, o silêncio, os telefones mudos, os “sites” paralisados e as tenebrosas respostas gravadas com que milhões, sem esperança, são atendidos, resultam da falta de humanidade de serviços que dela deveriam fazer a sua marca principal. Parece só não haver maus tratos e má resposta nos serviços inexistentes de apoio aos idosos, aos doentes terminais, aos inválidos, aos deficientes e aos doentes crónicos.
Na justiça, que também pode ser considerada serviço público, são proverbiais os adiamentos, as deslocações inúteis, as esperas e as prescrições por falta de despacho. É um dos sectores da vida social onde pior se trata o cidadão, com destempero e soberba, com distância e secura, sem desculpa nem justificação.
A vida política e a administração pública têm seguido uma evolução desastrada. Contentam-se com a formulação de ideais e de leis generosas, com a elaboração de planos e estratégias, com o recrutamento de funcionários, com o aumento dos orçamentos, com a capacidade eleitoral e demagógica de tais realizações, mas não prestam atenção à qualidade dos serviços, à vida de pessoas e famílias, às necessidades especiais de tanta gente e aos mais desfavorecidos.
Que se passou, que se tem passado, entre nós, nas últimas décadas? Criaram-se serviços de toda a espécie. Contratou-se pessoal. Compraram-se edifícios, computadores e equipamento. Fizeram-se leis e regulamentos. Mas foram vários os governos, várias as administrações, vários os partidos (sobretudo o PS e o PSD) que descuidaram, que se revelaram desleixados, que não se importaram, que se satisfizeram com a existência formal e burocrática das leis e das instituições. Mas a verdade é que os serviços de saúde, de educação, de idosos, de transporte, de segurança social, de protecção e segurança, todos esses serviços públicos estão em dificuldade e em declínio. Os governos não souberam manter a atenção, prever a demografia, cuidar das consequências do turismo e da imigração, prevenir a emigração, orientar o crescimento urbano e cuidar dos transportes. Quem assim trata os serviços públicos não serve o povo.
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Público, 14.6.2025
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