27.8.22

Grande Angular - Abertura da temporada

Por António Barreto

Uns com romarias ou comícios, outros com seminários e debates: os partidos abriram a temporada. As primeiras impressões não surpreendem. Até agora, limitaram-se às habituais banalidades, à coreografia e aos compromissos inconsequentes. Tudo a pensar nas sondagens, dado que eleições não há.

Vai ser um duro Inverno. A saúde pública continua sob ameaça permanente. A pobreza manter-se-á a níveis elevados. O aumento do custo de vida já é colossal, mas nada que se compare com o que aí vem, com os preços da energia, dos alimentos, dos transportes e da habitação. As dificuldades de aprovisionamento, com rupturas de alguns bens essenciais, serão tão más como os aumentos.

Ao contrário do que se possa pensar, a altura é para grandes obras e bons planos, não apenas para acorrer ao efémero. Não há eleições tão cedo. Não se anunciam novas crises dentro dos partidos, nem nas relações entre as instituições. Nesta paz, que corre o risco de ficar podre, não seria o momento ideal para pensar a prazo, mas agir de imediato, para reformar com coragem, para solicitar apoio de independentes, para convocar gente isenta, para entusiasmar técnicos competentes e para chamar o que há de melhor em Portugal e no estrangeiro? Não seria a altura de pedir ajuda a quem sabe para tratar daquilo para que este governo, e outros antes dele, se mostraram incapazes? As necessidades e as urgências são evidentes.

Diz a mitologia política, com alguma razão, que o Serviço Nacional de Saúde é o melhor que se fez em Portugal desde há quarenta anos. Por isso, custa a perceber a razão pela qual o serviço se encontra neste estado. Há muitos médicos, mas não chegam. Há cada vez mais enfermeiros, mas não são suficientes. Persistem as filas para consulta e cirurgia. Mantém-se as longas esperas por urgências. Em muitos casos, o desconforto hospitalar, em macas, nos corredores e em anexos desadequados, é desumano. Se é verdade que nem tudo correu mal durante os dois primeiros anos de pandemia, também é certo que as enormes e crescentes deficiências perduram em todas as áreas. O pessoal contratado aumenta sempre, os orçamentos crescem de modo imparável e único. Portugal tem, na Europa, uma das maiores percentagens da despesa pública com a saúde. Grande parte da população, de todas as preferências políticas, quer o SNS, pede que seja defendido e espera que seja mais eficaz e menos desigual. Por que razões se mantém este permanente clima de crise no SNS? Como se explica a manutenção de tão elevados padrões de desigualdade? Por que motivos estamos a assistir a esta verdadeira obscenidade política, social e sanitária que é a crise das urgências de obstetrícia e ginecologia? Como é possível aceitar o argumento de algumas autoridades, segundo o qual a saúde privada é a responsável pela crise na saúde pública? 

Há, na saúde pública, uma crise de gestão terrível e surpreendente, uma falta de sabedoria notória e aflitiva. Por que insistem o governo e o Primeiro Ministro em soluções gastas e ineficazes? Como se explica o facto de não haver discernimento suficiente para substituir os dirigentes e os responsáveis políticos? Como é possível prolongar esta situação desastrada? Quanto tempo ainda teremos de suportar esta ladainha de explicações sobre as crises estruturais e as causas antigas? Quantas vezes ouviremos ainda as descrições das intenções do governo, das medidas legais a tomar e das reformas a longo prazo em preparação?

Por incompetência, cumplicidade, conivência, medo e desinteresse, os actuais governantes, e outros antes deles, desistiram de rever e reformar a justiça em todas as áreas que está a necessitar. A corrupção, o nepotismo e a irregularidade administrativa ficam fora da justiça portuguesa. Os ricos e os poderosos, assim como as luminárias partidárias, também. Segundo estudos e sondagens recentes, alguns magistrados e outros agentes da justiça e do direito colocam-se fora do alcance da justiça. Esta renúncia à acção, esta abdicação e esta desistência já não têm solução. A particular configuração da justiça assim o impõe. A independência judicial e a organização corporativa são tais que resultam em anulação de forças. A justiça dos poderosos manter-se-á em crise. Para nosso desespero. Mas há um sector que merece atenção, pelas consequências sociais, criminais e morais. Os serviços e processos de legalização de estrangeiros, de acolhimento descontrolado de refugiados e trabalhadores, de alojamento ilegal de imigrantes, de tolerância de trabalho clandestino, de concessão facilitada de vistos “dourados”, de complacência com “descendentes” sefarditas, com oligarcas russos e com milionários asiáticos e, finalmente, a abstenção perante as redes de traficantes de trabalhadores, estão a criar uma situação insuportável, de graves consequências para o futuro próximo. Não seria a altura, ainda por cima em período de guerra, de pôr um pouco de ordem e de legalidade em todo este sector? 

Depois de décadas de indecisão, de decisões definitivas, de negações, de desditas, de colossais fortunas gastas em estudos, continuamos quase na estaca zero do aeroporto de Lisboa. Com todas as suas implicações, é este o maior projecto de investimentos jamais feito e não repetível. Portugal está atrasado em dez ou vinte anos. Não é possível continuar a ver as mesmas pessoas a dizer coisas diferentes, conforme os interesses e as oportunidades. Não é aceitável que um governo diga que quem decide é o partido da oposição. Não é tolerável que do mesmo partido e dos respectivos responsáveis tenha havido pelo menos cinco decisões definitivas sobre a vocação, as funções, a configuração, os prazos, a dimensão e a localização do aeroporto. É chegada a altura de tomar decisões informadas, responsáveis e competentes. Tal, aliás, como com a TAP, espinha atravessada na economia, contradição eterna, poço sem fundo de prejuízos e maus gastos. O que se poderia também dizer dos comboios, da rede ferroviária nacional, regional e local, em permanente degradação, desconfortável, insegura, ultrapassada, abandonada, resultado de um processo de negligência quase criminosa. Na confluência dos transportes aéreos, ferroviários e marítimos estão seguramente a maior urgência, o mais vasto projecto e o mais profundo investimento da história do país.

Apetece dizer: o catálogo é este.

Público, 27.8.2022

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26.8.22

Que será feito do General Prado?

Joaquim Letria

Ignoro se o general boliviano na reserva e ex-dirigente destacado do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria, filiado na Internacional Socialista)) Gary Prado ainda comemorará o assassínio que cometeu enquanto capitão, há 53 anos.

Desconheço também em que  âmbito o fará. Não sei se ainda o homenageiam pelos ferimentos que recebeu numa “operação de limpeza” de trabalhadores revoltados em Santa Cruz de La Sierra, de onde só passaram a chegar-nos resumos de importantes jogos de futebol da Copa América…

É natural que o general Prado ainda hoje finja retirar importância à rajada célebre que o deixou na História e que disparou há 52 anos sobre aquele prisioneiro desarmado, indefeso, ferido, médico de profissão, revolucionário por convicção, utópico por coração, argentino por nascimento, Ernesto por baptismo, “El Che” por alcunha e Guevara por apelido. 

