A revolta da Madeira
ALBERTO JOÃO JARDIM colocou-se no centro da vida política portuguesa pelo menos por um semestre. É o semestre da sua acção como presidente demissionário de um Governo Regional que não pode ser demitido por ninguém, após a dissolução do Parlamento e até à realização das próximas eleições para a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira. Assim o dita o articulado da mais recente revisão constitucional, datada de 2004. O artigo 234.º da CRP sobre a dissolução e demissão dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas parece ter sido feito de propósito para esta emergência. Ou seja, Alberto João Jardim vai presidir às eleições que provocou! Não o acusem de imprevidência...
Porque provocou ele novas eleições no prazo de 55 dias a contar da inevitável dissolução da AL pelo PR? Contra todas as aparências, ainda não se sabe bem porquê.
João Jardim é um dos últimos animais políticos de um regime que detesta e que o detesta, mas para o qual tem uma vocação inata. Num regime autoritário e burocrático, possivelmente não teria ido além da Câmara do Funchal. A liberdade, de certa maneira malgré lui, deu-lhe asas e despertou-lhe qualidades de estratego político que o guindaram a personalidade nacional num estilo inimitável. E o que é inimitável tem, pelo menos, carácter. Alberto João Jardim não é um político banal.
De entre os seus predicados políticos sobressaem a audácia e o realismo. O golpe que acaba de desferir tem a ver com o seu lado audacioso. O que fará com a provável vitória eleitoral trará de volta o pendor realista? O discurso de 19 de Fevereiro apresenta os seus objectivos imediatos: captura de um novo e vigoroso mandato de quatro anos, reordenamento da estratégia de desenvolvimento da Madeira assente na procura de maior investimento privado e de uma maior abertura à internacionalização da economia, o que implicará alguma concorrência com Manuel Pinho e Basílio Horta. Isso, ele fará e terá alguns clientes à espreita.
Quanto à evolução institucional da autonomia, ainda é cedo para prever o tempo e o modo. No essencial, Vasco Pulido Valente tem razão: Jardim irá renegociar os termos da autonomia da Madeira. Mas não é certo que prepare um terramoto, ou que adquira força para o provocar.
A última revisão constitucional em 2004 centrou-se quase exclusivamente no título das regiões autónomas. De entre as características dessa revisão, e para além do articulado da dissolução das assembleia legislativas pelo PR, conta-se, em primeiríssimo lugar, a decisiva importância dada aos estatutos político-administrativos, de iniciativa regional, na determinação da autonomia política e legislativa dos arquipélagos. Essa revolução copernicana encontra-se suspensa mas pode ser retomada pela Assembleia Regional a eleger. Duvido porém que esse venha a ser o tema forte da campanha eleitoral na Madeira, tendo em conta o pretexto da demissão de Jardim.
Ora, tenho por pretextuais as razões apresentadas pelo presidente do Governo Regional, que ergueu a nova Lei das Finanças das Regiões Autónomas a besta do apocalipse. É verdade que essa lei é menos favorável à Madeira do que aquela de 1998 também da responsabilidade de um governo socialista. É verdade que, aqui e ali, esta última tem várias normas discutíveis como as que inflexibilizam a possibilidade de o Estado garantir empréstimos às regiões autónomas, ou a que remete para decreto-lei do Governo da República a definição das atribuições e competências necessárias ao exercício do poder tributário já conferido às regiões autónomas pela CRP e pela anterior lei. Mas Alberto João Jardim deve estar a visar mais alto. Ciente de que estas disposições revelam um especial cuidado do Governo da República para com os critérios do Pacto de Estabilidade, tal como avaliados pela Comissão Europeia, ergue-se ele próprio como um possível interlocutor de Bruxelas. É isso aliás que deixa transparecer nas entrevistas que concedeu ao Diário de Notícias do Funchal e ao Expresso.
Por isso é de prever que a maior consequência das novas eleições regionais na Madeira venha ser a elaboração pela Assembleia Legislativa de um novo projecto de estatutos político-administrativos da RAM que estenda as competências de governo próprio até ao céu que a Constituição permitir.
A Madeira prepara-se para ser uma Catalunha estatutária. À portuguesa? Ou seja, pronta a negociar com o projecto de estatutos na mão? Ninguém sabe. Alguém destapou a caixa de Pandora entre Lisboa e o Funchal.
José Medeiros Ferreira - «DN» de 27 Fev 07 - [PH]
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