29.4.23

Grande Angular - Não basta. Nem chega.

Por António Barreto

As últimas semanas, entre o famigerado “caso TAP” e as cenas pouco recomendáveis da Assembleia da República, passando por revelações assustadoras dos processos Sócrates e Salgado, foram ricas em acontecimentos que sublinham a provocação de uns e a tibieza de outros.

 

Entre as fraquezas da democracia está a mais citada: é o regime de todos, incluindo os não democratas e os antidemocratas. Além desta, outras fragilidades mostram bem como, mais do que imperfeita, a democracia tem vícios, alimenta vícios e premeia vícios. O regime democrático inclui corruptos, mentirosos, exploradores, ladrões e os representantes das várias cáfilas conhecidas. A democracia coexiste ainda com cunhas, droga, machismo, assédio sexual e tráfico de influências. Muitos destes vícios e defeitos têm de ser tratados com civilização. Outros, com a Justiça e o Estado de direito. Quando estes últimos falham, perde a democracia.

 

Os últimos episódios “mediáticos” revelaram o papel crescente do partido Chega e os receios, igualmente crescentes, dos que se dizem defensores da democracia. E que talvez sejam, em título, pelo menos. Mas convém olhar melhor para este confronto que parece simples, mas não é. Na verdade, os provocadores do Chega, ridículos, mas eficazes, são tão perigosos quanto os prevaricadores do PS e do PSD. Os oportunistas do Chega são tão ameaçadores quanto os que não são capazes de gerir a democracia. Sem falar naqueles que se querem aproveitar da democracia.

 

O Chega parece ter uma agenda clara. Começa por dar eco aos descontentamentos. Onde estes faltam, inventa. Onde sobram, aproveita. Depois, usa a democracia, aproveita as suas facilidades, incluindo representação e tribuna. A seguir, desacredita a democracia, põe em crise as suas falhas e cria novas. Sabe-se que entre as causas da morte das democracias encontram-se a incompetência e os abusos dos democratas. O populismo não se alimenta de druidas e sonhos, bebe nos erros e nas insuficiências da democracia. O Chega vai esforçar-se, dia após dia, por perturbar as instituições em que está presente, tanto “por dentro”, como “por fora”, na rua. A salvação e a glória do Chega residem na morte da democracia.

 

Para a democracia, há tanto perigo nas provocações do Chega, quanto nas insuficiências dos democratas. A estes, não compete tratar da educação dos populistas, convertê-los ou proibi-los. Compete-lhes, isso sim, retirar argumentos, não abusar e fazer com que, para a população, a liberdade seja superior às promessas dos justiceiros. Aos democratas, não lhes compete prender, banir ou mandar calar os populistas. Aos democratas compete-lhes fazer melhor e com mais competência do que fazem hoje. E de modo a que a população sinta e perceba.

 

São conhecidas as piores nódoas do governo e do regime na actualidade. A crise da justiça vem à cabeça. Gera desconfiança e descrédito. Estimula a corrupção. Incita ao abuso e à fraude. Destrói quaisquer fundamentos morais da vida pública. Se existe desilusão e frustração dos cidadãos relativamente à democracia, é seguramente na falta de justiça e no seu enviesamento. O rol de vícios da justiça, que inclui a impunidade, os favores, o nepotismo e a ineficiência, é enorme e está colado aos casos de corrupção, de branqueamento, de roubo e de abuso de que beneficiam os poderosos da economia, da política e da sociedade. Sem justiça, não há liberdade nem democracia. Com uma certeza que a história nos ensina: os populistas, as ditaduras de direita ou de esquerda e os “justicialistas” nunca brilharam pela liberdade e pela democracia, nem sequer pela justiça. Mas alimentam-se dos defeitos da justiça das democracias.

 

A incapacidade de conduzir ou a impossibilidade de acabar um processo judicial contra um grande corrupto ou um grande corruptor é mais grave para a democracia do que as acções propriamente ditas do grande corrupto ou do grande corruptor. Os magistrados, os oficiais, os advogados, os altos funcionários de Estado e os legisladores são mais responsáveis, pelo declínio da justiça democrática, do que o banqueiro, o político e o empresário. 

 

A seguir, o Serviço Nacional de Saúde, que corrói a confiança e retira as últimas defesas dos mais frágeis e vulneráveis. Depois, as escolas sem professores, as avaliações sem exames e as aulas em greve que destroem a esperança.

 

A incompetência tão visível na TAP, no Aeroporto de Lisboa, nos transportes públicos e no caminho-de-ferro estão a criar um clima de incredulidade difícil de imaginar ainda há poucos anos. É difícil encontrar as causas deste estado de incapacidade, de falta de previsão e de erro. Em todos estes casos, a incompetência e a descoordenação foram evidentes. E dão a sensação de que as autoridades se julgam impunes e proprietárias do bem comum.

 

As grandes obras de Lisboa, do porto à drenagem, da habitação à circulação, dos comboios ao tráfego automóvel, sem informação suficiente, sem cuidado para com os habitantes, sem faseamento mais confortável e sem consideração pelas comunidades locais e pelas pessoas, são mais sinais de que a gestão do espaço público não está a ser feita à altura das ansiedades da população. 

 

É verdade que vivemos horas, dias, semanas e meses difíceis. Talvez até anos. Nem o sistema democrático, nem os políticos actualmente em funções, têm revelado serenidade e saber para encarar esses tempos, para resolver os problemas que daí resultam, para satisfazer aspirações e diminuir ansiedades. Realidades que todos vêem. Rapidamente surgem ideias ou reflexos sobre o futuro imediato e os remédios para as crises. Eleições e coligações estão entre as primeiras reacções. Demissões e dissoluções, também. E também há quem sonhe com novas soluções e novos regimes. É muito fácil encontrar, à esquerda e à direita, quem afirme convictamente que “a democracia está esgotada”. São estes os suspiros melancólicos que se ouvem. As soluções a encontrar para estes tempos difíceis são conhecidas e estão ao alcance das mãos. Encontram-se com os partidos que temos, com os meios que são os nossos e com algumas circunstâncias inescapáveis. Os sonhadores que tomem nota. Não há solução fora da Europa, nem fora de Portugal. Como não há soluções fora da democracia. Ou antes: há, mas são piores.