“O caso Guevara foi um pequeno episódio tornado famoso pela propaganda” diria modestamente, mais tarde, o general Prado que naquela altura não passava de capitão, tal como assim era quando pela primeira vez ouvi falar dele em La Higuera, quando aí me mandaram fazer reportagens, andava eu pela Bolívia, ainda antes de ter a oportunidade de entrevistar o Presidente da Bolívia, General René Barrientos.

Às vezes as utopias, os sonhos, os pesadelos, as mentiras e as verdades, e as vidas dos outros e a de nós próprios assaltam-nos de noite a memória, tal como me aconteceu agora com o general Prado. Que será feito dele?!

Publicado no Minho Digital

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25.8.22

O coração de D. Pedro IV

Por C. B. Esperança

Penso que sabia, desde há muito, que D. Pedro IV tinha declarado deixar à cidade do Porto o coração, então uma cidade liberal de onde o rei partiu para a libertação do País do absolutismo monárquico que D. Miguel, seu irmão, pelo menos pela parte materna, impunha de forma violenta com a ajuda entusiástica do clero rural miguelista.

O que julgava ser uma metáfora, deixar o coração à cidade do Porto, à semelhança da minha afirmação, deixei o coração na aldeia dos meus avós maternos, era afinal uma realidade.

O cadáver foi esquartejado para lhe arrancar a víscera real, duplamente real, no músculo verdadeiro e na linhagem do dador.

Para quem via na ideia de guardar peças de cadáver, sem fins científicos, uma tendência mórbida das religiões, da Capela dos Ossos, em Évora, ao corpo de S. Francisco Xavier, em Goa, dos relicários de várias religiões aos corpos de monges que o budismo guarda em santuários, deparou-se agora com o coração do Sr. D. Pedro IV de Portugal, Pedro I do Brasil, conservado em formol na capela-mor da igreja da Lapa, no Porto.

Há uma profunda ironia no local onde ficou guardado o coração real de um destacado maçon que combateu o absolutismo real contra o catolicismo ultramontano que apoiava o miguelismo sob os auspícios da maçonaria cujo pendor liberal está na sua génese e os seus mais destacados membros fizeram a Revolução de 1820.

Afinal, não são apenas os santos os retalhados para as relíquias que inspiram a piedade dos devotos. Também um maçon, decorado com o mais alto grau da instituição que está excomungada pela Igreja católica, tem honras pias na capela-mor de uma igreja romana onde lhe guardaram o coração desde 1834.

É possível que a ironia ofenda quem vê na relíquia, não uma profanação do cadáver de D. Pedro, rei que é património do liberalismo, e põe agora em euforia os reacionários, desde o edil do Porto ao abrutalhado PR do Brasil. O primeiro já alvitrou a exposição da víscera de cinco em cinco anos para exibir um recipiente de formol com um coração dentro.

Se houver o regresso à macabra celebração de pedaços de cadáver não faltarão devotos a desejar que, quando se finarem, sejam preservados o fígado de Cavaco, o cérebro de Passos Coelho, a língua de Marcelo, os pulmões de Carlos Lopes ou os pés de Ronaldo.

Foi pena não ter ocorrido aos seus contemporâneos guardar, para exemplo, o órgão de um certo abade de Trancoso a que deve a celebridade que a posteridade consagrou.

Não sei se fui eu que perdi o juízo ou se há, como julgo, muita gente ensandecida, mas temo o proveito político de Bolsonaro graças à viagem da víscera de D. Pedro e dos acompanhantes em turismo fúnebre. 

Ponte Europa / Sorumbático


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20.8.22

Grande Angular - Um Verão violento

Por António Barreto

Um dia, mais tarde, recordaremos talvez este Verão de rara violência e de perigo iminente. Estranhamente, mas talvez fosse previsível, a população de muitos países, europeus nomeadamente, parece querer gozar os dias e as férias sem preocupação excessiva. Ou porque já se entende que dois ou três anos foram de mais. Ou porque nem sempre se mede a convergência de perigos e a conjugação de ameaças. Ou, finalmente, porque se trata das melhorias antes da desgraça. Do descuido que precede o desastre.

Basta olhar para os noticiários das televisões. Durante as últimas semanas ou meses foram o exacto espelho das tragédias e dos perigos. Os alinhamentos só dependem do dia da semana ou da semana do mês. A sequência é variável.

Os bombardeamentos na Ucrânia não diminuem, antes pelo contrário, com cidades destruídas, bairros e prédios civis derrubados. Entre cinco a dez milhões de ucranianos já fugiram para o exílio em outros países.

Os fogos florestais, apesar de previsíveis e previstos, não cessam enquanto houver calor e não chegue chuva. São dezenas de milhares de hectares perdidos, juntamente com animais, casas, fazenda e equipamentos. Pela Europa fora (e pelos Estados Unidos), são centenas de milhares ou milhões de hectares perdidos. O clima não explica tudo. Responsabilidades humanas e incompetência das autoridades ajudam.

Continua a pandemia, lentamente, em decréscimo aparente, mas ainda com dois ou três milhares de casos por dia. No total, foram valores altíssimos: só em Portugal, quase 5,5 milhões de casos e perto de 25 mil mortos. Na Europa, 200 milhões de casos e dois milhões de mortos. E no mundo, mais de 500 milhões de casos e seis milhões de mortos. Apesar dos progressos da ciência, da medicina e da protecção civil. Não há memória de nada de parecido, em tão pouco tempo, no último século. E ainda não acabou.

O Serviço Nacional de Saúde, resistente até onde foi possível, entrou em colapso. Em muitos hospitais e maternidades as urgências de obstetrícia e ginecologia fecham uns tantos dias por semana. Esses dias já são anunciados previamente. Um dos mais seguros pilares do Estado Social está em crise, treme e oscila. É um dos sinais mais desoladores da má gestão e da incapacidade das autoridades. 

Os aumentos dos preços dos produtos alimentares e de bens essenciais registam todos os dias valores desconhecidos há várias décadas. Já não são apenas queixumes e impressões. Agora há a certeza de que a inflação e a subida de preços, sem o correspondente aumento de rendimentos, estão a degradar a vida das populações, sobretudo, como sempre, os pobres, os remediados, as classes de trabalho e até as classes médias. Em menos de um ano, os melhoramentos de vários anos desapareceram e não é seguro que seja possível repor a breve trecho.

De fora, longe, chegam só noticias de alarme. Não vale a pena fingir que não é verdade. Nem pensar que há uns pessimistas que exageram. Não! Desta vez, o mal é universal, os perigos são enormes, as ameaças fatais e o medo colossal. Todos os grandes mercados e comércios estão parcialmente desmantelados. Os da energia, da electricidade, dos petróleos, do gás e do carvão. Mas também os dos produtos alimentares, sobretudo dos cereais.

