2.3.24

Grande Angular - O fim dos partidos políticos

Por António Barreto

O fenómeno não é novo. Mas é mais real do que nunca. Esta eleição veio acelerar o desaparecimento dos partidos políticos. Pelo menos, tal como os conhecemos durante décadas. A campanha está sobretudo concebida para a televisão e “as redes”. O que quer dizer preparada para as aparições dos chefes à saída dos restaurantes, as visitas dos chefes a hospitais e ao repouso dos chefes. Tudo está pensado para que os momentos importantes sejam os debates e as entrevistas de televisão dos chefes. Até os programas da manhã, que não era possível imaginá-los com política à mistura, são agora feitos de modo a que os chefes apareçam e por ali espalhem os seus talentos privados e as suas sofisticadas modéstias.

 

Na verdade, não estamos perante uma competição entre partidos, muito menos uma apresentação de alternativas. Estamos, isso sim, diante de um combate de chefes. E de uma passagem de modelos. Se a eleição fosse a do Presidente da República, ainda vá. Mas não é. Não se trata de cargo pessoal. Só combate de chefes. Mesmo os que elogiam o colectivo, deixam-se arrastar pelas vaidades dos duelos. Mesmo o Bloco e o PCP, tão palavrosamente elogiosos do trabalho de equipa, acabaram por tudo fazer girar à volta do chefe.

 

São cada vez mais fortes os indicadores das novas tendências, as que substituem o papel dos partidos pela função dos líderes. Poderá dizer-se que não se trata de fenómeno novo. Mas novo é o facto de tal se fazer à custa da dissolução sistemática das estruturas dos partidos. Os organismos partidários são meros instrumentos do Chefe. É visível e deplorável o apagamento de estruturas partidárias. A doutrina comum, a natureza de classe, as inclinações religiosas, as tradições comunitárias e as opções doutrinárias desaparecem, deixando lugar às mais banais proclamações adjectivas.

 

Movimentos novos e partidos tradicionais agem no mesmo sentido, no da destruição do partido como organização política autónoma e reconhecida. Pelo que não percebem das mudanças do eleitorado. Pelos erros que cometem. Por esta espécie de autismo em que os partidos vivem, na certeza de que tudo o que está mal é da culpa dos outros, da extrema-direita, dos esquerdistas, dos imigrantes, da juventude sem credo e do povo sem crença!

 

Sem partidos políticos, não há democracia. É, para muitos, um princípio indiscutível. Mas não é possível deixar de pensar em todas as outras possibilidades. O que é a democracia sem partidos políticos, ninguém sabe. Mas…. Há quem pense que é possível organizar a vida política das comunidades com outras instituições e de outras formas. Teoricamente, a democracia pode ser melhor sem partidos. Com menos “rackets” organizados para capturar o Estado e as autarquias.  Mas também pode ser pior, com movimentos ditos “inorgânicos” e efémeros, sem identidade histórica nem programa, sem doutrina nem valores de referência, quase só energia e protesto. E vontade despótica.

 

Os partidos políticos podem ser fonte de racionalidade, tal como os “movimentos” são factores de irracionalidade. Os novos movimentos, associações e grupos efémeros, dependem de racionalidades ou interesses externos, ligados a uma pessoa, herói ou demagogo.

 

Há vários exemplos em Portugal. É uma realidade em crescimento. Chega, PAN, ADN, Bloco de esquerda, Nova Direita e outros pertencem a esta nova variedade. Os dois grandes partidos, PS e PSD, resistem, mas já exibem as suas fraquezas. O mais antigo, PCP, está em vias de desaparecimento, como em quase todo o mundo. O CDS já despareceu. É possível que a democracia portuguesa seja dominada, nas próximas décadas, por figuras efémeras, agentes de interesses, mafias internacionais…

 

As presentes eleições e respectiva campanha são as mais certeiras demonstrações deste caminho para a destruição dos partidos como centros de racionalidade. Uns desapareceram. Outros nasceram, mas já não são partidos políticos no sentido conhecido. Os que melhor resistem são agora obrigados a compor com movimentos, com iniciativas sem história e talvez sem futuro. Mas que são o que é hoje a política. Os que se mantêm como partidos deixaram de perceber os cidadãos. E deixaram de ter que lhes dizer. Não recebem inspiração, nem lhes dão valores, só subsídios e pensões. O tema não é evidentemente português. O mesmo acontece em vários países, na Itália e em França, ou na Europa central e oriental. Muitos são os partidos socialistas, social-democratas, democrata-cristãos, comunistas e radicais que já desapareceram.

 

Curiosamente, os partidos tinham mais existência, como organizações e estruturas associativas, quando tinham líderes fortes e notáveis (Soares, Sá Carneiro, Cunhal…), do que agora que parece terem dirigentes iguais aos militantes. Em certo sentido, parece poder dizer-se que os chefes muito fortes eram traços de continuidade ou faróis de reconhecimento. Os seus partidos podiam perder ou ganhar, mas eles mantinham-se por períodos razoáveis (talvez de mais, quem sabe?) e os programas duravam com eles. Hoje, líder derrotado é líder morto. Chefe que não vence vai para a rua. Líder que vence, fica e manda.

 

Chefes fortes de partidos fracos são más receitas para a democracia. São partidos com poucas relações com as instituições, as associações profissionais, os sindicatos, as empresas, as religiões, as universidades e outras, que reforçam as democracias e as liberdades. Chefes fortes querem dar voz ao descontentamento, ao protesto e às pulsões naturais das pessoas em dificuldade. São partidos instantâneos e fracos que não existem sem os seus líderes de momento.

 

De modo crescente, as campanhas eleitorais têm sido viveiros de líderes fortes de partidos fracos, o que é confirmado pelas dezenas de comentadores, jornalistas, analistas e académicos que ocupam os canais de televisão. Já ninguém quer saber da espessura política e da vivacidade doutrinária de um partido. A ideia é simples: a mensagem passa se o líder passa. O líder passa se tudo depende dele, se só ele tem voz e se os militantes se limitam às árias do coro ou às funções do papagaio. Aliás, os debates, as entrevistas e os comentários giram cada vez mais à volta das questões adjectivas. Com quem se alia? Quem rejeita? Quem exclui? De quem quer apoio? E se perder muito? E se ganhar pouco?

 

Convém não esquecer: os partidos fracos tornam fracos os fortes líderes.

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Público, 2.3.2024

 

 

 

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