 

Não basta ser democrata para defender a democracia. Nem chega ser provocador para a derrotar.

.

Público, 29.4.2023

 

Etiquetas:

26.4.23

É mesmo muito velho -*Deixai vir a mim as crianças

Por Antunes Ferreira

Cinco. Quatro miúdos e uma menina: os meus netos. Por ordem de idades e de progenitores – o João e o Rodrigo (do meu primogénito Miguel), o Xavier, o Vicente e a Madalena (do segundo, o Paulo); o caçula Luís Carlos ainda que bem casado, tal como os irmãos, não tinha filhos. Opção dele e da esposa Estela.

Aproximava-se o Natal, estávamos nos princípios de Dezembro de 2006, eu já completara os 61 e com a  “escadinha” da malta miúda ia dos nove aos quatro anos; acabara de ver (diga-se de passagem fartíssimo mas netos são netos) o vídeo do Rei Leão perante o qual  opiniões se dividiam mas pendiam um pouquinho para o Hakuna Matata, quando nos sentámos na sal de estar para democraticamente trocarmos uma outra vez ideias sobre o filme do Walt Disney.

Os pais das criaturas estavam nos respectivos empregos e os avós tentavam domesticar o bando – o que aliás não era tarefa difícil pois era pessoal na generalidade e na especialidade (para usar linguagem parlamentar)  bastante bem comportado. Era o meu dia de folga no DN e por isso tinha todo-o-tempo-do-Mundo para me dedicar à prole; e além disso adorava fazê-lo.

Chegara a hora do lanche e todos fomos para a mesa. Como d costume a Raquel tinha preparado um “banquete” próprio para infantes, No meio de sanduiches, leite com chocolate, pãezinhos, bolachas, limonadas, etc., tocaram à porta. “É do jornal… Mas está lá o Fernando Pires…Só se foi uma bronca no Internacional (era o meu violino de Ingres)…” 

Não eraO padre Alberto Neto em pessoa, coadjutor do prior Felicidade Alves, ambos de costas viradas para o “Estado Novo”. Falara para o jornal e sabendo que eu estava em casa vinha falar connosco – a Raquel também gostava e muito de politica internacional – sobre um incidente que parecia grave junto ao   CheckpoinCharlie,  um posto militar entre a Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental durante a Guerra Fria, onde, de resto, eu e a Raquel já estivéramos aquando duma visita oficicial à então RDA.

Mas, perante a festarola para os meus netos ~e porque o “barulho” Intra alemão parecia não ter dado nada – Neto ficaria um pouco mais para também participar na confraternização espontânea porque sem motivo aparente; festa é festa. A dada altura não se conteve e perguntou-lhes se sabiam o que pensava Jesus sobre as crianças .O João tinha uma vaga ideia; e o sacerdote citou de memória:

“(….)levaram crianças para que Jesus tocasse nelas. Mas os discípulos repreenderam-nos. Vendo isso, Jesus entristeceu-se e disse: “Deixem as crianças virem a mim. Não as proíbam, porque o Reino de Deus pertence a elas. Eu vos garanto: quem não receber como criança o Reino de Deus, nunca entrará nele. Então, Jesus abraçou as crianças e abençoou-as, pondo a mão sobre elas”. Meus amigos isto consta do Evangelho de São Mateus. Momentos depois o padre foi-se embora.

Terminado o lanche fomos sentar-nos n sala e antes que ocorresse a reprise do malfadado vídeo, lembrei-me de lhes perguntar, para desanuviar o ambiente um tanto carregado pela ausência leonina: “Por certo vocês não sabem mas vou contar-lhes umas coisas antigas que eu mesmo vivi. Por exemplo ainda andei m eléctricos abertos aos lados.” “Como assim, avô?” “Não tinham paredes laterais e sim banco corridos; entrava-se, sentava-se e vinha o cobrador vender os respectivos bilhetes.”

“Contaram-me uma anedota que vos digo agora: uma senhora bem vestida com chapéu de plumas ao entrar tropeçou e caiu no col dum magala (era assim que então se chamava aos soldados); protestou energicamente e o magala retorquiu: «Por dois tostões (era o preço do bilhete) se calhar queria cair no colo dum general…»

Gargalhadas em catadupa, mas prossegui: “Igualmente usei aqueles telefones de parede  em que era preciso dar à manivela que tinham ouvir por um auscultador preso por um fio ao aparelho e pedir à menina telefonista na central para ligar para outra cidade ou para o estrangeiro. Uma vez esperei duas horas para conseguir falar com um amigo em… Sintra!”

Olhos esbugalhados, bocas abertas, interrogações aos quilates. “Os automóveis não tinham cintos de segurança. Andei no Morris Minor do meu Pai, no Austin Super, no Triumph Spitfire do irmão do meu tio Jacinto e nenhum tinha cintos de segurança!”

E logo do fundo do sofá grande onde estavam os cinco sentados, o Vicente, cinco anos: “O avô é mesmo muito velho!” Tinham-se acabado as recordações.

 

Etiquetas:

22.4.23

Grande Angular - Demissão, Remodelação e Dissolução

Por António Barreto

Ao menor problema, o que se ouve em Portugal é um imediato pedido de demissão do Ministro, do Primeiro-Ministro ou do governo. Para as oposições, a demissão do ministro é quase o primeiro passo de uma luta. Este hábito, ou vício, é próprio de todas as oposições, qualquer que seja o governo em exercício. Tenha este uma maioria ou não, seja de um só partido ou de coligação.

 

Convencionou-se, há muitos anos, que fazer oposição era falar duro, o que se traduz por regras simples. Pedir a demissão do membro do governo. Exigir uma remodelação. Pedir que o Primeiro ministro e seu governo sejam substituídos. E exigir a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições.

 

Esta liturgia é quase independente da força do partido de oposição. Seja o deputado único, seja o grupo parlamentar de meia dúzia de deputados, seja finalmente o partido com 80 deputados, em todos os casos a exigência da demissão ou da dissolução é considerada a mais forte voz de oposição.