Mundialmente, a crise económica, energética e alimentar está a provocar vítimas em números quase inimagináveis. Na África oriental, vários milhões de pessoas vão morrer de fome e doença no mais curto prazo. No mundo inteiro, cerca de 400 milhões de pessoas necessitam urgentemente de ajuda humanitária. Para o que não há, aparentemente, meios, clima, infra-estruturas, transportes, vontade, cooperação internacional e decisão eficaz.

Ricos e poderosos não querem abrir as mãos. Pelo contrário, parecem estar convencidos de que o momento é propício a aumentar os poderes e a multiplicar bens e fortunas. Há crescentemente histórias de miséria e de multidões esfomeadas. E é cada vez mais difícil organizar a filantropia, gerir a protecção e acudir a quem necessita. Em ambiente de crise e guerra, a ajuda humanitária é difícil.

A Rússia de Putin destruiu a configuração mundial existente. O ditador quer substitui-la por outra, na qual a sua Rússia tenha papel determinante. É o que está a fazer, sem escrúpulos e com toda a violência de que é capaz. O que sobrar, depois do que ele fizer, não voltará a ser o que era, nem sabemos o que será. Mas vai demorar anos, muitos, a encontrar um novo equilíbrio mundial de cooperação. Não sabemos, hoje, a que preço e com que custos de vidas humanas, de países, de instituições, de liberdade e de paz. O especial talento de Putin é o que se vê no exercício ou na utilização da mais bárbara violência sem remorsos nem moderação. E no desrespeito da lei internacional. Para Putin, a violência, a imposição e a força bruta são os primeiros argumentos, não os de defesa, de último recurso ou de derradeira necessidade. O mundo vai ter de viver com esta realidade durante muito tempo. As alianças que Putin procura, na China, na Índia, no Irão e algures na Ásia e na África, dispensam todas as liberdades e a democracia. Não é por acaso que, para lutar contra o Ocidente, Putin procura entre ditadores e autoritários os possíveis companheiros de jornada. Resta-nos uma sombra de esperança ou de optimismo: nunca a Rússia, a Índia e a China se entenderam por períodos duráveis e interesses comuns. Para já, querem ter um lugar à mesa. Mas, neste trio, há sempre dois a mais.

São tempos de pagar por erros passados. Os democratas do mundo inteiro confiaram excessivamente em si próprios, não trataram dos que sofrem, deixaram crescer a desigualdade social e não cuidaram das migrações. Não se importaram com a corrupção dos seus sistemas de governo e deixaram que a política democrática se transformasse numa actividade suspeita e duvidosa. Ajudaram às deslocações de empregos e indústrias, fizeram negócios com o diabo e foram complacentes com o terrorismo. Não recearam os totalitários, desde que fizessem negócios com eles. Entregaram-se nas mãos dos produtores de petróleo e gás e dos fornecedores de força de trabalho barata.

Além de recuperar a vida e a tranquilidade. Além de voltar a encontrar algum bem-estar económico. Além de procurar equilíbrio social no espaço público, além disso tudo, que não é pouco, importa recuperar a paz política, o clima de diálogo e um esforço de cooperação. Mas, sobretudo, procurar com democracia e liberdade. Ora, de todo o mundo, chegam apelos e movimentos de extrema-esquerda e extrema-direita que procuram aproveitar os erros das democracias. Fazem parte da crise, não a resolvem.

Público, 20.8.2022

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19.8.22

Por Joaquim Letria

Portugal nasceu no Norte mas hoje é aqui, neste coração imperfeito, que alastra a sua vocação universal, de onde saíram caravelas, lugres, barcas, barcarolas e navios que se espalharam por onde hoje se estende a identidade  europeia desta cidade asiática, africana, indiana, mundial.

Lisboa é uma caldeirada de culturas, ponto de partida para a rota da vadiagem dum povo, prenhe de gente branca, escura, castanha, amarela e negra a vender especiarias e essências que podemos encontrar por toda a parte, a começar pela fascinante Rua do Bem Formoso, na Mouraria, onde se come apetecíveis petiscos chineses, indianos, vietnamitas, do Bangaladesh ou do Paquistão. Por aqui se convive com gente que escapou dos desesperos das suas terras para se refugiar neste porto antigo e abrigado de galegos, aguadeiros, carvoeiros e carroceiros, hoje cheia destes seus descendentes, ainda herdeiros dos sarracenos e dos judeus.

Abrigando tanta gente desta, Lisboa não poderia ser branca. Uma cidade como esta não pode ter a alvura das cidades das arábias ou do Norte de África. Terá de ser castanha, escura e colorida, mas nunca branca. Penso que esta insistência em lhe chamarem cidade branca, há inclusivamente um filme estrangeiro que assim a designa, vem não das suas cores mas de outra coisa muito importante e, a certas horas e em certos dias, absolutamente inigualável: a sua luminosidade, o seu sol único, a luz de Lisboa.

Todavia, lá por ser morena e escura, Lisboa não deixa de se apresentar garrida. Inegáveis as suas cores diversas, espalhadas por pincéis langorosos, que se estendem ao longo dum Tejo largo, longo e sensual. Podemos facilmente ver e sermos relembrados de tudo isso ao passear pelas suas ruas, ao ficarmos suspensos do lilás dos seus jacarandás que encontramos nos pincéis de Nikia Skapinakis, para depois nos perdermos em passeio pela policromia de Vieira da Silva, nos espantarmos com as telas de amarelos doces de Arpad e ficarmos presos aos rosas pálidos de Carlos Botelho, ou agarrados pelo azul turquesa de Pavia. Lisboa é uma enorme paleta de múltiplos grandes artistas.

Adoro o verde do Minho, o murmúrio dos seus rios, a frescura das suas sombras e o riso das suas gentes, tal como respeito e amo a planura do Alentejo, o cantar das suas cigarras, o canto dorido e belo das suas gentes. Mas nasci e cresci em Lisboa, apesar de passar anos longe dela roído de saudades de Portugal. Mas foi de Lisboa e do bairro onde nasci e cresci que mais falta senti.

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18.8.22

Salman Rushdie – vítima do fascismo islâmico

Por C. B. Esperança

Os media iranianos celebraram o ataque, identificaram o agressor do escritor como seguidor do Hezbolá e referiram a alegria popular pelo esfaqueamento repetido pelo homicida.

Não faltaram manifestações de júbilo nas ruas islâmicas onde o ocaso da civilização árabe deu lugar à radicalização da religião, onde coexistem a pobreza extrema e a opulência, e o único bem que todos os homens fruem, de que não prescindem, é a posse de mulheres.

É fácil atribuir às mulheres o dever da revolta ou afirmar que são felizes na humilhação,  e inaceitável defender o respeito das tradições e da fé que não toleram divergências.

Rushdie tinha 42 anos quando o seu romance, «Os Versículos Satânicos», foi declarado blasfemo pelo anacrónico Aiatola Khomeini. Condenou-o à morte, 1989, numa fatwa que despertou a fé dos muçulmanos e excitou a fé, o ódio e a demência coletiva.

Liberdade religiosa ou política é o direito de ser a favor, indiferente ou contra. Não é o simples direito à genuflexão, ao beija-mão, ao dobrar da espinha. Quem aceita dogmas acaba de joelhos ou de rastos, a lamber o chão ou a mão de um clérigo.

