18.3.23

Grande Angular - Pode acabar mal

Por António Barreto

Não é provável. Mas é possível. Isto pode acabar mal. O que é “isto”? O regime democrático, as liberdades públicas, a paz social e um razoável desenvolvimento. Mas sobretudo a democracia e a liberdade.

 

Poderá mesmo acabar mal? Não será demasiado pessimismo? Mais uma vez Cassandra? Ou os habituais Profetas da Desgraça?

 

É mesmo o caso. Pode acabar mal. Ainda há pouco, havia trunfos inesquecíveis. Há ou havia dinheiro e capital disponível. Não era português, nem privado. Era europeu. Mas havia. E era capital. Havia paz social. Nas ruas e nas empresas vivia-se um relativo conforto. Sem fortuna, nem exaltação. Mas alguma serenidade. O desemprego era baixo. Ou antes, não era alto. Tempos houve em que 6% era muito. Agora, já parece ser aceitável. O parlamento gozava de maioria absoluta, um dos mais formidáveis instrumentos de governo, um trunfo raro na história da democracia portuguesa. Era claro e indiscutível. O trunfo continua lá. Mas as dissensões dentro do partido do governo revelam tempestades para amanhã. E a desordem nos espíritos é má conselheira. Entretanto, da rua e da vida, vêm constantes rumores. Descontentes.

 

O primeiro ministro parece cansado. Não se sabe se é só isso ou se é incerteza quanto ao que há para fazer. Ou vontade de ir embora. A sucessão de demissões deixou má impressão no país. Fica-se com a sensação de que os governantes não sabem que fazer, não têm competência ou não se interessam. A história da TAP, do aeroporto, dos comboios, do TGV e dos transportes públicos é reveladora desta incapacidade. As únicas coisas em que o governo parece especialista são a distribuição de subsídios e a encomenda de estudos inúteis.

 

Que aconteceu para que as escolas e os professores estejam em crise como raramente se viu? Que aconteceu para que os hospitais, as maternidades, as urgências, os médicos e os enfermeiros, para já não falar dos doentes, se encontrem neste estado? Que aconteceu para que surjam, nas áreas metropolitanas, novas barracas, mais sem abrigo e mais droga nas ruas? Que se está a passar com as políticas de população, quando a emigração continua e a imigração aumenta, com os incentivos que o governo dá ao mercado negro de trabalhadores, ao tráfico de imigrantes e ao trabalho ilegal? Que continua a passar-se com a justiça, incapaz de resolver os casos difíceis de poderosos, de afortunados e de políticos? Que se passou com o mercado da habitação que vive na desordem e revela a sua maior violência social, sem que as autoridades tenham a noção do que deve ser feito, a não ser acudir aos miseráveis?

O que se passou ou está a passar na Armada, na Madeira e relativamente ao NRP Mondego, parece ser de gravidade extrema. Poderia ser apenas um caso isolado ou um incidente episódico sem dia seguinte, mas tudo leva a crer que seja sintoma de mal-estar, de perda de confiança e de disciplina, de falha na coesão na Armada e nas Forças Armadas. Ou até de abismo entre o poder político e as Forças Armadas. Até agora, ainda não houve esclarecimento. Os órgãos de poder político esforçam-se por disfarçar. Após tantos sinais de inquietação, já seria tempo de ver o poder político preocupar-se com as Forças Armadas: não só com as questões habituais, o equipamento, a organização, os efectivos, as capacidades e os orçamentos, mas também com as questões mais importantes, o clima geral no seu interior, a relação das Forças Armadas com a sociedade e com o Estado. Era tão bom que os políticos percebessem de uma vez por todas que, sem Forças Armadas, não há democracia, nem liberdade, nem paz social!

 

A Igreja católica portuguesa, uma das mais importantes instituições nacionais, acaba de se afundar numa das suas piores crises. Por sua obra e graça! Os católicos vão ficar a perder, não se sabe por quanto tempo. Os portugueses também. A crise actual da Igreja é provavelmente a mais grave do último século. Com uma característica: não tem origem em ataques feitos a partir do exterior, da política, dos costumes e de crenças concorrentes, mas sim a partir de dentro. A Igreja, a sua hierarquia e os seus sacerdotes só se podem queixar de si próprios. A Igreja pecou por altivez e presunção. 

 

Esta crise vai ter consequências na sociedade. Crise de confiança, tanto por parte da população em geral, como do lado dos seus crentes. A dúvida e a incerteza perante a Igreja são sinais de desconfiança. Nas instituições da sociedade civil, nas instâncias do poder político, nas regras de direito e no funcionamento da Justiça. Apesar disso tudo, é difícil detectar um esforço de correcção dentro da Igreja portuguesa. Mas quase só é visível a tentativa de encobrimento, de subvalorização, de menoridade e de complacência.

 

De fora, do mundo, não chegam boas notícias. Guerra sem fim à vista. Tensão política e militar internacional. Nova crise financeira e bancária. Incerteza sanitária. Novas crises de imigração. Sérias perturbações sociais em vários países europeus. Crescimento das políticas radicais. Para tudo isto, em Portugal, era necessária uma política segura, uma democracia sólida e instituições estáveis. Além de confiança da população nos seus dirigentes. O que não parece ser o caso.

 

O Governo está a passar um mau bocado. Portugal e os portugueses também. Era bom estarmos atentos. O pior pode acontecer. Há instituições, mas são frágeis. Há recursos financeiros, mas estão a ser distribuídos e um dia acabam. Há defensores das liberdades, mas também há desconfiança e afastamento. Há partidos políticos democráticos, mas também há os que o não são e ameaçam a democracia. Há protesto político, mas o descontentamento social, sem conotação partidária, exprime-se nas ruas. Os partidos estão presentes nos meios mais agitados, mas nas escolas, nos hospitais, no Serviço Nacional de Saúde, nos transportes públicos e nos supermercados é crescente a convergência entre esquerda e direita, a ponto de se poder dizer que o protesto social é pouco partidário. O regime e o sistema de governo parecem estar a perder talento, competência e capacidade para tratar das questões de fundo e das crises presentes.

 

Há um mau ambiente social evidente. Muito mais perigoso do que a estridência política e a berraria de candidatos a salvar a pátria.  O que é realmente ameaçador é o mau ambiente, essa espécie de burburinho permanente, o descontentamento da população, as dificuldades em que vivem os cidadãos. O pior pode acontecer. Não é provável. Mas pode.

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Público, 18.3.2023

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1 Comments:

Blogger Bmonteiro said...

«Que aconteceu?»
No Estado, nas governanças,
o que não pode ocorrer nas empresas privadas, sob pena de colapsarem.
Falta de objetivos realistas, orçamentos atribuídos sem critérios sérios, ausência de controlo. Prioridades, ou apagar fogos, nos incêndios, como agora na Armada?
Criatividade organizacional por cada novo governo, ao sabor da colocação dos militantes do partido, inventando ministérios e secretarias de estado.
Afastar continuidade e coerência no conjunto-os navios da Transtejo, no Ambiente, é de cabo de esquadra.
E por cada nova Legis, quase nada aproveitar do governo anterior se de outro partido, o inimigo.
Sem soluções de continuidade, pese este PS, parecer agora convertido à contenção da austeridade da época da tróika.
Vista a sucessão de casos e casinhos recentes, um ar de esgotamento nas hostes de gente adulta no Partido?
O caso Paióis de Tancos, serviu para alguma coisa de novo?


20 de março de 2023 às 21:51  

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