 

Os partidos que todas as semanas pedem demissões, exigem remodelações e procuram convencer o Presidente a demitir o Governo ou a dissolver o Parlamento (que não são a mesma coisa, pode haver uma sem outra) não mostram outra coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política. Aquilo que se chama na gíria política “elevar a voz”, “ser duro com o governo” e “fazer verdadeira oposição” tem, entre nós, uma versão muito especial: pede-se a demissão e a dissolução. O problema é que se percebe logo: é quem não sabe o que fazer.

 

É verdade que, em vários sectores, a acção do governo actual se tem revelado desastrosa. Alguns ministros foram ou são manifestamente incompetentes ou têm visões estranhas do interesse nacional e do bem público. Já ninguém duvida de que este governo e o seu partido têm uma estranha concepção de família política e de legitimidade partidária. Mas também é certo que alguns ministros se portam bem, desempenham com honra e eficiência as suas funções e se mostram capazes de gerir a Administração. 

 

Nada do que precede justifica uma dissolução. Por vezes, nem sequer uma remodelação. Estamos muitas vezes diante de políticas, de doutrinas e de visões particulares do interesse público. Tudo isto faz parte do que deve ser avaliado em eleições a realizar a seu tempo. Nestas, confirmam-se os vitoriosos e despedem-se os que erram. Chamam-se novos, substituem-se velhos e castigam-se incompetentes. 

 

Entre os que reclamam demissões e dissolução, um argumento frequente é o de que já não se pode garantir o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Quem o invoca, não necessita argumentar: o peso da acusação basta-se a si própria. Ora, tal não é verdade. O regular funcionamento das instituições democráticas está sobretudo ligado à demissão do governo, isto é, à competência do Presidente da República para demitir o governo. No caso da dissolução da Assembleia da República, esta ressalva do “regular funcionamento” não está explícita na Constituição. Isto é, a dissolução é um “acto livre” do Presidente, apenas limitado pela necessidade de, previamente, ouvir o Conselho de Estado e os partidos, sem que tenha de obedecer ou seguir o que dizem as pessoas ouvidas. Mas é um “acto livre” de gravidade extrema para uma situação muito grave.

 

Mesmo não sendo rigoroso, o argumento do “regular funcionamento” tem efeitos e assusta. Mas é totalmente desadequado. Na verdade, o que mais está em causa, hoje, são as políticas, não as instituições. O Serviço Nacional de Saúde, a funcionar tão mal, não é uma instituição democrática. As escolas, em crise evidente, também não. A TAP, a CP e os transportes públicos, em situação caótica, não são instituições democráticas. São empresas, entidades e serviços públicos essenciais para a felicidade dos povos, para o bem-estar e para a economia. Mas não são instituições democráticas. Fernando Medina e Pedro Nuno Santos cometeram erros e são responsáveis por uma gestão muito controversa da política pública e da sua carreira. Mas não são instituições democráticas. Tiago Brandão Rodrigues e Marta Temido tiveram uma gestão desastrada dos seus ministérios, mas não são instituições democráticas. O Aeroporto de Lisboa, a COVID e a guerra na Ucrânia são assuntos graves, temas em que o governo se pode portar bem ou mal, mas não se trata de instituições democráticas.

 

Estas são as que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, as que fazem funcionar o sistema político, as que asseguram as grandes funções do Estado como a Justiça, a Administração Pública, a moeda, as forças armadas e a ordem pública. Quando o seu funcionamento deixa de ser regular, quando a ilegalidade invade estas instituições, quando estas ameaças não são devidamente contrariadas pelos poderes políticos, pelo Parlamento e pelo Governo, então aí sim, impõe-se uma dissolução do Parlamento ou a substituição do governo. Mas mesmo nesses casos, o que realmente se impõe não é a opinião do Presidente da República. O que se impõe é um veredicto popular e uma renovação da vontade dos cidadãos.

 

Entre os dispositivos que mais contribuíram para o prestígio da democracia conta-se a realização de eleições livres, com datas conhecidas e regras definidas. Assim como a ideia de mandato. Isto é, uma pessoa e um partido são eleitos com base nas identidades, na história e no programa, assim como no cumprimento do mandato conferido. Este não se mede semanalmente, nos jornais e nas televisões, com sondagens. O cumprimento dos mandatos mede-se periodicamente, em eleições, ao fim de um certo tempo conhecido. E os mandatos são para cumprir até ao fim. Salvo casos absolutamente graves e excepcionais. Ou então em situação de total impasse das instituições. Por exemplo, na impossibilidade de um governo passar no Parlamento e ter orçamento e confiança.

 

O Presidente da República, qualquer que seja o seu estilo, pode perfeitamente dar recados, tentar influenciar, fazer sugestões, chamar à atenção e até criticar. Tudo em recato. Por vezes até com algum grau, moderado, de publicidade. Mas não tem nem deve envolver-se na política e nas políticas, fazer opções, destinar, impedir e fomentar. A reserva presidencial é um dos mais valiosos dispositivos constitucionais que importa valorizar e proteger. São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente da República deve calcular as hipóteses de haver alternativas, deve seguir as sondagens da semana e deve saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.

.

Público, 22.4.2023

Etiquetas:

19.4.23

Indira Gandhi em pessoa *Uma entrevista em exclusivo e especial

Por Antunes Ferreira

A entrevista que fiz a Indira Gandhi teve dois momentos especiais e para mim realmente significativos. Ao longo de quase uma hora e a bordo de um avião abordámos muitos aspectos da vida da chefe do Governo da Índia e, naturalmente do próprio país que era considerado a maior democracia do Mundo. Toda a conversa foi muito interessante e a política respondeu a todas as perguntas que lhe coloquei – o que, dada a minha larga experiência nesse campo foi realmente impressionante.

E porquê o avião? Pois muito simplesmente a data marcada para a conversa sofrera um percalço: fora a própria Indira que me telefonara para a embaixada portuguesa para me dizer que tinha de cancelar a entrevista pois ia deslocar-se a Allahabad a cidade natal da família Nerhu onde ia assistir ao funeral dum primo muito chegado.

Ora eu tinha vindo de Lisboa com tudo programado para a entrevista e por isso sugeri-lhe que a poderia acompanhar no avião em que ela se deslocaria e nele fazer a entrevista. Um tanto reticente ao inicio ela acabou por aceitar a proposta, mas o problema é que tinha uma agenda preenchidíssima   e por isso fez-me uma contraproposta. Eu poderia dar uma volta pela gigantesca índia  a fim de colher impressões que poderia utilizar na entrevista. 

Aceitei depois de lhe ter dito que ia obter o aval do “Diário de Notícias” a quem ia apresentar a sugestão, que face ao  interesse da entrevista e o seu exclusivo para Portugal, me deu carta branca para o empreendimento. Sendo assim fui posto em contacto com a Directora Geral do Turismo que me atribuiu um intérprete, um goês radicado na Índia, o senhor Francisco (Francis) Xavier de Menezes que falava perfeitamente português e que acompanharia no périplo.

Fomos a diversos Estados  dos quais destaco o Bihar  onde visitei Bodh Gaya ou Bodhgaya que é uma cidade do distrito de Gaya, no estado de Bihar, na Índia. Está localizada a 96 quilômetros da capital do estado, Patna. Historicamente, era conhecida como Bodhimanda. O principal mosteiroo de Bodhgaya era chamado Bodhimanda-vihara. É o local mais sagrado do budismo, pois teria sido o local onde o fundador da religião, Sidarta Gautama, teria criado a doutrina, por volta do século V a.C. A localidade tem muitos templos erigidos por diversos países onde o budismo é praticado com maior ou menor importância.

E nela que existe a chamada árvore da vida sob a qual Gautama terá meditado durante 59 dias e 59 noites findos os quais saiu a divulgar a nova religião. A árvores que me garantiram ser a “descendente da original é decorada com muitos fios de diversas cores e é chamada a Árvore da Vida. É considerada sagrada e as suas folhas são oferecidas a visitantes ilustres. Dada a minha qualidade de futuro entrevistador de primeira-ministra tive direito a receber uma…

També passei pelo estado de Orisssa tendo ficado dois dias na capital  Bhubaneswar onde visitei um templo decorado com as paredes decoradas em altos relevos de cenas de amor sexual explícitas e assistir a um espectáculo de danças; as mulheres de Orissa são consideradas as mais belas da Índia. Seguimos depois Calcutá onde fiquei apenas uma noite e pouco vida cidade que muito gostaria de ver os bairros de lata onde a Madre Teresa exercia a sua missão.

Mas o tempo era curto e por isso fomos de avião até Caxemira onde tive a oportunidade de ficar numa houseboat no lago Lago  Dal e fazer uma viagem de ordem militar a Gulmarg no sopé do Himalaia. De resto Srinagar, a capital de Caxemira era praticamente um quartel tantas eram as unidades do exército indiano ali estacionadas. Do outro lado da fronteira fortemente guardada o poder das armas paquistanesas era aparentemente igual. Mas em verdade tenho de dizer que ali não me foi permitido deslocar.

Finalmente de volta a Nova Deli tomei enfim o avião onde iria entrevistar Indira Gandhi. A aeronave era dividida em duas partes: na frente iam as pessoas que integravam a comitiva da primeira-ministra e a segunda, atrás encontrava-se Indira o Seu filho Rajiv e a mulher deste Sónia. 

Fiquei sentado ao lado dum sique, o chefe da segurança  da primeira-ministra e logo ali o meu espanto: ele provava a comida e a bebida antes de ambas serem levadas para Indira e os seus acompanhantes lá atrás comer. Mal sabia eu, para além da admiração inicial que tempos depois seria ele que dispararia os primeiros tiros que matariam Indira. Foi este o primeiro momento que achei realmente especial.

Quando me indicaram que me deslocaria à zona onde Indira se encontrava ia um tanto de pé atrás. Era conhecida a má relação que tinha com a comunicação social. Mas tudo se modificou com a conversa que tivemos de cerca de uma hora. Logo de começo ela disse-me que sabia que eu era mais fluente em francês e nessa língua decorreria a entrevista.

Abordei os temas mais diversos a que ela respondeu com toda a franqueza. Só houve um momento mais difícil quando abordei a morte do seu filho primogénito Sanjey num desastre de planador. Como visse que o assunto a incomodava mudei rapidamente o rumo das perguntas. Finda a entrevista ela apresentou-me o filho e a nora. Rajiv ficou muito interessado ao saber que a minha mulher era goesa e trabalha na companhia aérea portuguesa.

Disse-me que na verdade era um piloto de avião e só a morte do irmão o atirara para a política. E de tal firma se estabeleceu uma corrente de empatia que me convidou a jantar com ele e a sua mulher nessa noite pois no dia seguinte eu regressaria a Portugal, o que aceitei naturalmente.

Regressado ao meu lugar momentos depois foram-me dizer que a primeira-ministra ainda me quera falar. Tratava-se de uma sugestão. Por certo que não estaria interessado em assistir a um funeral. Por isso propunha-me que durante durassem as exéquias poderia visitar as casas daa família Nerhu Anand BhavanPara tal o seu secretário pessoal Vijay Sicrit aguardar-me-ia à saída do avião com uma viatura,

Foi aí que aconteceu o segundo momento extraordinário. À chegada da chefe do Governo estava formada na pista uma força militar á qual ela passou revista acompanhada pelo comandante da mesma. Depois retirou-se. Eu fora o último a desembarcar e aguardava a chegada da viatura que me havia de levar. A força militar, provavelmente um batalhão fizera direita volver e o comandante ao ver-me no meu fato europeu e de pasta mão deve ter pensado que eu era um convidado muito especial. E marcialmente deu a ordem de olhar à direita enquanto me fazia a continência. Meio envergonhado fiz um gesto com a mão em jeito de resposta. Entretanto chegar o carro com o senhor Sicrit. E lá fomos conhecer as casas seculares da família Nehru.

