1.4.07

A Vitória Póstuma de Salazar

FOI APENAS UM CONCURSO DE TELEVISÃO e feito pela Maria Elisa, ainda por cima. Votou muito pouca gente. A extrema-direita não tem expressão política. Muito bem, já sabemos. Há mais mil razões iguais a esta. Mas não perceber a amargura e desilusão expressas por esta desforra é uma manifestação de autismo político.

Os participantes no concurso da RTP votaram em Salazar pela mesma razão que outros elegeram os valentins e os isaltinos: porque não encontraram melhor forma para expressar o seu despeito. Pela mesma razão que na França votam Le Pen depois de terem perdido qualquer identificação afectiva com os partidos do poder. Mesmo quando votam neles.
Em Portugal temos outras razões: um dos males maiores do salazarismo em Portugal foi ter aumentado a importância política dos não-democratas na oposição ao regime e deixar assim uma dificuldade quase insuperável para a denúncia democrática da sua repressão.
Por altura do 25 de Abril Caxias e Peniche albergavam principalmente os militantes e dirigente do PCP e estudantes esquerdistas que achavam (achávamos) que o PCP era demasiado moderado.
No pós-25 de Abril a denúncia do fascismo confundiu-se sempre com a actividade política dos comunistas e com a sua duplicidade estrutural. O Tarrafal era mau mas o Gulag (que como se sabe nunca existiu) era bom.
O segundo lugar atribuído a Álvaro Cunhal é tanto mais irónico quanto o seu pensamento político era muito mais intensamente totalitário que o de Salazar.
Mesmo no final sua vida Cunhal, sem aprender nada nem esquecer nada, não se coibiu de afirmar que Gorbatchev era um traidor. Não foi preciso explicar qual seria na sua opinião o tratamento para este traidor mas não deixou de expressar o seu imenso desgosto pelo facto de na Rússia os traidores terem deixado de ter o tratamento que lhe era devido.
Costuma dizer-se sobre os julgamentos de Nuremberga que só teve um defeito: ter entre os juízes os representantes de Estaline. Estavam suficientemente diluídos no meio de outros juízes para a deslegitimação provocada pela sua presença não funcionasse e por isso Nuremberga foi Nuremberga: um julgamento de crimes inomináveis que atingiu o essencial dos seus objectivos.
No caso da denúncia da repressão salazarista não é exactamente assim porque o PCP é parte essencial desta denúncia: e para o PCP quando se denuncia a repressão não se pode cair em generalizações abusivas.
Uma coisa é estar preso numa cadeia de Salazar defendendo uma causa progressista. Outra é estar numa cadeia de Fidel defendendo uma causa reaccionária.
Uma coisa é denunciar os campos de concentração hitlerianos que foram crimes contra a humanidade. Outra é cair em práticas de anti-comunismo primário e denunciar os campos de trabalho estalinistas onde se reeducavam os inimigos políticos da revolução socialista.
Com tantas hipocrisias e tanta reserva mental a denúncia da repressão salazarista sempre foi uma operação de sofisticada engenharia política.
Os seus efeitos vêem-se.
«Expresso» de 31 Mar 07

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