AQUELE BORREGUINHO BRANCO.
Por A. M. Galopim de Carvalho
“Comer o borrego pela Páscoa, no Alentejo, como no resto do País, está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós, vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor, todos os anos evocadas durante a Semana Santa.
Nos meus tempos de criança quem tinha posses matava o borrego em casa, no sábado, logo pela manhã, a fim de que a sua carne pudesse figurar na ementa do almoço desse dia, já festivo, depois de bem anunciadas as Aleluias, ao meio-dia, nos carrilhões da Sé, logo seguidas pelo repicar de todos os sinos de todas as igrejas da cidade e arredores.
Era a festa! Era o fim do luto!
Umas semanas antes da Páscoa, por volta do ano de 1936, o meu pai comprou um lindo borreguinho acabado de desmamar, que já se governava sozinho se o deixassem em campo com erva.
Nós tínhamos necessidade de o levar a pastar, "fora de portas", no que nos disputávamos constantemente. Cada um queria para si o direito de segurar da corda que o prendia à coleira, onde chocalhava um pequenino guizo de latão. Vê-lo saltar, correr com ele que, por fim, já nos seguia, sem trela, e vinha ao nosso chamamento, era uma alegria nunca vivida. O Chico, que era o irmão mais velho dos então cinco irmãos, fez-nos saber qual era fim destinado ao nosso alegre e simpático companheiro de folguedo nos terrenos incultos e cheios de erva do lado de fora da muralha fernandina.
Inexoravelmente, aproximava-se o sábado, o dia do sacrifício. Cedo se organizou um “comité” de luta. Uns, entre os quais eu, tinham por missão espiar os planos do “inimigo”, procurando nas conversas dos pais os elementos com que os mais velhos delineavam as estratégias a empreender.
Já sabíamos que o tio Manuel, irmão do pai, caiador e homem de todas as profissões, viria sábado, bem cedinho, ocupar-se da matança antes que os sobrinhos acordassem. Eu teria quatro para cinco anos, era o mais novo; o mais velho, uns onze a doze e os três do meio, a Lourdes, a Beatriz e o Mário, faziam, entre si, diferença de um ou dois anos. Nessa manhã, após uma noite de vigília dos mais velhos, que se revezaram em quartos para que não falhasse a alvorada, levantámo-nos bem mais cedo do que a mãe pensava e aguardávamos o momento de dar execução ao plano traçado e meticulosamente aprendido por cada um, no papel que lhe cabia.
Entretanto, nos dias que antecederam aquele Sábado, tínhamos exercido intensa actividade de sensibilização da mãe, onde sabíamos estar a última palavra no desfecho do drama, chamando-lhe a atenção para a graciosidade do bicho, forçando-a a acariciá-lo, redobrando, para que visse, as nossas atenções e brincadeiras com ele.
- Ó mãezinha, ele é tão lindo! Nós gostamos tanto dele!
Visivelmente aflita, a mãe já não sabia o que fazer, dividida, por um lado, entre as dificuldades próprias de uma família numerosa e de posses muito limitadas e, por outro, o nosso amor por aquele animalzinho e a simpatia que, também ela, já nutria por ele.
Quando, no sábado, o tio chegou, a mãe, de olhos inchados e vermelhos, já estava no quintal com os alguidares e os preparos necessários. O tio trazia a navalha, bem afiada e bicuda. Num canto, o "mémé", branco de algodão, preso à trela, balia como que chamando a si a atenção da mãe que, roída por dentro de remorsos antecipados, evitava olhá-lo.
- Vá, Manuel, despache lá isso, depressa!
De rompante, descemos a escada de acesso ao quintal e berrando uns, chorando outros, rodeámos o animalzinho com tanta determinação que não houve quem tentasse, sequer, tirá-lo das nossas mãos. A mãe, mentalizada de há muito pela nossa acção, foi a primeira a ceder, mais aliviada do que contrariada. Afinal, também ela não queria o sacrifício do bicho e percebera a tempo o que essa violência representaria para nós.
O tio, completamente alheio ao drama, aceitou mal aquela mudança de última hora, não prevista e, sobretudo, o que mais lhe desagradou foi perder aquela pele branquinha que lhe renderia uns tostões. Saiu resmungando, indignado com a cena de insubordinação.
O pai foi o último a saber do resultado do confronto. Quando apareceu no campo da refega, a batalha estava decidida e não seria ele a pegar na faca. Não havia vencidos!
Havia Aleluias!”
Para o bicho, para nós e também para eles, de aliviados que ficaram. O pai acabou por ir ao talho comprar a carne que a mãe, de pronto, encomendou para a Festa que, assim, o foi de facto.
De um borrego qualquer, que nunca havíamos conhecido e passada que foi a tensão vivida, com que apetite comemos e que bem que nos souberam aquelas costeletas fritas com alho, aquele maravilhoso assado, no Domingo, e o ensopado, na Segunda-feira de Festa.
O borreguinho, acabámos por conceder, levou-o para o monte o senhor Domingos, o marido da nossa lavadeira, depois de nos prometer, solene, libertá-lo entre os outros que por lá andavam e não consentir que ninguém o levasse. – Nunca!
De vez em quando perguntávamos-lhe por ele.
- Está lindo e mais crescido!
– Ó paizinho, quando é que vamos ao monte do senhor Domingos ver o nosso amigo?
- Um dia destes! – respondia.
O tempo encarregou-se de diluir a nossa preocupação e de nos confrontar com a realidade que também nos ensinou a aceitar.
Esta história, tantas vezes contada em sucessivas festas de Páscoa, reunida a família em torno da mesa com a assadeira de barro ao centro, fumegante e apetitosa de odor e cor, sofreu ao longo dos anos retoques de todos nós, já crescidos, dando-lhe as cores que cada um tomou para si.
Porém, no essencial, foi isto que aconteceu, há uns oitenta e poucos anos. Nunca soubemos o destino deste nosso companheiro, embora não seja difícil imaginá-lo.
Para mim, em todas as Primaveras, há sempre, nos campos do Alentejo, um borreguinho branco e saltitante a perpetuar-lhe a imagem.
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1 Comments:
Enternecedora, a "estória"
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