A blasfémia e a apostasia são crimes medievais incompatíveis com os direitos humanos, nomeadamente a liberdade de expressão e a liberdade religiosa. Esta última só existe se permitir abandonar a fé, mudar de religião, desinteressar-se ou criticá-la. A blasfémia é um crime sem vítima, ofensa a Deus, no jargão religioso, sem que o ofendido passe procuração para processar ou punir o autor da alegada ofensa.

A liturgia da fé é a «ordem unida» dos exércitos, um exercício que nos leva a abdicar da razão pelo passo certo. É preferível ferir os calcanhares do que acertar o passo ao toque do tambor ou à litania da religião.

A liberdade conquista-se quando conseguimos dizer não ao caminho que rejeitamos, às ideias de que discordamos e aos símbolos que repudiamos e, quando formos livres, dar-nos-emos conta de que só atingiremos a liberdade quando todos a conquistarmos.

Independentemente das motivações do frustrado homicida não se deve esquecer que há um prémio de cerca de três milhões de euros, criado por uma instituição islâmica para o assassinato do notável escritor inglês de origem indiana.

O direito à troça, à ironia e ao sarcasmo é tão respeitável como o direito à fé e à liturgia. A blasfémia é a catarse que emancipa e liberta.

Uma religião que manda matar quem não a respeita e quer obrigar o mundo a converter-se, não é uma doutrina salubre, é um frasco de veneno destapado.

Apostila – Quando o Aiatola Khomeini proferiu a fatwa contra o Salman Rushdie pelo abominável crime de…ter escrito um livro, teve do Vaticano, do arcebispo de Cantuária e do Rabino Supremo de Israel a compreensão pela piedosa demência de Khomeini. 

O silêncio dos líderes islâmicos e dos dignitários atuais das religiões referidas é um ato de profunda e iníqua cumplicidade. Até ao momento desconheço qualquer reação ao cobarde atentado.

Ponte Europa / Sorumbático

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13.8.22

Grande Angular - Escola, Cidadania e Democracia

Por António Barreto

É um velho lugar comum: “A educação é muito importante”. Ou um nariz de cera: “A escola tem um papel decisivo”. Escolha da profissão? Tem de ser na escola. Criar uma família? Aprende-se na escola. Ter boas maneiras e boa formação? Depende da escola. Ter um comportamento cívico decente, respeitar os outros e cumprir as leis? É na escola que se começa. Luta contra a droga? Começa na educação.  Saber exprimir os seus sentimentos e a sua sexualidade, escolher o seu género? Tudo se constrói na escola.

Diz-se que é na escola que se toma consciência da família e da pátria, da classe e da etnia. É ali que se percebe a desigualdade social, que se aprende a prestar atenção aos pobres e que se tem experiências de solidariedade. É ainda na escola que se tem as primeiras noções de cultura e das artes e que se dá largas à criatividade.

O que muitos entendem por civismo deveria, dizem, aprender-se na escola: pagar impostos, cumprir os seus deveres, assumir responsabilidades perante a comunidade, circular pela direita, deixar passar quem tem pressa, dar o lugar aos mais velhos e ser cortês nas ruas e nos centros comerciais.

É ainda na escola onde se começa a zelar pelo ambiente, a olhar para a ecologia, a respeitar a natureza, a cuidar dos animais e a contribuir para a limpeza das cidades e dos campos.

Em poucas palavras, a escola seria o berço da sabedoria e da consciência, o ninho do civismo e do bom comportamento, o alfobre de virtudes e da rectidão.

Nada disto é verdade, ou antes, tudo isto é verdade e também o seu contrário. E por isso há quem pense que a escola é um antro de pecado e crime, local onde se faz sexo e droga, onde se alimentam ideias perigosas, onde se forja uma personalidade insubmissa, onde se ignora Deus e odeia a família.

Mas o mais poderoso argumento a favor de uma escola de valores e de ideologia, que traduza uma ideia do mundo e da sociedade, que seja o viveiro de cidadãos e que fomente o desenvolvimento do civismo e da virtude, consiste na cidadania democrática. À escola compete formar cidadãos. O que quer dizer: educar para a democracia, alimentar a tolerância, fomentar as virtudes cívicas. Dito assim, parece inelutável e consensual. Na verdade, se procurarmos um pouco, rapidamente se verifica que estamos perante uma banalidade perigosa.

Arecente polémica que envolve uma família de Vila Nova de Famalicão foi um bom exemplo da dificuldade deste tema. Na verdade, os pais têm o dever de enviar os filhos à escola. Mas não têm o direito de ajudar os filhos a faltar, sem o que toda a gente poderia fazer objecção de consciência a qualquer disciplina. O problema não reside aí, mas sim no programa, naquele programa, que deveria ser banido pelas vias legais, políticas e institucionais. As autoridades educativas deveriam rever e reformar os conteúdos programáticos da escolaridade obrigatória, a fim de os depurar destas formas aberrantes de autoritarismo dogmático e de despotismo cultural. Assim como proteger a escola destas intervenções minoritárias prepotentes.

Mas então, pergunta-se, a escola não deve ser democrática, formar democratas, desenvolver a democracia? Sim e não. A escola deve ser democrática. Mas não deve ensinar a democracia. Nem formar consciências políticas.

A escola deve ser democrática, estar acessível a todos os cidadãos, sem criar barreiras de qualquer espécie à sua frequência pelos jovens da área de residência. A escola deve ser democrática porque deve dar as informações factuais necessárias à vida em comum, como sejam as regras inscritas na Constituição e fixadas nas leis. A escola será democrática se evitar, tanto quanto possível, todas as formas de doutrinação de ideias políticas, de crenças religiosas ou de quaisquer outros credos ou crenças.

A escola não deve ensinar ideologias de qualquer espécie, democráticas sejam elas, até porque não pode, nem tem de escolher entre democracia avançada, democracia política, democracia cultural, democracia popular, democracia directa, democracia cristã, social democracia ou centralismo democrático.

Da democracia, a escola deve limitar-se às regras e dispositivos constitucionais relativos ao sistema e aos órgãos do poder, aos direitos e deveres dos cidadãos, às garantias das liberdades, à participação eleitoral, ao equilíbrio dos poderes entre instituições, ao acesso à justiça e à defesa dos cidadãos perante ameaças de outros ou do Estado.

A escola deverá, em disciplinas de organização política ou de História, referir a natureza e a forma dos diversos regimes políticos, suas implicações, seus exemplos históricos, mas não deve tomar partido. A escola poderá, nas suas disciplinas de História, aprofundar a evolução dos sistemas políticos, a natureza dos regimes, a história da liberdade e da tirania, mas não deve impor ou condenar ideias.

Aescola não deve doutrinar, nem ensinar nenhuma matéria relativa à vida privada dos cidadãos, às suas escolhas pessoais, às suas preferências religiosas, à expressão dos seus sentimentos, à sua sexualidade ou ao desenvolvimento afectivo da sua personalidade. Os sentimentos não fazem parte da cidadania, não constituem capítulos dos direitos, deveres e garantias dos cidadãos, não fazem parte do elenco de dispositivos constitucionais. Há disciplinas onde essas matérias podem ser tratadas: em Biologia e ciência naturais; em História; em Psicologia e Sociologia. Mas não devem constituir matéria à parte nem disciplinas próprias, de modo a evitar vários perigos. Por exemplo, a doutrinação ideológica ou religiosa. O condicionamento da vida privada e da escolha individual. O contrabando ideológico e cultural ao sabor das modas e do oportunismo dos professores. E finalmente a confusão entre vida privada e vida pública, cuja distinção é crucial para a liberdade individual e a vida em comunidade democrática.

Todos os ditadores e todos os regimes autoritários defenderam sempre uma educação de valores, de princípios, com conteúdos morais e com normas de comportamento, quando não com regras religiosas.

A escola não é nem deve ser uma República clerical, nem um claustro de virtudes, muito menos uma ditadura religiosa ou laica. Tudo o que se queira fazer na escola, artes, letras, jogos, natureza, solidariedade, filantropia, expedições, limpeza de ruas, ecologia e afectos pode ser feito fora das horas de aulas, até nas instalações e com os professores, mas sem leis, sem programas impostos, sem obrigatoriedade e sem avaliação.

A escola deve ser democrática, mas não impingir a democracia.

Público, 13.8.2022

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12.8.22

UMA CAMINHADA QUE JÁ VAI SENDO LONGA

Por A.M. Galopim de Carvalho

Todos os dias me confronto com a disparidade entre o longo caminho que já percorri, com as inerentes limitações e mazelas do corpo, e a juventude, e, por vezes, o adolescente e a criança que nunca deixei de manter e ser. Já o disse aqui que, como agora, sentado frente ao monitor, a ver as ideias transformadas em palavras e frases escritas (em Arial 14), não tenho corpo, nem coronárias entupidas pelo colesterol, nem as sequelas de dois AVCs, nem o neurinoma do lado direito do cérebro, nem acentuada deficiência auditiva. 

Decorridos que foram mais de setenta anos sobre a minha vivência alentejana, transporto comigo marcas indeléveis desta região do país. O seu montado de azinho e sobro e as suas planuras de searas ondulantes, ainda verdes em começos de Maio e já a dourar sob o calor de Junho, simbolizam a paisagem que, como é natural, mais se identifica comigo.

 

Esta paisagem faz-me regressar às raízes e nelas está, ainda, a casinha isolada, a que chamamos monte, no cimo de uma ondulação do terreno, branca de cal, com cunhais e ombreiras azul-cobalto e uma grande chaminé fumegante. Lá dentro, como na casa da minha avó, em que fui criança, está o lume de chão e os enchidos ao fumeiro. Nessas raízes estão ainda os cheiros e os sabores das ervas aromáticas, os saberes, os falares e os cantares locais. Tantas marcas do Alentejo reflectiram-se nos meus gostos pessoais e profissionais. Os vários livros de ficção e de memórias que escrevi são disso testemunho, do mesmo modo que o são a maioria dos trabalhos que realizei e escrevi como geólogo.

 

Tudo começou como adolescente curioso de saber, mais amante dos trabalhos que se faziam na cidade e nos campos, do que da instituição escolar de então, que eu achava desinteressante e rígida. Foi no meio rural que despertei para a divulgação científica, um gosto que me ficou e desenvolvi a par de uma vivência, igualmente gratificante, de ensino e de investigação científica na Universidade. Sendo um fruto da cidade, sempre me senti melhor no mundo rural. 

Esta inclinação foi, simultaneamente, causa e consequência de um campismo meio selvagem que pratiquei nessa fase da minha vida, na companhia do meu irmão Mário e de alguns amigos, um campismo ao encontro das herdades, dos montes e das aldeias do concelho de Évora e, também, das suas gentes. Ao gosto pelo campo, em geral, e pela geologia (uma vocação que, cedo, se despertou em mim, devida a um professor de Ciência Naturais) em particular, juntava-se o do convívio com os camponeses. Com alguns deles troquei os ensinamentos dos meus manuais de estudo com os seus saberes fruto da experiência vivida na natureza e com eles iniciei uma vivência social e política, impensável no meio citadino, a todos os níveis vigiado e censurado, que marcou a minha maneira de estar e ver o mundo. 

Nestas incursões nos campos do Alentejo, conheci, de muito perto, os trabalhos que, nesse recuado tempo, ali se faziam. Do lançar do trigo à terra, em braçadas do semeador, certas e cadenciadas, à debulha, sob o brasido do sol de Verão e do calor não menos intenso da ruidosa locomóvel, entre nuvens de moínha, ao erguer um “castelo” de palha em cima de uma carroça, tudo o que vi e experimentei me deu a noção exacta do valor do pão. E esse tudo foi presenciar o abrir dos regos, um trabalho duríssimo de homem só, de mão firme na rabicha do arado, de aivecas bem fundas, puxado por possantes parelhas de mulas; foi a monda da primavera, um trabalho de mulheres novas e velhas, tagarelando e cantando; e, finalmente, a colheita do cereal partilhada por “ratinhos”, nome algo depreciativo que se dava aos homens da Beira Baixa vindos todos os anos para a “aceifa”.

Assisti a descortiçagens (ou despelas, no dizer de alguns) nos montados de sobro e dei-me conta da perícia dos tiradores, manuseando o machado, e dos molheiros, a amontoarem as pranchas de cortiça, explicando-me depois que, assim, bem arrumadas numa pilha de base rectangular, permitiam ter uma ideia do peso de toda a tirada. Ficou-me no ouvido o som cavo do machado, bem afiado e brilhante do uso, a entrar fundo na cortiça madura, e o cantar das grandes e encurvadas pranchas a descolarem do tronco descarnado.

Experimentei o varejo da azeitona e andei de joelhos a apanhá-la caída nos oleados ali estendidos no chão e estive num velho lagar de azeite o tempo suficiente para saber como se faz o precioso óleo da gastronomia mediterrânea. Vi esmagar a azeitona com mós de pedra num engenho da antiga Fábrica Metalúrgica do Tramagal. Vi espremer, entre capachos, a pasta que dali saía, a separar o bagaço do mosto oleoso, senti o forte aroma do azeite virgem a sobrenadar uma aguadilha suja e percebi o sentir da minha mãe quando dizia «não se come uma azeitona de uma só vez», explicando que não se trata assim uma preciosidade que leva um ano a criar.

Ajudei, como curioso de ocasião, em vindimas, respirei o cheiro de um outro mosto. Provei o vinho novo pelo São Martinho e acompanhei os trabalhadores, na grande adega das Cortiçadas, petiscando toucinho assado no braseiro da destila, junto ao alambique, acompanhado de “sorvinhos” de aguardente ainda morna, acabada de fazer. 

