18.3.24

Pergunta de algibeira

 


Alguém é capaz de indicar os erros nesta imagem?

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16.3.24

Grande Angular - A glória fátua do desastre

Por António Barreto

As eleições realizaram-se a 10 de Março. Há uma semana. Os resultados conhecidos trouxeram grandes surpresas. Mas ainda não se sabe realmente quem ganhou. As previsões têm alta probabilidade, mas não são ainda certezas. O apuramento dos votos ainda não acabou. Não se percebe porquê, mas a contagem de votos de emigrantes fica para o fim. Poderia estar pronta desde as vésperas da eleição. Os resultados poderiam ser logo acrescentados aos primeiros dados conhecidos, evitando-se assim esta verdadeira desconsideração pelos eleitores a viver no estrangeiro. Tudo ficaria resolvido. Mas não. Ficam a faltar quatro deputados que podem mudar os resultados! E ficamos quase duas semanas à espera.  À espera... Os eleitores não percebem. Mas isso não importa.

 

Ainda não se pode dizer com segurança quem tem mais votos e mais deputados eleitos. Para efeitos de indigitação, não se sabe quem, pessoa e partido, vai ser chamado a formar governo. Assim, o governo não existe, nem se conhecem os futuros ministros. Por direito próprio, o Parlamento deveria reunir no dia seguinte à sua eleição. Apesar disso, entre nós, essa inauguração fica dependente de factores burocráticos e políticos pouco recomendáveis. Logo, o Parlamento ainda não reuniu, o que só poderá acontecer lá para 25 deste mês, pelo menos duas semanas depois das eleições. Não se conhecem ainda todos os deputados eleitos. Por isso, o Primeiro-ministro e os seus ministros ainda não tomaram posse. Pelo que não há programa de governo. Muito menos aprovação ou rejeição de uma moção de confiança ou de censura. O que quer dizer que não há sequer ideias sobre a possibilidade de se preparar orçamento novo ou rectificativo.

 

Sendo verdade tudo o que precede, não deixa de impressionar aquilo de que é capaz a imaginação dos políticos portugueses! Imaginação e espírito quezilento. Assim como egocentrismo impertinente e soberba partidocrática. Já vários partidos anunciaram que, sem conhecer governo, votariam moções de rejeição, não se sabe de quê, nem de quem. Outros garantiram que votariam contra o programa de governo e o orçamento que não conhecem pela simples razão de que não existem. Não se dão sequer ao trabalho de afirmar candidamente que “vão ler” ou “vão ouvir” … Não! Já sabem que não votam, nem querem.

 

O PCP vota contra. Ponto. O Bloco vota contra. Ponto. O PS faz oposição e vota contra. Ponto. O PSD diz que “não é não” e já anunciou há muito que não fala com o Chega, nem quer bloco central. O Chega diz que, se não for previamente consultado, vota contra. Convém repetir, pois parece inacreditável. Já há quem vote contra uma moção de censura, que não está escrita, que não se sabe se haverá, cujo autor se desconhece e cujo teor é um mistério. Não se sabe qual é o governo, nem qual é o seu programa, muito menos em que condições é formado, mas já se sabe que há quem vote contra. Parece que a força da oposição, das oposições, reside nesta maravilhosa frase digna de banda desenhada: “Não sei o que é, mas sou contra!”.

 

O PSD deixou-se enrolar naquela que foi a maior vitória dos Socialistas, que perderam a eleição, mas ganharam o combate. Com a ajuda dos mais pequenos e o contributo de umas pessoas avulso, conseguiram demover o PSD e obrigá-lo a afirmar, antes das eleições, que não fariam alianças nem governos com o Chega. Daí o famoso “não é não!”, autêntica corda para o suicídio. Pagou assim uma apólice de seguro de vida aos socialistas. E reforçou o papel do Chega na oposição, coisa que interessa de novo aos socialistas. 

 

De toda a maneira, isto tudo, que passa por ser o mais importante e é o mais falado, é próprio da coreografia do governo, da política e dos partidos, sempre mais interessados no adjectivo do que no conteúdo. Sempre mais preocupados com os processos do que com os objectivos. Sempre mais atentos às suas contas de “ganhos e perdas”, do que à realidade social e económica e à substância dos serviços públicos.

 

Estranho país este, esquisito sistema partidário este, em que os grandes partidos, de quem tudo depende, se revelam medrosos e covardes, enquanto os pequenos partidos, atrevidos como não se imagina, de quem nada depende, com menos de meia dúzia de deputados, ousam dar a entender que tudo depende deles, que “não estão dispostos para isto”, que “estão disponíveis para aquilo”, e que “não contem com eles para aqueloutro”.

 

Não conseguimos afastar esta sensação de que a classe política portuguesa não está à altura de resolver os problemas que cria. Uns, especialistas em minas e armadilhas, entregam-se à intriga com facilidade. Outros ainda, pretensos conhecedores da alma humana, dedicam-se aos adjectivos e aos processos da política, como se os meios fossem mais importantes do que os fins.

 

É lamentável ter de o dizer, mas há quem queira sempre o pior. São condenáveis as generalizações, mas somos obrigados a verificar que quase todos estão interessados no desastre, na impossibilidade de governo, na dificuldade da coligação, na impotência de qualquer solução, no adiamento de qualquer acção e na realização de novas eleições. O Chega quer subir ainda mais. O PSD julga poder assegurar uma maioria. O PS quer ter uma segunda oportunidade. Os pequenos partidos, à beira da evaporação, procuram uma saída. Todos convencidos de que, assim, liquidam o Chega e vão buscar os seus despojos. O que o país pode sofrer, durante os próximos meses, até anos, na economia, na sociedade, na política e na cultura, parece ser totalmente indiferente. O que importa é o casino da política e o puzzle das teorias.

 

Há duas hipóteses. Uma, a aliança da direita, entre PSD, CDS e Chega. Outra, dita de bloco central, entre o PSD e o PS. Quase ninguém quer uma. Quase ninguém quer outra. Acordos sólidos, mesmo se sectoriais ou parcelares, mas com palavra dada e documento escrito, conhecidos pelos eleitores e atraentes para os parceiros sociais? Também quase ninguém quer. Outras maneiras de participar, dialogar e colaborar, com ou sem participação no governo? Ninguém quer nem está para isso. O que terá dado a estes partidos, a esta classe política e a estes políticos para sacrificarem o seu país a interesses menores e a vaidades maiores? Querem a terra queimada e chamar-lhe paz e progresso…

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Público, 16.3.2024

 

 

 

 

 

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15.3.24

«Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade» 2ª edição actualizada, com prefácio do Prof. Carlos Fiolhais


Por A. M. Galopim de Carvalho

Merecia, há muito, uma reedição este livro, Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade, da autoria do Professor Galopim de Carvalho, publicado pela primeira vez na Âncora Editora em 2007. De facto, a expressão “há muito” não será a mais apropriada do ponto de vista de um geólogo, já que este lida com intervalos temporais de milhões de anos. Do ponto de vista da história da Terra, a edição e a reedição deste livro sobre as Ciências da Terra são praticamente simultâneas. Seja como for, a necessidade de reeditar esta obra diz bem do interesse que ela merecidamente continua a suscitar no público. 

