22.4.23

Grande Angular - Demissão, Remodelação e Dissolução

Por António Barreto

Ao menor problema, o que se ouve em Portugal é um imediato pedido de demissão do Ministro, do Primeiro-Ministro ou do governo. Para as oposições, a demissão do ministro é quase o primeiro passo de uma luta. Este hábito, ou vício, é próprio de todas as oposições, qualquer que seja o governo em exercício. Tenha este uma maioria ou não, seja de um só partido ou de coligação.

 

Convencionou-se, há muitos anos, que fazer oposição era falar duro, o que se traduz por regras simples. Pedir a demissão do membro do governo. Exigir uma remodelação. Pedir que o Primeiro ministro e seu governo sejam substituídos. E exigir a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições.

 

Esta liturgia é quase independente da força do partido de oposição. Seja o deputado único, seja o grupo parlamentar de meia dúzia de deputados, seja finalmente o partido com 80 deputados, em todos os casos a exigência da demissão ou da dissolução é considerada a mais forte voz de oposição.

 

Os partidos que todas as semanas pedem demissões, exigem remodelações e procuram convencer o Presidente a demitir o Governo ou a dissolver o Parlamento (que não são a mesma coisa, pode haver uma sem outra) não mostram outra coisa que não seja a impaciência, a sofreguidão e a vacuidade política. Aquilo que se chama na gíria política “elevar a voz”, “ser duro com o governo” e “fazer verdadeira oposição” tem, entre nós, uma versão muito especial: pede-se a demissão e a dissolução. O problema é que se percebe logo: é quem não sabe o que fazer.

 

É verdade que, em vários sectores, a acção do governo actual se tem revelado desastrosa. Alguns ministros foram ou são manifestamente incompetentes ou têm visões estranhas do interesse nacional e do bem público. Já ninguém duvida de que este governo e o seu partido têm uma estranha concepção de família política e de legitimidade partidária. Mas também é certo que alguns ministros se portam bem, desempenham com honra e eficiência as suas funções e se mostram capazes de gerir a Administração. 

 

Nada do que precede justifica uma dissolução. Por vezes, nem sequer uma remodelação. Estamos muitas vezes diante de políticas, de doutrinas e de visões particulares do interesse público. Tudo isto faz parte do que deve ser avaliado em eleições a realizar a seu tempo. Nestas, confirmam-se os vitoriosos e despedem-se os que erram. Chamam-se novos, substituem-se velhos e castigam-se incompetentes. 

 

Entre os que reclamam demissões e dissolução, um argumento frequente é o de que já não se pode garantir o “regular funcionamento das instituições democráticas”. Quem o invoca, não necessita argumentar: o peso da acusação basta-se a si própria. Ora, tal não é verdade. O regular funcionamento das instituições democráticas está sobretudo ligado à demissão do governo, isto é, à competência do Presidente da República para demitir o governo. No caso da dissolução da Assembleia da República, esta ressalva do “regular funcionamento” não está explícita na Constituição. Isto é, a dissolução é um “acto livre” do Presidente, apenas limitado pela necessidade de, previamente, ouvir o Conselho de Estado e os partidos, sem que tenha de obedecer ou seguir o que dizem as pessoas ouvidas. Mas é um “acto livre” de gravidade extrema para uma situação muito grave.

 

Mesmo não sendo rigoroso, o argumento do “regular funcionamento” tem efeitos e assusta. Mas é totalmente desadequado. Na verdade, o que mais está em causa, hoje, são as políticas, não as instituições. O Serviço Nacional de Saúde, a funcionar tão mal, não é uma instituição democrática. As escolas, em crise evidente, também não. A TAP, a CP e os transportes públicos, em situação caótica, não são instituições democráticas. São empresas, entidades e serviços públicos essenciais para a felicidade dos povos, para o bem-estar e para a economia. Mas não são instituições democráticas. Fernando Medina e Pedro Nuno Santos cometeram erros e são responsáveis por uma gestão muito controversa da política pública e da sua carreira. Mas não são instituições democráticas. Tiago Brandão Rodrigues e Marta Temido tiveram uma gestão desastrada dos seus ministérios, mas não são instituições democráticas. O Aeroporto de Lisboa, a COVID e a guerra na Ucrânia são assuntos graves, temas em que o governo se pode portar bem ou mal, mas não se trata de instituições democráticas.

 

Estas são as que garantem os direitos fundamentais dos cidadãos, as que fazem funcionar o sistema político, as que asseguram as grandes funções do Estado como a Justiça, a Administração Pública, a moeda, as forças armadas e a ordem pública. Quando o seu funcionamento deixa de ser regular, quando a ilegalidade invade estas instituições, quando estas ameaças não são devidamente contrariadas pelos poderes políticos, pelo Parlamento e pelo Governo, então aí sim, impõe-se uma dissolução do Parlamento ou a substituição do governo. Mas mesmo nesses casos, o que realmente se impõe não é a opinião do Presidente da República. O que se impõe é um veredicto popular e uma renovação da vontade dos cidadãos.

 

Entre os dispositivos que mais contribuíram para o prestígio da democracia conta-se a realização de eleições livres, com datas conhecidas e regras definidas. Assim como a ideia de mandato. Isto é, uma pessoa e um partido são eleitos com base nas identidades, na história e no programa, assim como no cumprimento do mandato conferido. Este não se mede semanalmente, nos jornais e nas televisões, com sondagens. O cumprimento dos mandatos mede-se periodicamente, em eleições, ao fim de um certo tempo conhecido. E os mandatos são para cumprir até ao fim. Salvo casos absolutamente graves e excepcionais. Ou então em situação de total impasse das instituições. Por exemplo, na impossibilidade de um governo passar no Parlamento e ter orçamento e confiança.

 

O Presidente da República, qualquer que seja o seu estilo, pode perfeitamente dar recados, tentar influenciar, fazer sugestões, chamar à atenção e até criticar. Tudo em recato. Por vezes até com algum grau, moderado, de publicidade. Mas não tem nem deve envolver-se na política e nas políticas, fazer opções, destinar, impedir e fomentar. A reserva presidencial é um dos mais valiosos dispositivos constitucionais que importa valorizar e proteger. São sinistras as ideias que sugerem que o Presidente da República deve calcular as hipóteses de haver alternativas, deve seguir as sondagens da semana e deve saber se os seus favoritos estão bem colocados para ir a eleições.

.

Público, 22.4.2023

Etiquetas: