8.10.06

Um dilema (*)

"Estou tão convencido de que o senhor não me vai dar esta obra que até aposto consigo cem mil euros".
Dizendo isto, o homem reclinou-se para trás, rasgou um sorriso e semicerrou um olhar inquisidor. Nos segundos que se seguem, o silêncio atento e grave do seu interlocutor irá desfazer-se: o senhor director sabe que tem, para responder, não mais de quinze segundos, mas quinze segundos que lhe irão marcar a vida inteira. Se explode em indignação e promete denunciar o corruptor, depressa ganhará a fama de "moralista"- e, com ela, duas quase certezas: a de não mais dispor de oportunidade semelhante e a de ter a carreira regularmente boicotada pelo consenso de todos os corruptores. Se pactua, nunca mais a sua incorruptibilidade será levada a sério e sempre este episódio lhe será lembrado, em ameaça. Ao sentar-se para esta reunião, o senhor director era um homem probo, mas também nunca a vida o testara. Agora - e quando os quinze segundos já lá vão - pouco importa, na circunstância ficcionada, saber qual vai ser a sua resposta.
Importa, sim, ajudá-lo a escolher bem. Haverá sempre quem lhe teorize a corrupção com sedutora ligeireza. Dizendo, por exemplo, que a corrupção é um modelo alternativo de redistribuição que, por si só, não afecta a riqueza nacional. E argumentando que o mais respeitável cavalheiro tem sempre mesa vaga no restaurante em que dá boas gorjetas e corrompe o romeno que lhe assinala o lugar para estacionar. Mas o senhor director - se não for tão destituído que nunca devia ter chegado onde chegou - entenderá que, por muitos interfaces que existam entre a quantidade e a qualidade, não há dilemas de monta nestas pequenas ciladas do quotidiano. E compreenderá também que a sua invocação é soporífera, visa só relativizar, diluir e confundir.
Importa que ele sinta à sua volta a protecção e o cerco de uma cultura de exigência civil. No Estado ou na empresa, tanto faz. Uma cultura de combate ao poder burocrático. De transparência no exercício dos inevitáveis poderes discricionários. De dessacralização das origens dos meios de fortuna. De recusa do sigilo bancário como quase direito da personalidade. De operacionalidade efectiva da polícia económica, dos tribunais e da administração fiscal.
Esperemos, por isso, que o grupo parlamentar socialista apresente algo de interessante e prático, com base nas propostas, de teor ainda mal conhecido, de João Cravinho e no trabalho em curso com José Vera Jardim.
(*) Crónica de Nuno Brederode Santos no «DN» de hoje, aqui transcrita com sua autorização.

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