A expressão Coma Bola Colorida, uma citação de um famoso verso do poema “Pedra Filosofal” de  António Gedeão, pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências Físico-Químicas que é o patrono da  cultura científica em Portugal, refere-se ao nosso planeta, que  tem belas cores: decerto o azul do mar e o verde da vida, mas também as cores das rochas, que podem ir dos tons claros do quartzo aos escuros do basalto, passando pelos cinzentos e rosa dos granitos e pelos tons vermelhos da algumas argilas (pois as há multicolores!). Mas uma criança que quisesse agarrar no nosso planeta teria de ter um tamanho gigantesco. Basta pensar que a bola onde vivemos tem cerca de 6400 quilómetros de raio, ao passo que uma bola de futebol adequada a uma criança terá cerca de 20 centímetros de raio. Um rapaz ou uma rapariga poderão ter entre um metro e um metro e meio. Feitas as devidas proporções, a altura da criança teria de ser à volta de 40 mil quilómetros, o que, parecendo muito, não é nada à escala do Sistema Solar: é um décimo da distância entre a Terra e a Lua.

Uma metáfora impressionar-nos-á tanto mais quanto mais fora da realidade estiver. E é indiscutivelmente uma bela metáfora aquela que Galopim de Carvalho escolheu, em 2006, para título do seu livro, publicado quando se comemoravam os cem anos do nascimento de Rómulo de Carvalho. A nossa “bola colorida” já deu 17 voltas ao Sol deste então. Estamos todos mais velhos. Mas na Terra não se nota muito. Só não está na mesma devido às modificações que lhe fizemos, das quais a mais grave será o aumento desmesurado dos gases de efeito de estufa, como o dióxido de carbono, na atmosfera. Mas, para quem tem 4,54 mil milhões de anos de idade, como é o caso do nosso astro, 17 anos não são nada, absolutamente nada. O livro mantém-se novo, tendo a revisão sido menor: naquilo que está bem não se deve mexer. Em particular, o prefácio de José Mariano Gago tem plena actualidade, pelo que se mantém rigorosamente na íntegra. Ao relê-lo, senti saudades do seu autor: faz-nos falta aqui neste nosso quinhão do planeta para avivar a luz da ciência. Foi ele que instituiu, em 1996, o Dia Nacional da Cultura Científica, precisamente no dia de aniversário de Rómulo de Carvalho, para prestar justa homenagem aquele que, além de professor e poeta, foi também um grande divulgador de ciência.

O geólogo Galopim de Carvalho, a quem um dia chamei “Mestre das Pedras e das Palavras” por ser tão exímio com as primeiras como com as segundas, é, na esteira de Rómulo, um grande divulgador de ciência. Com uma vivacidade que tem resistido ao passar dos anos (para ele os anos que sejam abaixo de um milhão não são relevantes!), tem-nos dado o melhor do seu saber e talento quando nos descreve a incrível variedade da Terra e nos conta o longuíssimo processo histórico que moldou o nosso lugar no espaço. Neste livro, que acresce a mais de três dezenas de outros seus títulos, Galopim traz-nos, num português de lei, uma síntese dos resultados mais importantes das Ciências da Terra:  a estrutura, a dinâmica, a pluralidade de paisagens do nosso planeta, incluindo as pródigas marcas da vida que é quase tão antiga como ele. Galopim de Carvalho usa um recurso que Rómulo de Carvalho (por coincidência, partilham o mesmo apelido!) também usava desenvoltamente e que devia ser mais comum na divulgação da ciência entre nós: recorre à história da ciência. Mostra assim que a ciência é uma conquista humana, um conjunto de conhecimentos que foram duramente extraídos da Natureza pelos cérebros e mãos de diligentes seres humanos ao longo do tempo, uns na peugada dos outros, num empreendimento contínuo e a continuar. Mais importante que os conhecimentos, são os métodos para os obter. Sim, é contada em traços gerais a história da Terra, mas é também contada a história da tomada de consciência da historicidade geológica, que é muito recente. Com efeito, foi só no século XIX que os geólogos se aperceberam da enormidade da nossa história planetária, ultrapassando antigos preconceitos, alguns de raiz bíblica. Os geólogos que olharam para as modificações lentas e graduais da Terra foram-lhe dando uma idade aproximada que nada tinha a ver com as mitologias e que excedia mesmo largamente a que era estimada por físicos e químicos com base em considerações termodinâmicas. E era mais fiel a sua cronologia, justificada pela acumulação de observações de lagos e oceanos, vales e montanhas, estratos e fósseis, etc. do que a dos seus colegas físico-químicos, fundada em modelos matemáticos.

Ao  Terra tem sido palco de um rol de acontecimentos, não raro surpreendentes: arrefecimento a partir de uma massa ígnea inicial, impacto com outro astro para originar a Lua, quedas de meteoroides, formação dos oceanos, surgimento dos primeiros organismos, início da fotossíntese e oxigenação da atmosfera, proliferação da vida com a «invenção» do sexo, extinções maciças por razões em parte misteriosas, movimentos de placas tectónicas e outros, sismos e vulcões, idades do gelo, e, nos nossos tempos, as transformações de responsabilidade humana que alguns julgam merecer um novo período geológico: o Antropoceno. Se hoje sabemos algumas coisas sobre estes fenómenos foi graças aos esforços de homens e mulheres cujos nomes vêm referidos neste livro. Mestre Galopim é o nosso guia nessa viagem nas páginas que se seguem, destacando naturalmente os sítios e eventos em Portugal, onde está ou de onde vem a maioria dos seus leitores.  Ele preocupa-se com a fácil compreensão por parte de quem lê, nunca subestimando a inteligência dos leitores, uma regra básica na divulgação científica. Por exemplo, tem o cuidado de nos explicar, recorrendo a grãos de arroz e a badaladas de sinos, o que significa um milhão de anos, que afinal é uma «migalha» na história da Terra. Para nos acicatar a imaginação, fala de um bolo de aniversário para a Terra com 4540 milhões de velas. São, indiscutivelmente, muitas velas! Quando os dinossauros desapareceram, o bolo «só» tinha 4474 milhões de velas.

Se com José Mariano Gago a ciência entrou nas nossas casas, é preciso que ela entre mais e que fique bem instalada. Galopim de Carvalho é um exemplo inspirador de como é possível, com vista a tal desiderato, fazer bem-sucedida divulgação de ciência, num país em que largos sectores são avessos à ciência. São utilíssimos livros como este que descrevem em linguagem simples o chão que pisamos, o seu início e as suas metamorfoses, as suas riquezas e misérias, os seus encantos e mistérios. Em meu nome e – seja-me permitido – em nome de todos os leitores expresso-lhe a minha, a nossa, gratidão, por tudo o que temos aprendido dele e com ele. Sei que a vida humana é um lampejo em comparação com o tempo da Terra, mas desejo que, no seu caso, esse lampejo se prolongue, prosseguindo a iluminação que tem espalhado. Desejo que o «Mestre das Pedras e das Palavras» continue a ajudar-nos a compreender o nosso planeta não só com a sua grande sabedoria, mas também com a sua enorme jovialidade e a sua extraordinária simpatia.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2023

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2.3.24

Grande Angular - O fim dos partidos políticos

Por António Barreto

O fenómeno não é novo. Mas é mais real do que nunca. Esta eleição veio acelerar o desaparecimento dos partidos políticos. Pelo menos, tal como os conhecemos durante décadas. A campanha está sobretudo concebida para a televisão e “as redes”. O que quer dizer preparada para as aparições dos chefes à saída dos restaurantes, as visitas dos chefes a hospitais e ao repouso dos chefes. Tudo está pensado para que os momentos importantes sejam os debates e as entrevistas de televisão dos chefes. Até os programas da manhã, que não era possível imaginá-los com política à mistura, são agora feitos de modo a que os chefes apareçam e por ali espalhem os seus talentos privados e as suas sofisticadas modéstias.