Acompanhei, interessado, o trabalho do caleiro, do desmonte e malho da pedra, com a marreta, ao empilhamento, a preceito, do forno. Vi armar e cobrir de terra os tradicionais fornos de carvão e conheci o intenso cheiro a tição que libertavam. Fiquei horas a ver oleiros no trabalho do barro vermelho com a roda e tive oportunidade de apreciar a arte de enfeitar com pedrinhas de quartzo a tradicional loiça de Nisa.

Bebi água por cocharros de cortiça, tirada do poço, junto ao bebedouro do gado e molhei os pés nos regos das hortas onde nos deixavam apanhar beldroegas com que fizemos tantas das nossas refeições. 

Foram muitas as vezes que confraternizei com os trabalhadores rurais, sentados no chão, de “navalhinha” na mão, comendo nacos de pão com lasquinhas de queijo ou de linguiça. Não é demais voltar a dizer que foi com estes meus amigos que iniciei a consciencialização dos problemas sociais e políticos que a cidade, nesse tempo vigiada e censurada, não permitia.

Volto a dizer que com eles interiorizei uma saudável ruralidade que me acompanhou ao longo da vida e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico a que, como aluno e docente, pertenci durante mais de 40 anos.

 

Ao memorizar essa fase da minha vida sou levado a concluir que foi também com os camponeses que desenvolvi e amadureci este gosto pelo campo, essencial à profissão de geólogo. Com eles e por eles tomei o gosto de divulgar uma actividade que, como disse, marcou toda a minha existência, e que, sem me ter dado conta, acabou por me tornar figura pública, com as vantagens e os inconvenientes que tal acarreta.

Nas minhas raízes não houve doutores, engenheiros, almirantes ou generais, nem sequer, um sargento. Houve um segundo grumete ao serviço da fragata Dom Fernando II e Glória, que foi o meu pai, uma costureira, que foi a minha mãe, e gente do povo de muitas artes: dois corticeiros, um sapateiro, um curtidor de peles, dois caiadores, um capador, um açougueiro, sem esquecer a minha tia Rosalina, irmã da minha avó materna, que, com as filhas, fazia queijos de ovelha e tinha uma venda de hortaliças, e o meu tio Zézinho, seu marido, conhecido por Zé dos Cabanejos, pelo facto de fazer cestos e canastras ou cabanejos. De toda esta família, só o meu pai estudou, tendo concluído o 5º ano do liceu, o que lhe valeu um emprego mais estimado, permitindo-lhe, em conjunto com a minha mãe, dar aos seis filhos as habilitações a que cada um aspirou.

Não como turista, mas como profissional, tive oportunidade de fazer algumas deslocações pelo mundo. Mais do que as cidades, atraíram--me os espaços naturais, longe do betão e do asfalto. Foi assim que admirei o Grand Canyon do Colorado, onde tive a percepção da imensidade do tempo geológico, que estive no bordo da grande Cratera do Meteoro e que visitei o Monument Valley, no Arizona, onde voltei a “ver” o Tom Mix, o Buck Jones e o Ken Maynard, os cowboys do Far West, da minha infância. Percorri as planuras entre-montanhas do Oeste Americano, os seus desertos e lagos salgados. No Canadá deslumbrei-me com a miríade de lagos deixados no recuo da última grande glaciação, com o maravilhoso polícromo das suas florestas caducifólias, no Outono, e com as chamadas bad lands de Alberta, autênticos ninhos de fósseis de dinossáurios. No mar azul das Caraíbas, nos recifes e nas areias brancas dos seus fundos e das suas praias vi, no terreno, como se formam os calcários, os de hoje e os do passado com milhões de anos de idade. No Egipto pisei o deserto de areia norte africano, na sua ponta mais oriental, em franco contraste com o verdejante vale do Nilo. Da Amazónia ficaram-me os aromas quentes e húmidos da floresta sempre chuvosa, a luz coada pela densidade da vegetação e o som dos animais que a povoam. Sobrevoei os Himalaias, molhei os pés nas águas barrentas do mar da China e desci ao fundo de uma cratera de vulcão nos Açores.

Neste percorrer de uma longa caminhada, para além da infância, da adolescência e do tempo que cumpri como miliciano ao serviço do Exército, dou particular atenção às experiências vividas e presenciadas e às reflexões que muitas delas me suscitaram como docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, como director do Museu Nacional de História Natural da mesma Universidade e, ao mesmo tempo, como cidadão interventor, sobretudo, na árdua defesa e valorização da geologia e do nosso património natural, numa sociedade cinzenta, à procura de um caminho que ainda não soube encontrar, onde o conhecimento geológico continua arredado dos nossos agentes de cultura e da grande maioria dos nossos decisores aos vários níveis da administração e dos serviços

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O soldado Moura e o desastre de Mopeia – Crónica

Por C. B. Esperança

Naquele sábado, 21 de junho de 1969, o Batelão Chupanga fazia mais uma travessia do baixo Zambeze entre a localidade que lhe deu o nome e Mopeia.

Ficou registado que eram 17H30 quando o Chupanga, apinhado de tropas e viaturas que vinham de Lourenço Marques para a província do Niassa, atravessava o rio Zambeze, começou a meter água e se virou rapidamente.

Arrastou no naufrágio centena e meia de homens que faziam a travessia e seguiram para as águas revoltas com as 30 viaturas que traziam.

Mais de meio século depois, o maior desastre da guerra colonial está esquecido e apenas vive na memória dorida dos que aí perderam amigos e de raros familiares dos que então pereceram. Hoje, já nem a guerra se condena e, muito menos, se referem as vítimas que provocou.

Por amarga coincidência, dois soldados eram, como eu, do Bcaç. 1936, exportados para Moçambique “na defesa da civilização cristã e ocidental”, na linguagem pia do cardeal Cerejeira, ou na “defesa do nosso Ultramar infelizmente perdido” na definição profana dos nostálgicos do Império.

O Alcino Moura, da Companhia de Malapísia, tinha ido buscar o Unimog 411, de que era condutor, e que se afundou enquanto se agarrou à guitarra emprestada que o ajudou a chegar à margem. Foi um dos 54 náufragos que se salvaram e voltou a Malapísia.

O Moura não teve a mesma sorte. Eu esperava-o. Era um dos meus camaradas, um dos que no jargão militar era meu soldado. O nome de batismo era António Manuel Moura de Almeida, conhecido apenas por Moura.

Sempre gostei dele, talvez por lhe reconhecer uma estranha capacidade para desaparecer quando era preciso. Era divertido, fazia truques de ilusionismo e era capaz de hipnotizar alguns soldados. Nasceu para o espetáculo e não para a guerra. 

Já não me recordo do pretexto que usou ‘para prestar serviço’, durante curto espaço de tempo na Companhia de Massangulo e ignoro o motivo que lhe permitiu o internamento no hospital, logo transferido de Vila Cabral para Nampula e, três meses depois, para Lourenço Marques. Chegaram-me ecos da vida agitada, do envolvimento com a mulher de um major, de outras aventuras, de peripécias dignas do ilusionista, de alguma que lhe antecipou a alta médica e o regresso.

O Moura voltava ao Catur quando desapareceu nas águas do Zambeze. Deixou viúva a jovem que ficou na aldeia com uma filha sua. Era o único casado. Não tinha mais de 23 anos e já tinha mais vidas vividas do que muitos durante uma vida longa.

Assisti à morte do Melo Dias, ao seu último suspiro da vida que deixou sob o rodado da Berliet, ao estertor nos meus braços, depois de ter antecipado a saída da messe para a escolta que o aguardava, mas vi-lhe o corpo rasgado pelo peso da camionete, ali dentro do quartel, o rosto afogueado, a vida apagada na incúria de quem exigiu ir sentado no para-lamas, e adivinhei-lhe os órgãos esmagados quando vi um testículo projetado, preso ao corpo pelo cordão espermático. Foi duro, mas vi o corpo sem vida.

Do Moura nunca digeri a morte ou fiz o luto. Imaginei durante anos a aflição da asfixia, o corpo frágil a lutar para se manter à tona, o macabro truque de esconder a jangada, a luta contra a água e crocodilos, a respiração suspensa, a agonia, a morte sem corpo que a certificasse. Ficou apenas nome numa folha de passageiros, uma guia de marcha que levou, memórias dissolvidas na água.

Pensei durante anos na mulher e na órfã que não conheci e ele nunca mais viu, no rio caudaloso e nos crocodilos que o habitavam, na falta do corpo e nos instantes breves do sofrimento. Acabaram-se os truques com cartas e sessões de hipnotismo para gáudio da malta, as perguntas sobre onde estaria o Moura e o Braga a dizer, já se desenfiou.

O Moura foi um dos 101 desaparecidos no naufrágio, mas era o amigo e camarada que devia regressar em dezembro com os que sobrámos dos que fomos em outubro de 1967, embarcados no cais de Alcântara e aí descarregados 26 meses depois.

Guardei para os pesadelos a memória dolorosa do camarada perdido, em silêncio como soe suceder para o que mais dói. Foram mais de quatro décadas a querer teimosamente esquecer até ao dia em que falei nele ao Pinto e me queixei da mágoa. Que raio de ideia!

O Daniel Pinto era um homem bom, sensível e discreto, uma espécie de telefonista do Batalhão. Era o alferes de Transmissões, o chefe dos alcoviteiros que sabiam primeiro as mortes e escondiam segredos das operações militares de que todos íamos sabendo.

Quando lhe referi a mágoa que persistia da memória que a ambos há de acompanhar, a idealização da viúva e da órfã que não conheceu o pai, ouvi este inesperado desabafo:

- Tu recordas o Moura, mas não imaginas que, no regresso, procurei a família, que era próxima da minha zona, para lhe dar os pêsames. Encontrei a sogra e a mulher dele com a filha ao colo. 

Sei como o abalou a cena e não lhe fiz mais perguntas sobre o quadro cuja moldura nos fez regressar à savana do Niassa e rever a guerra que deixámos e não saiu de nós.

Coimbra, agosto de 2022  

Ponte Europa Sorumbático

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A discussão do politicamente correcto

Por Joaquim Letria

A cidadania assentou arraiais no politicamente correcto, transformando-se numa ideologia e ambicionando promover-se a pensamento único.

Em nome dela reescreve-se a História, destrói-se e nega-se o que aconteceu, apagam-se as circunstâncias, nega-se o passado, insulta-se e calunia-se pessoas, deitam-se estátuas abaixo, destroem-se monumentos, faz-se censura e apaga-se a verdade.

Aqueles que dizem que a cidadania abre-nos o futuro, não estão a ser sérios, porque o politicamente correcto estreita horizontes, limita o debate e impõe ideias uniformes. Muito disto se passa a todo o momento e à vista de todos, incluindo naturalmente o Estado.

Defendendo que a disciplina de cidadania seja facultativa e opcional e de modo nenhum obrigatória nos currículos do ensino, mais de 100 personalidades conhecidas e respeitadas vieram a público fazendo ouvir a sua voz. Todavia, note-se que aquilo que eles contestaram foi muito mais do que uma disciplina inserta nos programas escolares. Aquilo que eles recusaram foi a imposição e formatação dum pensamento único. Mais tarde ou mais cedo o politicamente correcto teria de ser posto em causa e contestado. 

Uma ideologia que reescreve a História, menoriza a família e se quer impor no ensino, imposta logo nos primeiros anos de escolaridade, não podia deixar de provocar reacções. É possível, e desejável, que esta polémica a que assistimos seja o início dum grande debate. Oxalá assim seja.

Publicado no Minho Digital

 

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9.8.22

No "Correio de Lagos" de Julho de 2022

 

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8.8.22

No "Correio de Lagos" de Julho de 2022

 


NOTAS SOLTAS EM TEMPOS DE SECA

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«A água deve aumentar de preço, devido à escassez, para moderar os consumos» — Matos Fernandes, Ministro do Ambiente, em 22 de Março de 2021.

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«O Governo aplicará as restrições que forem necessárias; vamos ter de nos habituar a viver com menos água» — Duarte Cordeiro, Ministro do Ambiente, em 27 de Junho de 2022.

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A Barragem da Bravura atingiu o nível mais baixo de há vários anos a esta parte — dados do Sistema Nacional de Informação dos Recursos Hídricos em 4 de Julho de 2022. (*)

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JÁ HÁ MUITOS anos que, na maioria dos hotéis do mundo, os hóspedes encontram, logo à chegada, um folheto em que são alertados para a necessidade de economizar água, sendo-lhes pedido que, por exemplo, utilizem as toalhas mais do que uma vez —  solicitação acompanhada por dados em que se refere, além dos metros cúbicos de água que se pode economizar, a poluição provocada pelos detergentes — e por aí fora, num texto que qualquer criancinha do ensino básico entenderia.

 

EM INGLATERRA, em situações de seca persistente, as regas dos jardins públicos são pura e simplesmente interrompidas (disseram-me que isso sucede ao fim de 3 semanas), como pude testemunhar pessoalmente em Londres, em Agosto de 1976: a relva estava seca, mas, conforme vim a saber mais tarde, ela reverdeceu no mês seguinte, quando a chuva voltou.

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ORA, ESSAS poupanças, que numa situação normal já são óbvias, tornam-se uma EXIGÊNCIA IMPERIOSA em casos de seca como aquela que estamos a atravessar, e que, na nossa região, é adjectivada como EXTREMA. E é nesse sentido que, faltando-me as palavras para o que vejo na nossa cidade (em termos de exibição e desperdício), recorro a duas imagens recentes, escolhidas entre as inúmeras, semelhantes, de que disponho. 

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CENA I – Na rotunda junto à Marina: uma cena recorrente: todos os aspersores ligados para regar a relva, com boa parte da água a escorrer para a calçada e para o alcatrão.

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CENA II — No Parque da Cidade: também uma cena que se repete todos os dias, com 13 aspersores a funcionar, a maioria deles regando “peladas”, pois a rega repetida degrada a relva invariavelmente. Acresce que, para esse dia, a meteorologia previa chuviscos e aguaceiros, com probabilidade de 90%, mas a “rega inteligente” tem dessas coisas.

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A TERMINAR, aqui deixo uma nota curiosa: ultimamente, e sempre que me envolvem num debate acerca de DESSALINIZAÇÃO (dado eu ter trabalhado para a Central de Porto Santo), eu mostro, para contrariar os defensores dessa solução, umas quantas imagens como estas e ­— oh, milagre! — a discussão acaba logo!

No “Correio de Lagos” de Julho de 2022

(*) – Os 12,4% que o mapa indica já baixaram para 11,4%.

 

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7.8.22

Grande Angular - Sinistras equivalências

Por António Barreto

Está na moda. Já não é a primeira vez, mas agora a ideia regressa ao mundo dos vivos. Em poucas palavras: todos os regimes e sistemas têm defeitos, todos se valem, mas os capitalistas são os piores. A democracia é muito bonita, dizem, mas consagra a desigualdade, o poder dos mais ricos, a corrupção, a pobreza e a exploração do homem pelo homem. O comunismo, concedem, não respeita a liberdade de imprensa e de associação, nem o direito de voto, mas promove a igualdade, garante o emprego e não beneficia os capitalistas. Populismos de esquerda ou de direita, nacionalismos diversos, ditaduras militares ou clericais africanas, asiáticas e islâmicas têm as suas deficiências, mas também as suas vantagens: são geralmente patrióticos e conferem dignidade aos seus cidadãos que defendem da ganância de estrangeiros. Nesta sinistra amálgama, apenas se exclui o fascismo, diabo por excelência, inferno por definição e capitalista por obrigação.

Os argumentos dos defensores das equivalências são antigos, mas recentemente actualizados. A China e a Rússia têm dado novos alimentos a tão obtuso discurso. A ascensão da China nos mercados internacionais e nos inventários das forças militares marca uma nova realidade. A capacidade produtiva, industrial, financeira e comercial da China foi uma bênção ou um perdão para uma das mais fortes ditaduras actuais. A invasão da Ucrânia pela Rússia contribuiu fortemente para mostrar, aos autores de tão estranhos argumentos, como dois sistemas tão diferentes podem ser tão parecidos. A descoberta de fascistas e nazis na Ucrânia confirma o perigo dos regimes democráticos. Como é sabido, os fascistas e os nazis ucranianos são muito piores do que os fascistas e os nazis russos. Segundo os mesmos, a aproximação da NATO por vários países da Europa central e de leste, antigamente comunistas, sublinha e revela a permanente atitude agressiva americana e europeia, assim como mostra o verdadeiro cerco que o Ocidente pretende fazer à Rússia. Cada qual no seu género e na sua circunstância, Tramp, Bolsonaro, Chavez e Maduro vieram dar novo alento a formas imaginativas de populismo barato e de nacionalismo antidemocrático.

Há evidentemente quem acredite que as ditaduras chinesa e russa, além de outras, são mais aceitáveis do que as democracias ocidentais. Aliás, para tais pensadores, os regimes russo e chinês não são ditaduras, nem os regimes ocidentais são democracias. Esses são os mais fanáticos. Depois, temos os sofisticados pensadores de Boulevard e Universidade, mais orientados para sublinhar as equivalências. Com esta especialidade, estes autores desenvolvem a narrativa de última culpa e da primeira responsabilidade. Assim é que a origem das agressões russas está sempre na América, por vezes na Europa, indiscutivelmente na NATO. Estão dispostos a aceitar alguns “excessos” russos, como por exemplo a destruição de um país, na certeza de que os últimos responsáveis são os Estados Unidos e a NATO. Não fossem eles e a Ucrânia poderia viver em paz! São estes funcionários da narrativa antidemocrática que mais se entretêm a demonstrar as equivalências. E estão já prontos a garantir que as responsabilidades da recente agressividade chinesa são… americanas!

Ora, os regimes democráticos não são iguais aos outros. É aliás por isso que tantos países, há quase cem anos, sem razão, se proclamam democráticos e populares. Repúblicas e democracias populares são democracias de cenário, com liberdades de associação e de expressão limitadas ou inexistentes. A regularidade da eleição e o sufrágio secreto são ficções. O domínio do Estado, das Forças Armadas e do partido do governo é total. A liberdade económica é limitada. A criação cultural é controlada. O direito de associação é condicionado. O direito à greve é crime. A liberdade religiosa é inexistente. Nunca um partido, que não seja o do governo, ganhou uma eleição. A vigilância policial é uma arte elevada à perfeição. 

Nas democracias, geralmente ocidentais, há enormes problemas e defeitos. Será necessário dizê-lo? Há desigualdade social, opressão económica, exploração e outras formas de desigualdade (étnica, racial, de género, de geração, de religião). Em quase todas as democracias, há pobreza, desemprego, marginalidade, criminalidade e tráfego de droga. Podem existir formas opressivas de convívio social, incluindo o machismo, o racismo, a intolerância religiosa, a exploração sexual e a violência de costumes. Há democracias com excessos de burocracia, de militarismo e de fanatismo religioso. Como há, em quase todas as democracias, corrupção a mais. Em certas democracias, há fabricantes e comerciantes de armas com grande capacidade para influenciar as autoridades políticas.

Tudo isso existe nos países mais ou menos comunistas e nos países de ditadura militar ou burocrática em quantidades bem superiores às dos países democráticos, onde o Estado de direito, a liberdade sindical e a luta política permitem controlos, moderação, melhoramento e castigo. Até há pouco, o que faltava nos regimes socialistas e comunistas eram capitalistas e fortunas colossais. Mas agora, tanto em ditaduras marcadamente comunistas, como a chinesa, ou burocráticas e imperiais, como a russa, há capitalistas e oligarcas em abundantes quantidades, com fenomenal poder e capazes de influenciar toda a vida política e social, assim como as relações externas e as forças militares.

Os defensores das equivalências, ou mesmo os que toleram as ditaduras chinesa ou russa, têm outra série de argumentos para justificar a sua preferência pela autocracia comunista ou aparentada daqueles países. São as citações de malfeitorias ocidentais, de preferência americanas, no Iraque, na Líbia ou no Afeganistão. Também aqui o cinismo intolerante não passa despercebido. Primeiro, os defeitos de uns não justificam os dos outros. Segundo, as agressões ou violências ocidentais fora de portas são abertamente criticadas, corrigidas, alteradas e terminadas pelas vias habituais da democracia, da alternância de poderes, da liberdade de pensamento e de imprensa. Na verdade, as acções americanas ou ocidentais no Chile, no Iraque ou no Vietname não têm desculpa e são condenáveis, tanto quanto as de qualquer outro país em qualquer outra latitude. A grande diferença consiste na capacidade, ao alcance dos povos e dos partidos das democracias e do Ocidente, de debater, criticar, corrigir, melhorar e derrotar aquelas iniciativas e seus autores. A liberdade e o Estado de direito fazem a diferença. Mas há quem não perceba.

Público, 6.8.2022

 

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