A DESAGRADÁVEL IDEIA DA CONCORRÊNCIA
Por J. L. Saldanha Sanches
JÁ TIVEMOS EM PORTUGAL o condicionamento industrial: era um regime muito original que sujeitava a instalação de qualquer nova actividade ou expansão da já existente à devida permissão superior.
Nesses abençoados tempos cada um sabia o seu lugar - o fim explícito da lei era garantir a actividade em regime de monopólio para evitar que a concorrência – essa coisa detestável - viesse degradar as margens de lucro e obrigar a qualquer esforço o produtor.
O condicionamento industrial já não existe, mas a aversão lusíada à competição continua presente.
A Ordem dos Advogados acha que a criação de lojas jurídicas em centros comerciais pode contribuir para a “vulgarização da advocacia” e recusa liminarmente a ideia. A Ordem dos Médicos protestou vigorosamente há uns tempos contra uma decisão da Autoridade da Concorrência que a obrigava a divulgar honorários. Os enfermeiros também já têm uma ordem. Os biólogos (porquê os biólogos?) resolveram criar uma.
Este entusiasmo serôdio com as ordens só pode explicar-se porque a ideia da concorrência é uma das coisas que mais choca os costumes nacionais. Como afirmava escandalizado um ilustre jurista num blogue falando das lojas jurídicas, “estas “ lojas” não têm a privacidade devida nem a dignidade que deve ter um verdadeiro escritório de advogado, contrariando assim regras do respectivo estatuto”.
Formas de exercício da profissão de advogado que são absolutamente necessárias “numa sociedade civilizada, em que a Justiça e os seus colaboradores precisam de ser respeitados”.
As lojas jurídicas são uma mera adaptação das «legal clinics» que proliferam nos Estados Unidos e que servem para dar uma hipótese de acesso à Justiça a que não tem os meios necessários para recorrer a um grande escritório nem as relações necessárias para escolher bem um advogado.
Tal como a quota litis (outra deplorável prática dos selvagens transatlânticos) a clínica jurídica, em que os preços da consulta ou de qualquer outro serviço são previamente anunciados, é o único meio de garantir o acesso aos tribunais de clientes com poucas posses que receiam entrar num escritório do tipo tradicional apenas porque se sentem intimidados.
Não parecem ser o meio mais adequado de fornecer serviços jurídicos de grande qualidade. Mas em muitas questões comezinhas um módico de competência chega para proporcionar um serviço adequado.
A ideia aterradora que nelas reside é a da concorrência que as ordens, como barreiras à entrada de natureza jurídica, procuram a todo o custo evitar.
Para os liberais do tipo mais exaltado, as ordens são só isso: barreiras à entrada que limitam a concorrência e fazem subir os preços dos serviços com vantagens para quem os presta e desvantagens para os restantes.
No entanto, são certamente necessárias associações profissionais para regular o exercício da medicina e talvez para regular a prática da advocacia e da engenharia.
Mas seria necessário criar uma «closed shop» (a inscrição na ordem como condição de exercício da profissão) para a enfermagem ou mesmo para a arquitectura?
Sem falar da biologia: não se trata de diminuir seja no que for a importância da profissão. Provavelmente precisávamos de mais biólogos e de menos juristas.
Haverá deontologia específica para biólogos quanto às suas relações com os clientes? Ou um exercício livre (sem o controlo mais próximo ou mais distante de um médico) da profissão de enfermagem, exigindo por isso uma ordem produtora de regras?
«Expresso» de 12 de Maio de 2007
Etiquetas: JLSS
9 Comments:
Um artigo profundamente demagógico.
Lojas é bom, porque cria concorrência.
Depois , com o passar do tempo teríamos as lojas e teríamos os serviços de advocacia de primeira classe.
As lojas seriam "reguladas" e fiscalizadas pelo direito económico e pela Deco. Supõe-se.
Os outros serviços permaneceriam na penumbra como tem estado até aqui.
Na prática criar-se-ia dois módulos de justiça diferenciados , ainda mais do que até aqui existe.
Com o pretexto da "concorrência"...
Depois registo o frete feito ao PS e as ideias do PS, e registo o elogio ao EUA, o novo farol da terra.
A URSS já deu para o peditório dos faróis da terra; é preciso arranjar quem o substitua.
Em vez das teorias parvas da concorrência em serviços jurídicos e outros do mesmo tipo, não seria talvez melhor o ilustre autor defender o fim dos 4 níveis de jurisdição legal nesta República bananal e passarem a ser só dois?