 

Na verdade, não estamos perante uma competição entre partidos, muito menos uma apresentação de alternativas. Estamos, isso sim, diante de um combate de chefes. E de uma passagem de modelos. Se a eleição fosse a do Presidente da República, ainda vá. Mas não é. Não se trata de cargo pessoal. Só combate de chefes. Mesmo os que elogiam o colectivo, deixam-se arrastar pelas vaidades dos duelos. Mesmo o Bloco e o PCP, tão palavrosamente elogiosos do trabalho de equipa, acabaram por tudo fazer girar à volta do chefe.

 

São cada vez mais fortes os indicadores das novas tendências, as que substituem o papel dos partidos pela função dos líderes. Poderá dizer-se que não se trata de fenómeno novo. Mas novo é o facto de tal se fazer à custa da dissolução sistemática das estruturas dos partidos. Os organismos partidários são meros instrumentos do Chefe. É visível e deplorável o apagamento de estruturas partidárias. A doutrina comum, a natureza de classe, as inclinações religiosas, as tradições comunitárias e as opções doutrinárias desaparecem, deixando lugar às mais banais proclamações adjectivas.

 

Movimentos novos e partidos tradicionais agem no mesmo sentido, no da destruição do partido como organização política autónoma e reconhecida. Pelo que não percebem das mudanças do eleitorado. Pelos erros que cometem. Por esta espécie de autismo em que os partidos vivem, na certeza de que tudo o que está mal é da culpa dos outros, da extrema-direita, dos esquerdistas, dos imigrantes, da juventude sem credo e do povo sem crença!

 

Sem partidos políticos, não há democracia. É, para muitos, um princípio indiscutível. Mas não é possível deixar de pensar em todas as outras possibilidades. O que é a democracia sem partidos políticos, ninguém sabe. Mas…. Há quem pense que é possível organizar a vida política das comunidades com outras instituições e de outras formas. Teoricamente, a democracia pode ser melhor sem partidos. Com menos “rackets” organizados para capturar o Estado e as autarquias.  Mas também pode ser pior, com movimentos ditos “inorgânicos” e efémeros, sem identidade histórica nem programa, sem doutrina nem valores de referência, quase só energia e protesto. E vontade despótica.

 

Os partidos políticos podem ser fonte de racionalidade, tal como os “movimentos” são factores de irracionalidade. Os novos movimentos, associações e grupos efémeros, dependem de racionalidades ou interesses externos, ligados a uma pessoa, herói ou demagogo.

 

Há vários exemplos em Portugal. É uma realidade em crescimento. Chega, PAN, ADN, Bloco de esquerda, Nova Direita e outros pertencem a esta nova variedade. Os dois grandes partidos, PS e PSD, resistem, mas já exibem as suas fraquezas. O mais antigo, PCP, está em vias de desaparecimento, como em quase todo o mundo. O CDS já despareceu. É possível que a democracia portuguesa seja dominada, nas próximas décadas, por figuras efémeras, agentes de interesses, mafias internacionais…

 

As presentes eleições e respectiva campanha são as mais certeiras demonstrações deste caminho para a destruição dos partidos como centros de racionalidade. Uns desapareceram. Outros nasceram, mas já não são partidos políticos no sentido conhecido. Os que melhor resistem são agora obrigados a compor com movimentos, com iniciativas sem história e talvez sem futuro. Mas que são o que é hoje a política. Os que se mantêm como partidos deixaram de perceber os cidadãos. E deixaram de ter que lhes dizer. Não recebem inspiração, nem lhes dão valores, só subsídios e pensões. O tema não é evidentemente português. O mesmo acontece em vários países, na Itália e em França, ou na Europa central e oriental. Muitos são os partidos socialistas, social-democratas, democrata-cristãos, comunistas e radicais que já desapareceram.

 

Curiosamente, os partidos tinham mais existência, como organizações e estruturas associativas, quando tinham líderes fortes e notáveis (Soares, Sá Carneiro, Cunhal…), do que agora que parece terem dirigentes iguais aos militantes. Em certo sentido, parece poder dizer-se que os chefes muito fortes eram traços de continuidade ou faróis de reconhecimento. Os seus partidos podiam perder ou ganhar, mas eles mantinham-se por períodos razoáveis (talvez de mais, quem sabe?) e os programas duravam com eles. Hoje, líder derrotado é líder morto. Chefe que não vence vai para a rua. Líder que vence, fica e manda.

 

Chefes fortes de partidos fracos são más receitas para a democracia. São partidos com poucas relações com as instituições, as associações profissionais, os sindicatos, as empresas, as religiões, as universidades e outras, que reforçam as democracias e as liberdades. Chefes fortes querem dar voz ao descontentamento, ao protesto e às pulsões naturais das pessoas em dificuldade. São partidos instantâneos e fracos que não existem sem os seus líderes de momento.

 

De modo crescente, as campanhas eleitorais têm sido viveiros de líderes fortes de partidos fracos, o que é confirmado pelas dezenas de comentadores, jornalistas, analistas e académicos que ocupam os canais de televisão. Já ninguém quer saber da espessura política e da vivacidade doutrinária de um partido. A ideia é simples: a mensagem passa se o líder passa. O líder passa se tudo depende dele, se só ele tem voz e se os militantes se limitam às árias do coro ou às funções do papagaio. Aliás, os debates, as entrevistas e os comentários giram cada vez mais à volta das questões adjectivas. Com quem se alia? Quem rejeita? Quem exclui? De quem quer apoio? E se perder muito? E se ganhar pouco?

 

Convém não esquecer: os partidos fracos tornam fracos os fortes líderes.

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Público, 2.3.2024

 

 

 

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26.2.24

MERCANTILIZAÇÃO DA MEDICINA (crónica de uma experiência pessoal)

Por A. M. Galopim de Carvalho

Como portador de doença coronária, vulgo angina de peito, de há uma vintena anos a esta parte, venho beneficiando do muito bom acompanhamento, por parte de cardiologistas competentes que regularmente (mais ou menos 6 em 6 meses) me têm acompanhado, prescrevendo os exames que se aconselham e a medicação adequada. 

O último destes profissionais é uma jovem médica de um hospital privado (a ADSE, permite-me fazê-lo em condições de preço bastante acessíveis) que tem continuado esta rotina, ao estilo e ao ritmo próprios da mercantilização do acto médico que é, em teoria, reprovada pelo Código de Ética Médica, mas que, na prática, é a que existe nos hospitais privados, com administrações e accionistas naturalmente interessados no lucro. Em menos de meia hora esta doutora, delicadamente, mas quase sem falar comigo, cumpre, e bem, diga-se, as suas obrigações contratuais com a entidade que lhe paga o salário. Observa os exames que me prescreveu na consulta anterior, sempre calada, de olhos fixos no monitor e mãos a dedilharem no teclado. Ausculta-me com o estetoscópio, mede-me a tenção arterial e só me diz os valores se eu lhos perguntar. Uma vez mais, calada, dedilhando no teclado, prescreve os exames a fazer e a medicamentação habitual. Posto isto, levanta-se e, com um sorriso distante, estende-me a mão e abre-me a porta do consultório. E … até daqui a seis meses. O sistema funciona, mas, tristemente desumanizado, afastado de valores essenciais à vida em sociedade, como o afecto ou o carinho, tão apreciados nestas ocasiões.

À semelhança de muitos dos seus colegas, quando se me dirige, ela, uma jovem e eu um velho com mais de 90 anos, trata-me por você. Fui educado a não cometer essa deselegância, face e um desconhecido, sobretudo, se esse desconhecido for pessoa mais velha. Não aprecio ser tratado assim por pessoas de estatuto social elevado, como são, por exemplo, os juízes e os médicos, no exercício das respectivas funções, sobretudo, quando mais novos do que eu. Aceito-o perfeitamente se o você vier da boca de pessoa de mais baixo estatuto sociocultural, como, por exemplo, o caixeiro da drogaria, o amola tesouras que passa na rua ou a senhora da limpeza. 