Como no avião não tinha havido fotógrafo foi na casa oficial do Governo que após um largo tempo de espera e alguma irritação da senhora lá apareceu um jovem muito assustado poi nunca estiver tão perto da primeira-ministra. Enfim lá se fizeram as fotos que nessa noite, durante o jantar com Rajiv e Sónia me foram entregues. Foi a última ocasião duma entrevista muito especial exclusiva pois no dia seguinte regressei a Portugal e ao “Diário de Notícias” onde naturalmente tive honras de primeira página.  

Etiquetas:

12.4.23

*Um clique no interruptor cerebral

Por Antunes Ferreira

Hoje, sexta-feira, 7 de Abril de 2023, em que começo a escrever este texto tenho forçosamente de avisar e simultaneamente pedir desculpa a quem ainda me lê porque se trata de assunto pessoal e como tal sem interesse. Mas trata-se de um desabafo que deixo aqui para que fique registado e dele seja dado conhecimento àqueles que são minhas Amigas e meus Amigos.

Infelizmente e como julgo que sabem – não o tenho escondido – sou bipolar, o que quer dizer sujeito a alterações de humor e sensibilidade sem razões justificativas por causas intrínsecas. É como se fosse um interruptor que serve para ligar – e desligar obviamente – a disposição de um individuo, para o caso eu.

Num dia estou bem disposto escrevendo estórias com algum interesse e ironia q.b. (julgo eu e avalisadas pelos comentários que suscitam…) e de repente caio numa negação onde tudo se torna complicado e emaranhado sem ponta por onde se lhe pegue. É triste, mas infelizmente é assim!

Poderão perguntar o que têm a ver com este texto e a única resposta que posso dar já a escrevi acima: é tão só um desabafo que resolvi partilhar convosco e simultaneamente um teste que faço a mim próprio: serei ou não capaz de escrever sobre o assunto. Pelos vistos ainda sou mesmo que sem grandes rasgos de criatividade. 

Mas, afinal, o que é a bipolaridade? Para tentar compreender o que ela é recorro a definições médicas. De outra maneira nem eu (portador dela) nem quem se der ao trabalho de ainda me ler entenderá minimamente o que acontece comigo e com todos os que sofrem da bipolaridade.

A doença bipolar, tradicionalmente designada doença maníaco-depressiva, é uma doença psiquiátrica caracterizada por variações acentuadas do humor, com crises repetidas de depressão e «mania». Qualquer dos dois tipos de crise pode predominar numa mesma pessoa sendo a sua frequência bastante variável. As crises podem ser graves, moderadas ou leves.

As alterações do humor, num sentido ou noutro têm importante repercussão nas sensações, nas emoções, nas ideias e no comportamento da pessoa, com uma perda importante da saúde e da autonomia da personalidade. Não é, portanto, uma situação agradável bem pelo contrário. 

Perturbação afetiva bipolar (PAB) ) ou transtorno afetivo bipolar (TAB) (é uma perturbação mental caracterizada pela alternância entre períodos de depressão e períodos de ânimo intenso. O ânimo intenso é denominado mania ou hipomania, dependendo da gravidade ou se estão ou não presentes sintomas de psicose. Durante o período de mania a pessoa comporta-se ou sente-se anormalmente enérgica, contente ou irritável. 

Os doentes geralmente realizam decisões irrefletidas ou sem noção das consequências. Durante as fases maníacas a necessidade de sono tende a ser menor. Durante as fases depressivas a pessoa pode chorar, encarar a vida de forma negativa e evitar o contacto ocular com outras pessoas. O risco de suicídio entre as pessoas com a doença é elevado, sendo superior a 6% no prazo de vinte anos. Entre 30 e 40% das pessoas com a condição praticam automutilação.[2] Estão geralmente associados à perturbação bipolar outros problemas mentais, como perturbação de ansiedade e perturbação por abuso de substâncias.

As causas ainda não são totalmente compreendidas, mas tanto fatores ambientais como genéticos têm influência.[2] Muitos genes de pequeno efeito contribuem para aumentar o risco.[2] Os fatores ambientais incluem antecedentes de abuso infantil e stresse de longa duração.[ A doença divide-se em "perturbação bipolar do tipo 1", quando existe pelo menos um episódio maníaco, e "distúrbio bipolar do tipo 2", quando existe pelo menos um episódio hipomaníaco e um episódio depressivo maior. Em pessoas com sintomas menos graves e de longa duração pode-se estar na presença de ciclotimia

Quando esta condição tem origem em problemas médicos é classificada à parte.] Podem também estar presentes outras condições, incluindo perturbação de hiperatividade com défice de atençãoperturbações de personalidade, perturbação por abuso de substâncias e uma série de condições médicas.

Com estas transcrições julgo ter alcançado o propósito que aqui me trouxe. Espero não cair na pior hipótese ou seja agravar a situação e continuar a escrever – pelo menos como terapêutica ocupacional.

Etiquetas:

8.4.23

Grande Angular - Falta de respeito

Por António Barreto

Dizem os dicionários que o respeito é um sentimento que leva alguém a tratar as pessoas com deferência. Uma atitude que implica que se preste atenção aos outros. O comportamento de alguém que traduza consideração por outras pessoas. A maneira como se tem sempre em conta a dignidade humana e social de qualquer pessoa. O modo como se acredita que os outros merecem a honra de ser bem tratados. O cumprimento das regras e dos códigos de conduta em sociedade.

 

Na vida política, o respeito pode traduzir-se de muitas maneiras. Na ideia de que os outros são iguais a nós e não menores ou incapazes. Na certeza de que os outros também têm opiniões válidas e diferentes das nossas. Na concepção de que os outros merecem a verdade. No modo como os políticos entendem que devem o que são aos cidadãos que os elegeram. Na capacidade de olhar para si próprio e perceber o que faz de certo e de errado. No comportamento que consiste em acatar as leis, ter em conta as tradições, seguir as regras da democracia e cumprir a palavra dada. E na prática de não enganar os seus eleitores e não ocultar factos úteis para a população.