Não era melhor o ilustre autor defender o fim da verborreia legislativa propondo limites por ano à feitura de leis?
E do tamanho das mesmas?
E que existisse a obrigatoriedade de existir um especialista em língua portuguesa e em língua francesa a acompanhar os imbecis deputados quando produzem a cretinice que produzem?
Em português são normalmente mal escritas.
E quando a legislação é copiada da francesa normalmente é mal traduzida e mal copiada.
Se calhar adiantávamos mais do que com lojas jurídicas e problemática conexa.
Tinha muito mais para dizer mas isto já vai longo, mas de facto é um texto no Expresso e neste blog muito habilidoso.
Correcção:
... e neste blog, muito habilidoso
(o texto;não o blog)
Correcção 2:
Há uns anos uma jornalista disse que um ministro recebeu 50.000 contos para mudar uma vírgula nu decreto lei.
Eu esqueci-me duma vírgula num post.
Daí a correcção.
Mas não recebi 50.000 contos pelo esquecimento.
Nem 50.000 euros.
Aliás não recebi nada.
Com qual loja jurídica falo para resolver esta questão comezinha?
Eu tive um professor que dizia:
«Há martelos grandes para pregar pregos grandes em tábuas grandes; há martelos de tamanho médio para pregar pregos de tamanho médio em tábuas de tamanho médio; e há martelos pequenos para pregar pregos pequenos em tábuas pequenas».
E o homem tinha toda a razão.
Pelo mesmo motivo, não vejo qual é o problema na existência de gabinetes de advocacia simples, com processos simples, para tratar casos simples.
Aliás, também há tribunais simples para tratar de casos simples com métodos simples - como são os juízos de paz, onde se resolvem pequenos conflitos, sem os custos, as demoras e as burocracias dos grandes.
Desde que o serviço fornecido respeite os padrões de qualidade exigíveis para o serviço vendido, não me parece que haja nada a opor à existência de gabinetes de advocacia (ou de outra qualquer profissão) em versão "light". O problema só poderia colocar-se se houvesse receios em termos de qualidade (idoneidade, honestidade, etc).
Para o caso em apreço:
Se o Estado, ou a Ordem dos Advogados (ou ambos) garantirem que o serviço, além de expedito, é correctamente fornecido, tudo bem.
Já por várias vezes tive problemas de inquilinato. As consultas expeditas que, por mais do que uma vez, me deram os advogados da AIL não foram piores do que outras que me deu um advogado com escritório estabelecido na Baixa.
Ed
A advocacia, como profissão eminentemente liberal que é, está sujeita à livre concorrência e, portanto, às leis do mercado.
Trata-se de uma evidência que não tem nada a ver com o que o PS pensa ou deixa de pensar.
Recordo-me que há tempos ouvi um juiz, ao comentar determinado caso judicial na TV, e interpelado sobre aspectos da respectiva fase processual, dizer algo como : "Não é a minha especialidade".
Ou seja, reconhecia que haveria aspectos específicos da aplicação da lei que não conheceria bem.
Ora, a contrapartida de tal especialização seria os advogados assumirem, e clarificarem, as áreas jurídicas que dominam melhor.
Se um médico pode ter uma placa a dizer que é obstetra ou ginecologista, porque não um advogado ter uma placa a dizer algo como direito penal ou direito administrativo ?
Seria bom que a Ordem dos Advogados se abrisse aos novos tempos, permitindo a publicidade dos seus inscritos e estimulando a concorrência, sob as suas diversas formas, incluindo a criação de lojas jurídicas em centros comerciais, em benefício do cidadão consumidor-cliente.
Outra limitação :
«Os advogados ingleses não podem trabalhar em Portugal, porque têm de ser acreditados pela Ordem dos Advogados», disse o inspector-chefe.
http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=13&id_news=276050
Pergunta-se atrás: «porque não um advogado ter uma placa a dizer algo como direito penal ou direito administrativo?»
Mas, tanto quanto sei, isso já existe, pelo menos de certa forma.
Quando procurei um advogado devido a problemas de inquilinato (como atrás disse), recomendaram-me especialistas nesse ramo.
Mas não é preciso ir muito longe:
Saldanha Sanches, o autor deste post, é especializado em Direito Fiscal. Outros, como Jorge Miranda, Gomes Canotilho ou Vital Moreira, são especializados em Direito Constitucional, etc.
Ed
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