O doente é, via de regra, uma pessoa diminuída física e emocionalmente. Precisa que lhe cuidem do corpo e, quanto a isso, não há nada a dizer, mas também precisa (tantas vezes muito) de amparo e conforto psicológico. Salvo as pouquíssimas excepções, que sempre as há, os médicos e as médicas que me têm assistido, trataram-me e tratam-me, não como uma pessoa inteira, de corpo e alma, a necessitar de ajuda, mas sim e apenas como um corpo material, a pedir tratamento. Executam, e muito bem, essa a parte que lhes diz respeito, como bons profissionais, tal como um bom mecânico automóvel executa o seu trabalho na sua oficina. Pouco ou nada lhes interesso como pessoa. Não estabelecem qualquer diálogo de aproximação comigo, um seu doente. Agem como robots guiados por inteligência artificial. Não têm tempo ou disponibilidade para mais. Para eles sou, apenas, mais um “senhor António”.

Por uma questão de segurança para, em caso de necessidade, a poder contactar, pedi a esta minha cardiologista, logo na primeira consulta, o número do seu telefone, mas ela não me o facultou. Delicadamente, preferiu dar-me o seu e-mail. Acontece que, em começos de dezembro, último, comecei a sentir-me particularmente cansado. O próximo exame (ecocardiograma Doppler) e a subsequente consulta só estavam agendadas para meados de janeiro. Não podendo contactá-la, a pedir orientação, recorri à urgência do hospital, no dia 9 de dezembro, do que resultou a necessidade de antecipar os ditos exames e consulta. 

Em resultado, foi-me diagnosticado uma estenose aórtica grave e o subsequente encaminhamento urgente para o cirurgião cardiovascular. Foi assim que a 5 de janeiro recebi a implantação percutânea de uma válvula artificial, em substituição da minha, que estava já demasiado fechada. 

Seguiram-se 24 horas em cuidados intensivos, mais três infindáveis dias e noites de internamento. Aqui, como no consultório, nada falta ao tratamento do corpo, mas tudo falta ao conforto da alma. Médicos, apareceu-me um, muito fugazmente, ao fim da tarde do segundo dia de internamento, sem tempo para conversar, e o que me operou, ao fim do último dia, apenas para me entregar o documento da alta. Não tive, sequer, visita da minha cardiologista (a trabalhar no mesmo hospital) a que me encaminhou, e bem, para esta cirurgia que me permitiu voltar à vida.

A versão de 2017, do juramento médico, creio que, actualmente usada em Portugal, diz, num dos seus preceitos: «a saúde e o bem-estar do meu doente serão as minhas primeiras preocupações”»… 

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No "Público" online de 24 Fev 24

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24.2.24

Grande Angular - Perderam os dois. E nós também

Por António Barreto

O combate dos Chefes terminou com uma certeza: a de que perderam os dois. Basta, aliás, o facto de todos os simpatizantes (políticos, comentadores, analistas e jornalistas) de um dos dois terem apoiado e garantido a vitória do seu preferido, enquanto todos os simpatizantes (políticos, comentadores, analistas e jornalistas) do outro terem afirmado que o seu dilecto era o vencedor, basta esta pequena observação para concluir que ambos perderam. É visível e de lamentar: com raríssimas excepções, os autores dos comentários e das análises das duas ou três dezenas de debates eram aficionados. Conclusão: quem designa o “vencedor” é quem escolhe os comentadores.

 

Vivemos tempos estranhos! O tema mais disputado, o segredo mais bem guardado, a questão bélica mais utilizada, a vexata quaestio mais atraente, a grande força dos contendores e a grande vulnerabilidade dos mesmos traduz-se nas mais absurdas perguntas que se fazem um ao outro e que todos lhes fazem: se perder, o que vai fazer? Se sair derrotado das eleições, quem vai apoiar? Se ficar em segundo lugar, promete apoiar quem fica em primeiro? As perguntas mais frequentes fazem sorrir qualquer pessoa. Em vez de perguntar “o que faz se ganhar?”, pergunta-se “o que faz se perder?”. Realmente importante é o vencedor do debate, não o vencedor das eleições.

 

Esperava-se, em território conhecido, que todos estivessem interessados no que o vencedor vai fazer. Por exemplo, se vencer as eleições, como vai agir para salvar o SNS? Mantém uma política dita de “contas certas”? Que garante fazer com os professores, os médicos, os enfermeiros, os oficiais de justiça, os polícias e os militares? Como pensa o seu partido melhorar a situação dos agricultores? Não vale a pena esperar: não, nada, nunca! O que interessa é saber o que vai fazer o outro, se apoia o vencedor caso perca as eleições!

 

Também há muita gente interessada em perguntas difíceis, mas que, por o serem, seriam justamente as adequadas para uma disputa eleitoral. Como pensa que o nosso país será afectado pelos conflitos em curso, no Próximo Oriente, na Ucrânia, em vários pontos de África e no Extremo Oriente? Qual deve ser a política do Estado português relativamente a esses conflitos? Como se deve preparar Portugal para eventuais alterações da ordem internacional e da NATO em especial? Pode-se esperar sentado pelas respostas: não, nada, nunca! Importante é saber se, sem maioria, apoia os governos dos adversários.

 

As grandes questões de Estado que importa tratar e resolver, como sejam a revisão constitucional, os poderes dos órgãos de soberania, o sistema eleitoral, a organização da Justiça e o conceito estratégico nacional serão também devidamente ocultadas. Que pensam os chefes dos principais partidos? Zero! Não se sabe. Não dizem. Não querem ouvir falar. Estão ocupados com questões mais importantes e decisivas para o país e a população, tais como as de saber o que vai fazer um se perder e se vota o orçamento do outro!

 

A defesa e a segurança, sempre vitais, mas agora, de modo brutal, essenciais, estão ausentes de tal modo que se fica mesmo com a impressão de que não sabem o que pensar nem imaginam o que devem fazer. A organização das Forças Armadas, actualmente com falta de pessoal e de envolvimento da comunidade, sem equipamento à altura, nem capacidade para cumprir as suas missões, está fora das cabeças dos candidatos. Não explicam. Não sabem. Não prometem. Não se comprometem. Mas têm urgência em saber o que fará o outro se perder e sobretudo no caso de perderem os dois.

 

Nas questões internas, para além da habitual distribuição de subsídios e descontos, há matéria urgente. Por exemplo, a política de imigração e o controlo das populações a viver ilegalmente. Ou ainda, os prazos da justiça e o desempenho dos tribunais cada vez mais deficiente. Ou, finalmente, o aumento de criminalidade e da corrupção. Quais são os planos dos candidatos? Estão preparados para os debater diante de nós? Sentem-se capazes de assumir compromissos que não sejam as eternas frases de calendário? Não parece ser o caso. Nada disso é importante. Decisivo é saber se o que perde as eleições vai votar o programa do outro. 

 

Fazem campanha eleitoral não para tornar público o que pensam, mas sim para agradar quem os ouve, dar a impressão de que farão o que se lhes diz, acatar quem lhes fala e dar tudo o que pedem. Os candidatos refugiam-se no novo conceito de proximidade para nada dizer e tudo prometer. E com um único propósito: incomodar o adversário, encostar o outro à parede e vencer, como se fosse luta livre.

 

É impressionante a sensação de receio que os Chefes transmitem! Ambos receiam perder e não serem capazes de fazer governo ou de ficarem nas mãos dos pequenos aliados. Deviam estar preocupados com a sua ambicionada maioria e com o que fazer nesse caso, mas não, estão angustiados com a sua minoria e a do outro. Parece até que nunca aconteceu em Portugal. Na verdade, maiorias de coligação ou aliança não previstas antes das eleições, não anunciadas durante a campanha e improvisadas depois, houve pelo menos três: a de Mário Soares com o CDS de Freitas do Amaral e Amaro da Costa, a de Mário Soares com o PSD de Mota Pinto (o famoso Bloco Central…) e a de António Costa com o PCP e o Bloco. Boas ou más, não estavam previstas, resultaram da necessidade. Boas ou más traduziram o sentido de responsabilidade de um ou mais partidos. Assim como foram o reflexo da vontade de poder e da ambição. Tudo dentro das regras democráticas.

 

Hoje, parece pecado não admitir logo à cabeça que pode perder as eleições ou não dizer com quem fará coligações. Mesmo sem conhecer os resultados das eleições. Mesmo sem saber com que aliados se pode contar. Mesmo sem saber o que o eleitorado quer! Exige-se dos candidatos que digam, desde já, se votam moções de censura (sem ver o texto e sem conhecer as circunstâncias), se viabilizam orçamentos (sem conhecer o conteúdo e sem debater as opções) e se apoiam governos sem ver a exacta composição, sem conhecer o programa e sem avaliar as respectivas opções. 

 

Portugal tem contribuído galhardamente para a transformação do debate político em luta livre sem conteúdo político. Só com adjectivos e sem discussão relevante. Elevação e respeito pelo eleitorado são géneros raros na caixa de ferramentas dos candidatos. É só minas e armadilhas.

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Público, 24.2.2024

 

 

 

 

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23.2.24

No "Correio de Lagos" de Jan 24



 

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19.2.24

ABRAHAM GOTTLOB WERNER (1749-1817)

Por A. M. Galopim de Carvalho

À atenção dos professores de Geologia 

 

Geólogo e mineralogista alemão, autor de uma estratigrafia geral, à escala do planeta, e de uma teoria que fez história e ficou conhecida por Neptunismo. Foi professor ilustre da Academia de Minas de Freiberga, na Saxónia, de enorme prestígio na Europa do seu tempo, e director do Geognostische Landesuntersuchung Sachsens. (Serviço de Investigação Geológica e Mineira) deste estado germânico.

 

Segundo a sua concepção neptunista, todas as rochas, excepto as lavas solidificadas dos vulcões activos, eram tidas como materiais depositados e petrificados no fundo do que designou por Oceano Primordial que, segundo ele, outrora cobrira toda a Terra, incluindo os cimos montanhosos. Explicava que águas profundas e turvas haviam contido, em solução ou em suspensão, todos os materiais que formam as rochas da crosta terrestre. Granitos, basaltos, pórfiros, gnaisses, calcários, xistos e muitas outras rochas eram aceites como precipitados marinhos. Grauvaques e arenitos eram vistos como o resultado de decantações terrígenas. Dizia, ainda que, quando as águas baixaram, as rochas, assim formadas e seriadas segundo uma sequência estabelecida, emergiram, ficando integradas na paisagem actual, com todo o relevo que a caracteriza.

 

Deve lembrar-se que a teoria neptunista surgiu na sequência de séculos de crença no Dilúvio, tal como está descrito no Velho Testamento e, até então, ensinado pela Igreja Católica. Para os diluvianistas todos os acontecimentos geológicos estavam descritos nos Textos Sagrados, grande parte dos quais relacionados com catástrofes, única maneira de explicar tão grandes transformações nos reduzidíssimos cerca de 6000 anos atribuídos pelos clérigos à idade da Terra e do homem. A história do planeta contida na teoria werneriana não colidia com as Sagradas Escrituras. Antes, sim, as explicitava numa linguagem tida por científica. O neptunismo vinha em apoio da Bíblia, pois tranquilizava a Igreja que trazia a geologia sob apertada vigilância. Nesta óptica, foram muitos os religiosos que se interessaram por esta ciência em crescimento, cuja aceitação radicou ainda no prestígio do seu autor, considerado um dos grandes mestres da Europa do século XVIII.

 

Apoiando-se, em grande parte, nas investigações dos seus conterrâneos Georg Christian Füchsel e Johan Gottlieb Lehmann levadas a efeito nas montanhas do Hartz, Werner desenvolveu uma ideia de sequência estratigráfica formulada num contexto regional e propôs uma estratigrafia à escala do planeta, numa concepção teórica, à luz do saber de então, que fez época e escola.

 

Em 1787, Werner publicou, na cidade de Dresden, uma pequena brochura intitulada “Kurze Klassifikationen und Beschreibung der verschiedenen Gebirgsarten”, na qual descreveu, das mais antigas para as mais recentes, a sucessão por ele estabelecida, composta por cinco grandes unidades ou Gebirge (um antigo termo mineiro):

 

1 — Urgebirge - unidade primitiva ou de terrenos primários, formada por rochas então entendidas como precipitados marinhos, em especial granitos, pórfiros, gnaisses, xistos e outras rochas que hoje sabemos serem ígneas, umas, e metamórficas, outras.

 

2 — Übergangsgebirge - unidade de transição, depositada logo que o nível do mar começou a baixar (não explica para onde foram as águas). Os correspondentes depósitos passaram a um misto de precipitados químicos e de deposição detrítica terrígena, com escassos fósseis. Esta unidade é composta pelos terrenos que actualmente atribuímos ao Paleozóico superior, com grauvaques, calcários e diabases;

3 — Flötzgebirge - representada por terrenos estratificados do Pérmico, Triásico, Jurássico, Cretácico e Terciário, incluindo calcários, arenitos, lignitos e basaltos antigos. A inclinação dos estratos era vista como uma adaptação dos depósitos ao relevo original submerso e, logo que as águas ficassem mais tranquilas, os estratos tendiam para a horizontalidade.

4 — Aufgeschwemmte Gebirge - unidade formada por depósitos aluviais não consolidados (cascalheiras, areias, argilas), em resultado da desagregação e erosão das rochas mais antigas.

 

5 — Vulkanische Gesteine - unidade constituída por lavas e tufos vulcânicos recentes. Deve acentuar-se que, na concepção neptunista, nem os granitos da Urgebirge, já então descritos nos seus aspectos petrográficos, nem as diabases da unidade de transição, nem sequer os basaltos antigos da unidade Flötzgebirge eram aceites como gerados a partir de um magma fundido. Apenas as lavas e os piroclastos do vulcanismo actual (cujas erupções podiam ser presenciadas) eram vistos como produtos magmáticos expelidos pelos vulcões e, daí, o nome Vulkanische Gestein. Tratava-se, pois, de um conhecimento, na altura, pouco acessível aos habitantes do centro e norte da Europa (incluindo os cientistas), mas, pelo contrário, bem vivido pelas populações mediterrâneas, de há muito familiarizadas com este fenómeno geológico.

 

Era inegável a génese não marinha destas lavas e destes piroclastos, evidências de origem vulcânica bem conhecidas e descritas por homens ilustres como Plínio, no início do primeiro milénio, ou por Agricola, no século XVI. Todavia, para os neptunistas, este vulcanismo, que não podiam negar, resultava da fusão de outras rochas em regiões onde tivesse lugar a combustão de camadas subjacentes de carvão ou de betume, uma concepção errónea vinda da Antiguidade, expressa, por exemplo, no poema latino do século I, Aetna, e reforçada pelo facto de já então serem conhecidas na Europa importantes minas de carvão fóssil. Entre quem assim pensava, contava-se o francês Étienne Guettard (1715 - 1786) que, tendo sido um neptunista convicto, se tornou um dos primeiros defensores da teoria vulcanista, então a despontar timidamente.

 

A sucessão estratigráfica divulgada pelo grande Mestre de Freiberga, vingou por algumas décadas, até meados do século XIX com o valor de uma escala litostratigráfica global que, embora cheia de imprecisões, era a possível nesse tempo. Nesta concepção, os materiais depositados pelas águas do dito Oceano Primordial teriam dado origem aos continentes e formado, praticamente, todas as rochas; estratificadas ou não; que os constituem.

 

A concepção de Werner era amplamente confirmada nos Alpes pelo suíço Horace de Saussure (1740 – 1799) e nos Urais pelo alemão Peter Simon Pallas (1741 – 1811).

 

Porém, duas grandes questões abalavam o neptunismo. Uma delas vinda de um dos seus críticos mais intransigentes, o italiano e contemporâneo Scipio Breislak (1748 - 1826), que perguntava, com alguma ironia, onde se havia escondido toda a água desse imenso oceano global e insistia, dizendo que, por muito grande que fosse, esse oceano não poderia ter contido em suspensão todos os constituintes das rochas da imensa crosta. A outra questão centrava-se na origem do basalto.

 

O geólogo italiano Arduíno de Pádua e os franceses, Jean-Louis Giraud Soulavie, Faujas de Saint-Fond e Déodat Dolomieu, seus contemporâneos, familiarizados com o vulcanismo actual e subactual, defendiam que o basalto antigo (entendido, no modelo neptunista, como um precipitado químico, a partir das águas do dito oceano) era, pura e simplesmente, rocha solidificada a partir de lava produzida por vulcões há muito extintos. A esta nova concepção, Werner contrapunha, afirmando que o basalto antigo com as características das lavas actuais resultava do facto de o precipitado original ter sido fundido pelo fogo alimentado pela combustão das camadas de carvão subjacentes, um argumento que não convenceu os seus opositores.

 

Surgiu, então, uma das mais notáveis polémicas no domínio das geociências. Aos neptunistas, centrados na escola alemã de Freiberga e, por isso, também chamados wernerianos, opunham-se os vulcanistas contemporâneos, com particular relevo para os geólogos italianos e franceses, com toda a experiência que tinham do vulcanismo activo no Mediterrâneo, no caso dos primeiros, e do vulcanismo relativamente recente, do Miocénico inferior (20 Ma) ao Quaternário, embora extinto mas ainda evidente, nos Puys-de-Dôme, no Maciço Central francês, no caso dos segundos.

 

Serenados os ânimos e numa análise histórica, necessariamente desapaixonada, deve atribuir-se à visão neptunista o mérito de ter interpretado a consolidação dos sedimentos de uma forma mais correcta do que a contida na teoria plutonista protagonizada por James Hutton (1726 - 1797), na Escócia. Com efeito, a diagénese está mais próxima da concepção werneriana do que a preconizada por Hutton e seus seguidores, que apontavam o calor como o principal agente da consolidação dos sedimentos. Assim, por exemplo, para os plutonistas, os conglomerados, que hoje sabemos serem de cimento silicioso, eram vistos, erroneamente, como cascalheiras antigas que haviam sido penetradas ou injectadas por sílica em fusão, a mesma que, segundo eles, gerava as concreções de sílex no Cré (Cretácico) inglês e francês. A teoria de Werner assentava numa sequência de estratos que, não sendo ainda a biostratigrafia dos séculos XIX e XX, tinha valor cronológico, embora relativo. A teoria de Hutton prescindia desse enquadramento temporal indissociável da história geológica, o que constituiu uma das suas fragilidades.

 

Os trabalhos verdadeiramente pioneiros de Werner contribuíram para a consagração da geologia e da mineralogia como ciências distintas. Quanto à primeira, divulgou o termo Geognósia, proposto por Georg Christian Füchsel (1722 – 1773) a meados do século XVIII, como designação de uma disciplina de acentuado cunho geológico, definida como a “ciência que trata da Terra sólida como um conjunto e das diferentes origens e localizações de minerais e rochas, assim como das suas interrelações”. Werner estabeleceu, ainda, as primeiras teorias (com base nas então modernas física e química) para explicar a origem e as características das formações geológicas. Sob o seu impulso, as ciências que hoje compõem a geologia ganharam um novo ímpeto e a observação e estudo da estrutura da Terra passou a seguir o moderno método científico.

Werner desenvolveu a mineralogia como um dos campos mais avançados e importantes da engenharia de minas do seu tempo. Neste campo, foi o primeiro cientista a propor um sistema verdadeiramente científico de classificação dos minerais, sendo apontado pelos historiadores das geociências como o “pai da mineralogia moderna”. Apesar de hoje ser considerada obsoleta, esta classificação ainda tem marcas na actual mineralogia. A sua nomenclatura dos minerais e muitas das suas descrições ainda são utilizadas. Tendo sido um ávido coleccionador de minerais, reuniu uma colecção de mais de 10 000 exemplares que legou à sua Escola e que hoje está patente na Technische Universität Bergakademie, de Freiberga.

 

A wernerite, um tectossilicato de alumínio e sódio, do grupo da escapolite, foi assim designado, em 1800, por José Bonifácio de Andrada e Silva, em homenagem a este que foi seu professor.

 

Em 1848, também a associação mineralógica (Mineralogische Gesellschaft), de Dresden, construiu um monumento em sua honra no cemitério de Annen de Löbtau e conseguiu que esta cidade desse o nome de Wernerstraße a uma das suas ruas. Em 1851, Werner foi homenageado com um monumento colocado na movimentada Promenaden, no centro de Freiberga.

 

A Sociedade Alemã de Mineralogia (Deutsche Mineralogische Gesellschaft) instituiu em sua honra a Medalha Abraham-Gottlob-Werner, no sentido de galardoar os cientistas que se distingam no campo da mineralogia e ciências afins.

20 de Outubro de 2011

 

 

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17.2.24

Grande Angular - Campanha eleitoral: Falhas intoleráveis

Por António Barreto

É um nariz de cera conhecido: “esta campanha eleitoral não vale grande coisa, as anteriores é que eram boas”. Acontece que não é totalmente verdade. Esta pré-campanha começou muito bem. Duas vantagens são já indiscutíveis. Por um lado, os debates de chefes animaram o público que parece acorrer a ver e ouvir. É verdade que ficam a perder os partidos, as equipas e as políticas, tudo se limitando às qualidades e aos talentos dos líderes. Mas estes têm pelo menos o condão de atrair e interessar. Por outro lado, já se percebeu quais são os tabus, isto é, os temas de que os partidos não querem falar, nem assumir compromissos. Grande mérito o de mostrar o que os candidatos pretendem esconder.

 

Em primeiro lugar, a Justiça. Nem é necessário recorrer aos tempos, longos e inacabados, de Sócrates, do BES, da PT, do BNP e de tantos outros. Depois do que se passou recentemente em Lisboa, na Madeira e em Coimbra, há cada vez menos dúvidas sobre a actuação do Ministério Público: as suas ingerências na política, as suas incompetências técnicas ou a sua rivalidade com polícias e magistraturas. Mais ainda do que isso, os últimos anos têm revelado uma Magistratura Judicial absolutamente incapaz de tratar da grande criminalidade associada ao poder político, à grande fortuna, à corrupção, ao futebol ou ao mundo dos negócios públicos ou privados. A rivalidade entre polícias não ajuda. As reivindicações dos oficiais de justiça só complicam. A culpa e o crime de vários juízes e procuradores ilustram este pesadelo, já alimentado pela criminalidade em que estão envolvidos políticos, governantes, administradores de empresas públicas, autarcas, empresários e banqueiros. Todos os casos sobejamente conhecidos e que, há anos, fazem o quotidiano da comunicação social, têm de comum as falhas e as deficiências da Justiça. Sendo que a rivalidade entre Magistrados e entre estes e Procuradores atinge as raias da obscenidade.