 

As faltas a isto tudo, a estas regras e costumes, designam-se por uma expressão simples: falta de respeito. É o comportamento dominante de muitos representantes do povo, de actuais titulares do poder político, de muitos governantes, de vários dirigentes do Estado, de bastantes deputados, de múltiplos titulares de funções na justiça e nas forças armadas e de vários administradores de grandes empresas públicas. Nunca, na história recente do nosso país, o espaço público esteve, como hoje, tão desacreditado, a mentira tão frequente, o engano tão presente e a falsidade tão usada. Temos vivido semanas e meses de impostura, de verdade a prestações, de mentira pública e de ilusão dolosa. A ponto de se começar a pensar que mentir é normal e necessário, que enganar é um método de governo e que disfarçar é aceitável para as regras da democracia.

 

Volta a surgir a ideia de que aos “nossos” tudo é permitido, mentir, enganar e esconder, desde que em nome dos “nossos”, do nosso partido, do nosso governo e das nossas empresas. Inversamente, nada é tolerado aos “nossos” inimigos, acusados de todas as malfeitorias. Como os “nossos” têm razão, defendem o interesse nacional, são genuínos, protegem os seus amigos e amparam as nossas causas, não podem senão ter razão. E se por acaso, excepcionalmente, por acidente, algum dos “nossos” comete um erro que todos viram, rapidamente se encontra a desculpa e a complacência: são as circunstâncias atenuantes, as causas exteriores ou a culpa dos adversários. Em poucas palavras, a ética republicana, na sua versão actual, proclama que quem ganha tem razão, quem tem os votos, manda. Desde que seja um dos “nossos”, claro.

 

O que se passou e passa com a TAP e o Aeroporto de Lisboa, é revelador de tudo quanto acima se diz. Vimos o que por vezes é difícil imaginar. Negócios indevidos, traições, carreiras destruídas, mentiras sucessivas, desmentidos, negações, demissões forçadas, acusações infundadas e retiradas, compras e vendas de equipamento a preços duvidosos, destruição de capital e medidas contraditórias ruinosas (privatização, nacionalização e nova privatização), nada nos foi poupado. É um dos mais vergonhosos casos da democracia portuguesa. E não acabou. Ainda vai haver muita TAP para as notícias e muito Aeroporto para a crónica futura.

 

Os sectores sociais mais turbulentos, actualmente, parecem ser a educação, a saúde, a habitação e os transportes públicos. Em todos assistimos a comportamentos semelhantes. Mentiras públicas sistemáticas, desmentidos, negociações sindicais insuportáveis, greves que não são greves, prestação de declarações e de contas públicas falsas. Sucedem-se as greves e os atrasos, com enormes inconvenientes para todos. A falta de previsão foi erro comum aos governantes. A crise no Serviço Nacional de Saúde é um caso flagrante de erro de governo, de incapacidade de diagnóstico, de incompetência de gestão e de indiferença perante a população. Tal como nos transportes públicos, onde a imprevisão e a incompetência, aliadas à falta de investimento, liquidam, dia após dia, os já tão decadentes transportes urbanos e semiurbanos. 

 

A inflação, o aumento do custo de vida e os preços dos produtos de primeira necessidade atravessam igualmente período de grande instabilidade. Por isso se têm prestado a intervenções públicas, designadamente de governantes e deputados, em que se multiplicam as acusações e os bodes expiatórios, as mentiras e as falsas estatísticas. O cabaz alimentar, os apoios sociais e o IVA deram oportunidade às maiores tiradas de demagogia que se imagina. Ninguém consegue explicar as razões pelas quais um muito elevado número de alimentos tem, em Portugal, preços mais altos ou aumentos mais pronunciados do que em muitos países europeus com níveis de vida superiores ao português. 

 

O comportamento de grande número de governantes, de deputados e de dirigentes da Administração Pública, é essencialmente caracterizado pela falta de respeito pelos cidadãos. Estão absolutamente convencidos das suas verdades. Mostram-se, todos os dias, cada vez mais auto-suficientes e arrogantes. Têm mentido descaradamente, contradizem-se sem limites, tem-se negado a admitir os seus erros. Limitam-se a fazer propaganda e a anunciar medidas, todos os dias novas medidas, sem o menor pudor. Mentem sem se cansarem.

 

Dizem a verdade aos poucos, mas mentem de uma só vez. O ministro diz que não sabia, veio a saber-se que sabia. O secretário de Estado não esteve presente. Soube-se que afinal tinha escrito, tinha telefonado e tinha estado presente. Os administradores foram, mas dizem que não tinham sido chamados. Os deputados estavam ao corrente, mas diziam que não sabiam. Ninguém sabia. Ninguém esteve presente. Ninguém disse. Ninguém viu nem leu. Ninguém telefonou. Ninguém recebeu o telefonema. Ninguém concordou. Ninguém recebeu mensagens. Em poucas horas se foi sabendo que eram mentiras. Viram. Sabiam. Disseram. Entraram. Saíram. Telefonaram. Escreveram. Pagaram. Receberam. Leram. Concordaram.

 

Muitos políticos são surdos, não usam óculos, nem sequer têm espelho em casa. Perderam o sentido crítico. Perderam os remorsos e os escrúpulos. Não têm vergonha. Não respeitam a lei. Nem os eleitores.

.

Público, 8.4.2023

Etiquetas:

5.4.23

A neve no Quebeque - *Um Parlamento com poucos temperos

Por Antunes Ferreira 

Nunca tinha visto tanta neve mas ela ali estava por toda a parte ominosa, um manto branco sujo cobrindo ruas, passeios, edifícios de apartamentos, vivendas e até cemitérios onde me desloquei com um amigo que ali fora em homenagem a um ente querido e me explicou que durante o pior período do Inverno não havia enterramentos devido à neve.

Estávamos em Montreal para visitar o pai e duas irmãs da Raquel que para lá tinham emigrado e estavam felizmente bem e em pleno Inverno (não havia forma de arranjar oportunidade para outro tempo de férias) e por isso a realidade era a neve. E, naturalmente o frio que a acompanhava e que levava a fenómenos também inéditos para quem como nós ali caíamos sem paraquedas.

Um exemplo apenas: as casas estavam permanentemente aquecidas e ai de que deixasse uma janela aberta. Era um verdadeiro “crime” passível de sanções cuja gravidade nem é bom referir. Os automóveis ficavam guardados nas garagens que cada prédio possuía. E ligados por ficha à electricidade pois se tal não acontecesse de manhã não arrancariam.

