SOB O SIGNO DE ORFEU
FOI HÁ 400 ANOS, em Mântua, provavelmente no dia 24 de Fevereiro de 1607, que nasceu esse género genuinamente europeu da grande música a que chamamos Ópera. O nascimento foi auspicioso e ficou a dever-se, acima de tudo e todos, ao génio musical de Claudio Monteverdi, que concebeu uma «favola in musica» intitulada L’Orfeo, a partir de um libreto escrito por Alessandro Striggio, secretário de Vincenzo Gonzaga, Duque de Mântua, patrono (e nem sempre bom patrão) do grande compositor desde 1590.
Poderemos imaginar o cenário em que foi concebida a primeira grande ópera da história da música, se pensarmos que o Palácio Ducal de Mântua era, todo ele, decorado por obras de grandes artistas da Renascença, como Corregio, Il Perugino, Mantegna ou Ticiano - e que Rubens foi o pintor oficial do Duque de Mântua entre 1600 e 1608.
Protegido por Vincenzo Gonzaga foi também Torquato Tasso, cuja poesia serviu de inspiração para muitos dos belíssimos madrigais compostos por Monteverdi. Da obra mais famosa de Tasso, Jerusalém Libertada, Monteverdi escolheu as mais belas estrofes do Canto X para compor outra das suas obras-primas, Il Combattimento di Tancredi e di Clorinda, estreada em 1624, quando o «oracolo della musica» já vivia em Veneza.
Mas a ópera L’Orfeo é um marco incontornável da história da música, porque é a obra fundadora da mais completa de todas as artes, porventura a «arte total», justamente por incorporar todas as outras artes – desde a música à literatura, passando pelo teatro e pela pintura. E é uma ópera sublime, de rara emoção e beleza, na qual o texto, a intriga, a arte cénica, o canto e a música instrumental se conjugam numa perfeita síntese.
A beleza de L’Orfeo é comparável ao esplendor das Vespro della Beata Vergine, obra publicada por Claudio Monteverdi em 1610, sem dúvida alguma a mais admirável e mais impressionante de todas as obras de música sacra alguma vez ouvidas, antes das Paixões de Bach. Tanto L’Orfeo como as Vespro della Beata Vergine ilustram o talento verdadeiramente genial de Monteverdi, que consegue ser inovador e, mesmo, profético, sem renunciar à herança da polifonia quinhentista, que ele incorpora no estilo novo. Foi ao operar a síntese entre tradição e inovação, justapondo o antigo e o moderno de modo tão criativo, que Monteverdi se tornou num compositor pioneiro e revolucionário.
A escolha do mito de Orfeu como tema da sua primeira obra dramática, justifica-se duplamente. Por um lado, enquanto «drama grego», tal mito ajusta-se na perfeição ao estilo novo, que cultiva a antiguidade clássica. Por outro lado, como salientou Nikolaus Harnoncourt, o mito de Orfeu oferece a Monteverdi uma «perspectiva programática»: a de «cantar o poder da Música, que triunfa sobre tudo e todos». Como disse Platão: «ela penetra no interior da alma» e «apodera-se dela da forma mais enérgica». Com a música de Monteverdi, ascendemos aos domínios do inefável. O seu fascínio é irresistível.
«DN-6ª» de 16 Fev 07
NOTA: Este texto encontra-se também afixado no blogue «TRAÇO GROSSO» [v. aqui], arquivo das crónicas publicadas pelo autor no «DN-6ª».
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