 

Nunca vivemos, como agora, tão intensa e delicada crise da Justiça. Agravada esta pela abdicação dos poderes políticos e pela desistência dos órgãos de soberania. Além disso, a passividade dos profissionais e a ineficácia das instituições tornam tudo mais difícil. Para completar este quadro, a rivalidade entre profissionais e as lutas internas entre e dentro dos grandes corpos da justiça são tais que os direitos dos cidadãos são postos em perigo. Finalmente, é confrangedora a paralisia do governo e do Parlamento. Fica-se com a impressão de que os magistrados e os procuradores desprezam e desconfiam dos políticos e de que estes têm medo daqueles e das suas informações. Fora dos debates eleitorais, a Justiça revela bem a sua crise e a sua ameaça. O silêncio dos candidatos mostra bem o seu medo e a sua cumplicidade. Ora, está em causa a liberdade de um povo. Como é sabido, sem Justiça não há democracia. Nem liberdade.

 

Segundo, a política internacional e as questões europeias. Como nunca desde há setenta anos, os perigos e as ameaças são enormes. As guerras em curso, as alianças antigas e novas e as crises iminentes em várias partes do mundo exigiriam esclarecimentos, empenho e compromisso por parte dos nossos políticos e candidatos. A previsível crise da NATO deixa qualquer europeu, ou qualquer português, pelo menos inquieto. O desmantelamento e a suspensão da Aliança são perfeitamente possíveis. Mesmo num pequeno país como o nosso, sem capacidade militar para influenciar o curso da história, exige-se que os governantes esclareçam o seu povo. Estão essencialmente em causa a sua liberdade, a sua segurança e a sua paz.

 

Terceiro, a defesa nacional e segurança europeia são assuntos estranhos e alheios às eleições portuguesa. Pela sua urgência, todas as questões essenciais à defesa e à segurança dos portugueses necessitam de pensamento e esforço colectivo. Sem capacidades para uma defesa auto-suficiente, a nossa política de defesa tem de ser sufragada e devidamente orientada, incluindo o equipamento, o orçamento, o serviço, o recrutamento e a sua organização. Nada disto merece a atenção dos candidatos. Estes têm receio das dificuldades do tema, dos sacríficos impostos, dos gastos e da própria ignorância. Está em causa a capacidade dos portugueses para integrar uma defesa colectiva e uma segurança europeia. Sem o que não passaremos de parasitas. E ninguém nos respeitará.

 

Quarto, as políticas de imigração e emigração. É, por causa dos preconceitos, um dos temas mais delicados. A maior parte dos candidatos receia-o. Ou prefere esconder as suas posições. Ou não quer correr os riscos de um pensamento difícil. Verdade é que Portugal vive um dos períodos, da sua história, de maior emigração para o estrangeiro. E, ao mesmo tempo, o período de maior imigração de estrangeiros. Estes dois movimentos de população traduzem quase tudo o que há de importante numa sociedade: identidade, capacidade económica, educação, rendimentos e condições sociais. O trabalho ilegal, o tráfico de força de trabalho e a residência clandestina são cuidadosamente evitados. Às dificílimas questões da “Integração Versus Multiculturalismo”, assim como do controlo dos movimentos demográficos, os candidatos, em geral, fogem espavoridos.

 

Abundantemente presentes na campanha estão as dádivas, os presentes, o “bacalhau a pataco”, o “cabrito com batatas”, o “vinho a tostão” e o bodo aos pobres! O que cada partido oferece aos eleitores de aumentos ou de reduções, de benefícios ou de isenções, nem anos de orçamento comportariam. Sem fazer as contas, toda a gente oferece tudo o que lhe vem à cabeça. Evidentemente, já são contemplados a educação, a saúde, os salários, o ambiente e a segurança social. 

 

Além do tacticismo político mais imediato e barato. Como, por exemplo, as questões de arremesso desta temporada: com quem não fazes aliança? Quem recusas? Com quem governas caso não tenhas maioria absoluta ou caso fiques em segundo lugar? Quem prometes excluir? São perguntas legítimas, mas fáceis e superficiais. Além de que retiram aos partidos, antes da eleição, liberdade de acção. Na verdade, a melhor resposta é a de simplesmente garantir que se fará o que o eleitorado quiser. Ponto final. Não é possível dizer que, nesta campanha e até agora, não se tenham abordado questões importantes. Não seria verdade. Mas é certo que as ausências são graves e significativas. 

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Público, 17.2.2024

 

 

 

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14.2.24

UMA REFLEXÃO EM TORNO DA POESIA

Por A. M. Galopim de Carvalho

Dei por mim, há dias, a folhear uma antologia com obras dos mais distintos poetas portugueses deparei-me, com este “Entre os teus lábios” de Eugénio de Andrade, figura maior da poesia portuguesa contemporânea, de entre os mais lidos e traduzidos, de entre os mais premiados, mas, ignorância minha, não a sei apreciar. Que me desculpem os entendidos. Não me diz nada. 

Eis o poema que li:

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Entre os teus lábios 

é que a loucura acode,

desce à garganta,

invade a água.

No teu peito

é que o pólen do fogo

se junta à nascente,

alastra na sombra.

Nos teus flancos

é que a fonte começa

a ser rio de abelhas,

rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos

é que a areia queima,

o sol é secreto,

cego o silêncio.

Deita-te comigo.

Ilumina meus vidros.

Entre lábios e lábios

toda a música é minha.

 

Li, depois, ”Em todos os jardins”, da grande Sophia de Mello Breyner, outra figura maior da poesia portuguesa contemporânea e, não obstante, a minha atrás confessada ignorância, digo que é desta poesia que realmente gosto. Não me permito qualificar, digo apenas que esta me diz muito, que me enche a alma, enquanto que a outra pouco ou nada me diz.

Eis o poema de Sofia.

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Em todos os jardins hei de florir,

Em todos beberei a lua cheia,

Quando enfim no meu fim eu possuir

Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,

A tudo quanto existe me hei de unir,

E o meu sangue arrasta em cada veia

Esse abraço que um dia se há de abrir.

Então receberei no meu desejo

Todo o fogo que habita na floresta

Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,

A secreta abundância dessa festa

Que eu via prometida nas imagens.

 

Comecemos, então, por dizer que a palava “poesia”, com raiz no termo grego poíesis, alude à acção de fazer alguma coisa, nos chegou através do italiano, poesia

Na minha ignorância sobre tão importante e delicado tema, atrevo-me a dizer que aprecio, sobretudo, a poesia entendida como um género literário caracterizado pela composição em versos estruturados de forma harmoniosa, que eu diria, musical. À falta de competência para caracterizar a poesia de que estou a falar, exemplifico com a de Camões, de Bocage, a de muitos poetas do século XIX, como Cesário, Antero e Garret, e alguns do século que passou, como Torga, Gedeão, Florbela, Aleixo e Ary. Estas e muitas outras que ficam por citar, são, para o meu gosto, manifestações de beleza e estética, criadas com palavras. 

É a que mais fácil e belamente entra na minha sensibilidade. Fiquei amarrado a um tipo de poesia marcada por elementos formais, como a rima, o ritmo, em versos e estrofes que lhe definem a métrica. É, porque a entendo, a susceptível de me despertar os mais variados sentimentos.

Ao longo da História, a poesia, seja ela a que, na minha ignorância, chamarei de antiga, seja a que se diz moderna, que não me atrai, tem sido usada como uma forma literária de expressar os mais variados sentimentos, como o amor, a felicidade, a dor, a solidão, a tristeza, a saudade, entre muitos outros. 

Não acompanhei o desenvolvimento ou, melhor dizendo, a transformação da poesia ao longo do século XX. Fala-se de poesia moderna, na qual, se destacam elementos do modernismo e do chamado pós-modernismo. Trata-se de uma matéria que não domino. Só sei que, na poesia, o autor tem liberdade para definir o seu próprio ritmo e criar as suas próprias normas. Só sei que nela os versos não têm de ter rima obrigatória, nem seguem nenhuma métrica. 

É senso geral que só se gosta daquilo que se conhece e é, talvez, só por isso que a não sei apreciar.

 

 

 

 

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10.2.24

Grande Angular - Perigos, ameaças e fantasmas

Por António Barreto

O partido Chega é provavelmente a maior novidade do sistema político português e da história política recente. De importância parecida, mas efémero, foi o PRD dos anos oitenta. Ainda de grande significado, o quase desaparecimento do CDS e do PCP. De menor importância, mas ainda sem que se saiba o seu futuro, o Bloco de Esquerda. Com valor e longevidade por apurar, são a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre. E pouco mais. O Chega, com 12 deputados e 7,5% dos votos, em tão pouco tempo, merece atenção. Em menos de cinco anos, ultrapassou o Bloco e o PCP e é o terceiro partido! Mais do que isso, os valores atingidos nas sondagens, cerca de 20% actualmente, apontam já para uma realidade de peso. Mais ainda: o lugar que este partido ocupa no espaço público, nas redes sociais, no Parlamento e nas reuniões partidárias, fazem dele um fenómeno. Para muitos, uma ameaça. Para alguns, um perigo iminente. Para todos, um espectro. Como na Europa.

 

Sem qualquer dúvida, este partido é nacionalista, de direita, conservador, com veios de extrema-direita e laivos de xenofobia. É populista, diz-se agora. Tem sobretudo uma inteligência intuitiva afinada: mal surge uma deficiência, uma razão de queixa, um problema social, uma incompetência do Estado ou uma qualquer crise, logo André Ventura e o seu partido “saltam”, atacam o problema e denunciam os que entendem ser os responsáveis, isto é, todos os outros, sobretudo o governo e o PSD. Fome, greves, trabalho clandestino, crime, droga, pobreza, violência, miséria nas periferias, filas de espera nos hospitais, baixos salários em todos os sectores, nada escapa ao Chega. Corrupção, nepotismo, favoritismo familiar ou partidário são talvez as principais molas que o fazem reagir com prontidão e espalhafato.

 

Para muitos, é um partido fascista ou neofascista. De simpatias neonazis, evidentemente. E de antepassados salazaristas. Para esses, os responsáveis pelo seu crescimento são as forças de direita, assim como os partidos socialistas que mais não fazem do que a política da direita. Para outros, são variadas as explicações para este fenómeno. Na velha tradição marxista, trata-se de obra e graça do grande capital monopolista e da política do imperialismo. As contradições do capitalismo actual e a decadência do imperialismo americano exigem partidos deste género, dizem. Contra o simplismo desta teoria, elevaram-se opiniões, com outra dimensão epistemológica: este seria um partido tipicamente da pequena-burguesia, aquela que se encontra, sem passado nem futuro, entre o mundo do trabalho e o do capital. Sem ideologia de classe, um partido como este é atraído pela demagogia anticapitalista e sobretudo pela fúria anticomunista. Outras explicações, se assim se podem chamar, filiam este partido na mais pura tradição nacionalista, anti internacionalista, anticomunista e antieuropeia. Seria um partido do passado, contra a modernidade. Já agora, um partido com raízes rurais e católicas.

 

O partido Chega, pobre em doutrina e programa, oportunista e provocador como nunca se tinha visto em Portugal, beneficiando de arguto sentido da ocasião, é o resultado das deficiências da democracia. Das dificuldades do Estado providência e da democracia contemporânea. Da partidocracia reinante, à esquerda e à direita. Vive no abismo que cresceu entre os Estados e a União Europeia, por um lado, os cidadãos e as instituições, por outro. Caça e pesca nas águas turvas das comunidades nacionais em crise causada pela globalização. Nunca se ouviu justificar as suas causas na liberdade individual ou nos direitos dos cidadãos. Nunca se viu fundamentar a sua acção na democracia. O partido denuncia a democracia, não a enriquece nem alimenta.

 

O seu mais eficaz programa diz, em poucas palavras, que deve denunciar todas as crises, dificuldades e carências. Há sempre culpados para os problemas sociais. Protesta contra tudo e todos que reputa responsáveis pelo regime actual. Como ainda não tem currículo, nem experiência política, nem tradição autárquica, isto é, como ainda não deve nada a ninguém, denuncia e acusa todos e cada um. Propõe-se, com enorme despudor, privatizar o que está nacionalizado ou nacionalizar o que privado é. Expulsar, proibir e prender são verbos que conjuga com familiaridade. É partido com a inteligência suficiente para, sem doutrina nem programa, apurar as suas artes no protesto e na denúncia. Chora diante da pobreza, geme perante a corrupção. Escandaliza-se com a corrupção dos democratas. Desespera com a intervenção europeia, a perda de independência e a submissão aos interesses internacionais. Não se sente tolhido pela Igreja, nem pela Maçonaria. Não depende de patrões ou de sindicatos. Usará a democracia enquanto esta lhe for útil, para crescer, usufruir de espaço público, denunciar democratas e vilipendiar poderosos. Se, um dia, a democracia lhe impuser o respeito pelos outros, assim como o obrigue a seguir as leis e acatar a tradição, nesse dia, o mais provável é que atire a democracia às urtigas. A sua palavra de ordem é o mais medíocre dos clichés: “limpeza”!

 

Incapazes de derrotar a direita, os socialistas esperam que o Chega a divida. Querem que o Chega seja o seguro de vida da esquerda, tal como o PCP foi, da direita, durante os anos de ostracismo. Os comunistas e o Bloco limitam-se a denunciar o capitalismo e a culpar os socialistas, estimando que, se estes fizessem o que eles querem, o fascismo seria derrotado. Todos os partidos, sem excepção, deram um precioso contributo para a crescimento do Chega. No governo, os socialistas trouxeram causas ao Chega. Nos hospitais, nas escolas, nas fronteiras, nos transportes públicos, nos bairros periféricos e nos centros das cidades, os democratas estão a alimentar o Chega à mão. O desdém dos partidos democráticos pelo povo e pelas vítimas, pelos pobres e pelos necessitados, é uma linha de vida do Chega. Estes partidos agem como se os eleitores do Chega não fossem cidadãos como os outros. A democracia sem tom nem som, com preocupação pelas intrigas, é uma vitamina do Chega. O Chega não é um inimigo externo, não vem de fora da sociedade, muito menos fora do país: nasce das falhas e da miséria da democracia portuguesa. Jornais e televisões colocaram-no no centro do mundo. Os partidos democráticos fizeram dele o inimigo e a ameaça. Não cessam de a ele se referir. Talvez se queixem, um dia. Mas queixam-se da sua própria obra.

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Público, 10.2.2024

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