De reso era um verdadeiro espectáculo ver os carros circular com os tejadilhos carregados por camadas de neve. Isto quando as ruas o permitia depois dos limpa-neves municipais terem afastado para os passeios essas montanhas de branco sujo. Isto significava que os peões eram verdadeiros malabaristas.. 

Eu pensava para com os meus botões ao vê-los que mediavam entre os loucos e o heróis que todos os dias arriscavam a vida em tais “procelas pedestres”. No entanto eram relativamente poucos. Mas foi quando um dos meus cunhados me explicou que Montreal era duas cidades: a da superfície e subterrânea.

No dia seguinte a esta elucidação ele levou-me a conhecer a cidade que existia por baixo da terra. Com ruas e estabelecimentos ligadas à rede do metropolitano aliás excelente com estações amplas pejadas de gente de todas as cores, origens e vestuários. A cidade era bem o exemplo do multirracial e pluricultural. 

Estávamos na década de oitenta e decorria a questão entre a francofonia e a anglofonia. Montreal aparentemente inclinava-se para a primeira e por toda a parte incluindo nos sinais do trânsito em vez do STOP via-se o ARRET. Uma velha questão que não havia de ser solucionada e que motivara um referendo que não dera resultados concretos.

Vem de longe a questão que se arrasta sem qualquer fim à vista. O Canadá não espera que ela se resolva de um momento para o outro. Creio mesmo que nunca se resolverá. A História regista nos seus anais as diferenças entres os anglófonos e os francófonos. Desde a chegada do genovês Giovani Caboto (em inglês John Cabot) ao serviço da Inglaterra que aportou em 1497 ou 1498 à Terra Nova. Alguns historiadores defendem que terá sido um português João Vaz Corte Real o primeiro a chegar ali mas nada está provado.

Quem me forneceu estes dados em primeira mão foi o jornalista Charles /Charlie) Petit Martinont do “Journal de Montréal” o maior quotidiano em língua francesa publicado na América que eu visitei por curiosidade profissional e que de imediato se estabeleceu uma emparia entre nós que levaria a que dois dias depois jantássemos a Raquel  e eu em sua casa.

A sua esposa Céline, também jornalista especializada em gastronomia confessou-se espantada com aquele “amor à primeira vista” pois o Charlie era um introvertido que não cultivava amizades e por isso o elo que se estabelecera entre nós era um facto raro. Foi durante essa refeição que a Céline nos propôs uma ida à cidade de Quebeque para assistir a uma sessão do Parlamento.

Claro que aceitámos e ficou de imediato acordado que iríamos de comboio porque com a neve e o gelo as estradas eram um tanto perigosas e além disso o seu automóvel já tinha uns anitos… Não havia problema e nessa noite dormimos em casa deles para apanharmos no dia seguinte o primeiro comboio.

Dormimos é um termo convencional pois o Charlie e eu conversámos toda a noite sobre os temas mais variados sobretudo a independência das antigas colónias portuguesas. Ele tinha sido padre e abandonara a sotaina quando encontrara a Céline e bastante conservador longe do meu ponto de vista socialista o que não impediu uma troca de ideias frontal e salutar.

Foi ali que me contou a história do primeiro-ministro René Lévesque um defensor da ideia da independência do Quebeque, ideia que Charlie não aceitava. Um Quebeque independente para ele não tinha futuro, não tinha condições para sobreviver. Nem mesmo a teoria da associação-soberania que muitos defendiam tinha pés para andar.

Mas eu poderia aperceber-me do que se passava assistindo à sessão do Parlamento. E ficámos por ali, eu com os sentidos aguçados pelo que dali a pouco assistiria. Charlie com a convicção de que eu não arredaria pé das minhas ideias – mas com a certeza de que havíamos conquistado pontos que cimentavam uma Amizade acabada de plantar e que daria frutos de cores diversas e sabores distintos.

E no dia seguinte lá fomos num comboio aquecido, usando parkas volumosas que tínhamos comprado no Walmart para usarmos, pois a roupa que tínhamos trazido de Não era a mais indicada face à temperatura que sabíamos através do canal de Meteorologia que dava ininterruptamente na televisão. 

Entrámos no edifício da Assembleia Legislativa do Quebeque num corredor formado por neve acumulada e continuava a nevar. São verdadeiras paredes brancas sujas que limitam a entrada do edifício. Vamos para a galeria que fica atrás das filas dos deputados. Discute-se o Orçamento, nos moldes habituais em qualquer Parlamento.

O primeiro-ministro usa da palavra, e percebo de imediato que se trata de um político batido, um profissional. Recordo os dados que me tinham sido fornecidos pelo Charlie Petit Martinont. Lévesque tinha iniciado a sua carreira como repórter e apresentador de rádio e televisão, e mais tarde  tornou-se conhecido pelo seu papel eminente na nacionalização da energia hidrelétrica do Quebeque e  como um defensor ardente da soberania desse mesmo Quebeque.

Foi um ministro liberal no governo de Jean Lesage de 1960 a 1966 e o ​​primeiro líder político quebequense desde a Confederação a tentar, por meio de um referendo, negociar a independência política do Quebeque. Mas não conseguiu alcançar os objectivos pois a margem do SIM foi diminuta, umas poucas décimas em relação ao NÃO.

O sonho alimentado ao longo dos tempos que teria um momento muito especial aquando da última visita de De Gaulle altura em que o general e presidente da República de França fez a célebre afirmação: “Vive le Québec libre!” caíra para jamais se levantar. O sonho não passaria disso mesmo: um sonho!

Para apanhar o comboio de regresso a Montreal saímos antes de terminar a sessão. E já instalados na carruagem a Céline comentou com um sorriso quase angelical: “Oxalá tenham gostado, ainda que os temperos não fossem grande coisa…”

  

Etiquetas:

1.4.23

Grande Angular - Justiça, sempre. Justiça, nunca.

Por António Barreto

É um dos mais misteriosos problemas da vida nacional: a permanente degradação da justiça. Quais são as verdadeiras causas deste estado de coisas? A política? As leis? As magistraturas? Os orçamentos? A sociedade? Os interesses? As faculdades de direito? Nenhum diagnóstico parece completo. Mas não há dúvidas de que a evolução, ao longo das últimas décadas, tem sido negativa. A justiça portuguesa teve dificuldades em adaptar-se a tudo o que de importante aconteceu. À democracia. Aos direitos dos cidadãos. À economia de mercado. À União Europeia. À globalização. Ao digital. E à liberdade de informação. Na verdade, ficou para trás e foi-se atrasando.

 

Só num aspecto os diagnósticos são convergentes: a situação é difícil ou grave. Uns acentuam os interesses das magistraturas. Outros sublinham as pressões dos poderosos da política, da economia, dos sindicatos e das instituições. Alguns garantem que as responsabilidades são dos partidos políticos, do legislador e do Ministério. Enquanto outros apontam para a venalidade dos magistrados e a tibieza perante as solicitações dos bandidos. Mas há ainda, finalmente, quem garanta que o essencial se deve ao espírito jurídico nacional, ao formalismo das tradições portuguesas e ao conservadorismo do ensino do Direito. Quais são as verdadeiras causas? Mistério.

 

Não se conhecendo as causas, é difícil encontrar os remédios. Talvez seja esse o sentido de outro dos mais enigmáticos problemas da sociedade contemporânea: por que razão nenhum partido político, nenhum governo, nenhum Presidente da República, nenhum Conselho Superior da Magistratura Judicial ou do Ministério Público, nenhum Supremo Tribunal, nenhum Procurador-Geral e nenhum Sindicato tentou ou protagonizou um processo de reforma?

 

Entre os diagnósticos, há uns mais certeiros do que outros. Por exemplo, a falta de preparação das leis, dos magistrados, dos tribunais e das polícias para tratar do crime organizado e da alta criminalidade ligada à corrupção política e económica. Ou então, a tradição burocrática nacional a que se juntou o excesso de garantias de todo o sistema. Ou ainda, finalmente, o livre trânsito dos magistrados entre os tribunais, as empresas, os partidos e os cargos políticos. Tudo isso é possível. Mas não se trata realmente de respostas. São novas perguntas às quais é necessário responder.

 

Uma das grandes dificuldades reside no facto de que reformar a justiça pode matar a liberdade e a democracia. Como pode destruir a independência dos magistrados e dos tribunais, valores insubstituíveis. Reformar eficazmente a justiça, em democracia e garantindo a independência dos magistrados é a grande dificuldade, o dilema da política de reformas. A justiça tem um paralelo possível com as Forças Armadas. São ambas essenciais à liberdade. Mas o seu funcionamento não é ou é pouco democrático. As decisões não dependem do voto dos cidadãos e dos utentes. O princípio da eleição não é geralmente aceite nestas organizações. Nem poderia ser. Mas ambas estão submetidas a uma génese democrática que lhes dá legitimidade. Em poucas palavras, a justiça não é democrática, mas a democracia depende dela.

 

O Tribunal Constitucional revela-se incapaz de substituir os seus membros, o que fere a sua própria legitimidade. Com suspeitas fundadas, a distribuição de processos continua inquinada. Sucedem-se as avarias dos sistemas, com quebras de comunicação que podem durar horas ou dias. Aumentam, com ou sem greve, os atrasos de julgamentos e outros actos. Seria interessante que alguns políticos, jornalistas e académicos visitassem os tribunais, reparassem nas testemunhas que esperam horas, nos adiamentos dos processos e nos julgamentos que não se realizam sem que as testemunhas sejam informadas. Quem pensa nas centenas ou milhares de pessoas, arguidos, assistentes, testemunhas e advogados que perdem horas e dias à espera, a “meter” baixas nos seus empregos, a ter de voltar uma, duas e três vezes?

 

A duração, os incidentes, as perturbações e as decisões contraditórias e incompreensíveis dos grandes processos de políticos e poderosos, as famosas causas célebres, já não se explicam nem justificam, mas deixam a sensação e a certeza de que a justiça portuguesa está cativa, é desigual e foi capturada por interesses ilegítimos.

 

Será que os magistrados, os membros dos Conselhos Superiores, as associações judiciais e a Ordem dos Advogados não se dão conta do mal que se está a fazer aos portugueses, à democracia e à justiça? Será que não percebem que o que fazem agora garantirá, por décadas, a má reputação da justiça? E os governantes que se ocupam directamente da justiça, os deputados que têm o exclusivo de competências em matéria judicial e os altos funcionários judiciais não se dão conta dos danos que estão a ser infligidos à Justiça e à democracia? E os magistrados que não são cúmplices, que cumprem os seus deveres, que respeitam as declarações dos direitos humanos, esses magistrados não se dão conta que, sem culpa nem proveito, sofrem da má fama que o sistema e as autoridades lhes infligem e provocam?

 

Os magistrados têm evidentemente culpas e responsabilidades no estado em que a justiça se encontra. Mas não tenhamos dúvida de que há outros responsáveis com o mesmo grau de culpa ou maior ainda: o legislador e o poder executivo. E os órgãos superiores do sistema judicial que se entendem bem com este estado de coisas. A entrada e a saída da profissão, a porta giratória com a política e a economia pública e privada, assim como a vizinhança com entidades políticas e partidárias, ajudam a explicar a inércia e a atitude conservadora da magistratura, do legislador e do governo. 

 

Quem poderá tomar a iniciativa de um movimento de reforma? Quem poderá iniciar um debate com sentido das realidades e eficiência? Que órgão de soberania, Presidente, Governo ou Parlamento poderia tomar a iniciativa de mandar elaborar um Livro Branco e um roteiro de reformas para a justiça? Que fundação privada, universidade ou academia poderia dar o sinal de partida para uma análise, um apuramento e um programa de reformas? Uma coisa é certa: aquilo com que sonham os antidemocratas e radicais de vária penugem, a “vassourada” ou a “barrela”, não é aconselhável. Além de que seria contraproducente: transformaria o caos democrático num caos autoritário, com sacrifício da liberdade e da democracia.

.

Público, 1.4.2023

 

Etiquetas: