29.3.23

O estranho ornitorrinco - *A Austrália é a pátria deste animal

Por Antunes Ferreira

No avião que nos leva a Melbourne Onde residem primos da Raquel as assistentes de bordo e os comissários distribuem una impressos para ser preenchidos com os dados de cada passageiro, número do passaporte, duração da estada na Austrália, local onde ficar, etc. e um item sublinhado: aviso que é absolutamente proibido trazer para o país qualquer tipo de alimentos sob pena que pode chegar a prisão.

Se por acaso for portador de tais coisas ao longo dos corredores que levam aos controles de passaportes e aduaneiros existem recipiente onde podem ser deitados os mesmos. E repete-se ameaçador o aviso: sob pena de prisão. Ora a Raquel levava no seu anoraque diversos pitéus de comida goesa para ofertar aos familiares e decidiu ignorar o folheto e a consequente ameaça!

Chegados aos guichês da polícia de fronteiras, cobarde, eu dirigir-me a um, enquanto a minha esposa foi para outro. Passei sem quaisquer problemas e fiquei siderado pois ela demorava-se em conversa com o agente que era, após um cenho franzido, todo sorridos. A fila que aguardava a sua vez de ser entrevistada já se impacientava e surgiam alguns comentários mais críticos.

E eis que a boa da minha cara metade, depois de entregar ao funcionário um cartão de visita seguiu impoluta e segura a recolher a bagagem sem quaisquer problemas. Eu, pasmado nem queria acreditar em tal milagre. Claro que ali não a inquiri sobre o que s tinha passado embora estivesse carregado de dúvidas. Que mistério acontecera? Como atravessara ela não o cabo da Tormentas mas o guichê fatal?

Cá fora, na rua, aguardavam-nos os primos que eu não conhecia mas cuja simpatia era mais do que evidente. A caminho da casa a Raquel contou as peripécias que tinham rodeado a passagem pelo controle na fronteira e informou das chamuças e outros manjares que trazia com ela para regalo da família. Foi um espanto geral.

Chegados a casa e depois de uns uísques retemperadores ela contou com pormenores o que tinha passado. O oficial começara por lhe perguntar face ao visto de turista se tinha familiares na Austrália ao que ela respondera que não, que vinha apenas como turista gozando do privilégio de ser empregada da TAP – coisa que ele não conhecia – e mostrou-lhe o cartão da companhia explicando-lhe que era a transportadora aérea portuguesa.

Depois informou-o de que era amiga do embaixador australiano em Lisboa, por isso tinha aquele visto muito especial e fora ele que lhe indicara os melhores alojamentos quer em Melbourne quer em Sidney, mostrando também uma carta da embaixada assinada pelo próprio diplomata. A conversa surtira o efeito pretendido e o agente desejara-lhe uma boa estadia e carimbara o salvo conduto, tendo ainda a Raquel deixado-lhe um cartão de visita para ele usar no caso de ir a Portugal.

A estória foi motivo de conversas durante os dias que passámos em Melbourne que não tinha grandes motivos para dissertações. Os transportes colectivos estavam em greve, com autocarros e eléctricos estacionados nos principais cruzamentos com o pessoal sentado calmamente lendo os jornais do dia, fumando  e até jogando às cartas. 

Foi aí que me apercebi dum fenómeno que me deixou profundamente admirado. Na Austrália eram proibidos artigos para eliminar moscas, as cattle flies. Ou seja as moscas do gado. Sendo um grande produtor de carne as moscas eram “sagradas”. Um dia quando nos deslocávamos à praia assisti a um fenómeno espantoso que, infelizmente por não ter connosco máquina fotográfica não registei.

Um primo da Raquel usava uma camisa de manga branca de curta. Por incrível que pareça as costas eram negras tantas as moscas que nela estavam pousadas. Explicaram-me depois que os tradicionais chapéus usados no campo (e também nas cidades) de aba larga, tipo cauboi tinham pendurados rolhas de cortiça para com o movimento da cabeça afastar as moscas.

Por mim sentia-me quase um palhaço ao andar n rua e a agitar constantemente os braços e as mãos perante os olhares profundamente admirados dos restantes cidadãos habituados às moscas. Mas não foi a tais insectos a que aqui vim, mas sim â fauna muito especial da Austrália. Num passeio que fizemos ao Zoológico tive a oportunidade de ver espécies características do continente australiano.

Diversos tipos de cangurus, de cores e tamanhos diferentes, coalas, emas, tudo integrado um zonas tão próximas dos respectivos habitats quanto possível. É forçoso que diga que nesse contexto a Austrália é um continente que ao mesmo tempo é um país e pode orgulhar-se do tratamento ambiental – pelo menos na década de oitenta que foi quando ali estive. 

Também fomos a Sidney mas isso é outra estória que em devido tempo – se tiver pachorra e sobretudo saúde tenciono abordar – porque hoje fico-me por aqui dedicando as últimas linhas a um animal estranho que é o ornitorrinco. Observei-o e procurei depois documentar-me sobre ele, Uma vez mais recorri à Wikipédia. Aqui fica o essencial do que encontrei.

“O ornitorrinco (nome científico: Ornithorhynchus anatinus, do grego: ornitho, ave + rhynchus, bico; e do latim: anati, pato + inus, semelhante a: "com bico de ave, semelhante a pato") é um mamífero semiaquático natural da Austrália e Tasmânia. É o único representante vivo da família Ornithorhynchidae, e a única espécie do gênero Ornithorhynchus. Juntamente com as equidnas, formam o grupo dos monotremados, os únicos mamíferos ovíparos existentes. A espécie é monotípica, ou seja, não tem subespécies ou variedades reconhecidas.

O ornitorrinco possui hábito crepuscular e/ou noturno. Preferencialmente carnívoro, a sua dieta baseia-se em crustáceos de água doceinsetos e vermes. Possui diversas adaptações para a vida em rios e lagoas, entre elas as membranas interdigitais, mais proeminentes nas patas dianteiras. É um animal ovíparo, cuja fêmea põe cerca de dois ovos, que incuba por aproximadamente dez dias num ninho especialmente construído. Os monotremados recém-eclodidos apresentam um dente similar ao das aves (um carúnculo), utilizado na abertura da casca; os adultos não têm dentes. A fêmea não possui mamas, e o leite é diretamente lambido dos poros e sulcos abdominais. Os machos têm esporões venenosos nas patas, que são utilizados principalmente para defesa territorial e contra predadores. Possui uma cauda similar à de um castor.”

E por aqui me fico por hoje. Palavra que não trouxe da Austrália nenhum ornitorrinco. Nem a Raquel o conseguiria fazer mesmo com um oficial de fronteira simpático…

 

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25.3.23

Grande Angular - O regresso da extrema-direita

Por António Barreto

Os factos abundam, as evidências sobram: em Portugal, como em quase toda a Europa, aquilo que vulgarmente se designa por extrema-direita está em crescendo. Na França, na Itália, em Espanha, em vários países nórdicos, na Alemanha, na Áustria, assim como, mais longe, nos Estados Unidos ou no Brasil, os resultados eleitorais, as sondagens e múltiplas manifestações nas ruas e na sociedade dão sinais claros dessa ascensão. Na Rússia, atingiu-se mesmo o cume.  Em Portugal, com os votos no Chega, também temos essa evidência.

 

O que se chama vulgarmente, mas de modo inapropriado, extrema-direita, inclui coisas diferentes. Fica bem às esquerdas abusar do termo, mas sabe-se que não é conceito rigoroso. Seria preferível usar outro termo mais verdadeiro: a direita. Nesta noção mais vasta, cabe tudo: a direita pode ser democrática, nacionalista, liberal, populista, radical, cosmopolita, europeia, integrista, antidemocrática e extrema, entre outras.

 

Vista assim a realidade, é verdade que a direita, em Portugal e na Europa, está de regresso. Se vai vencer, se obtém ganhos importantes e se veio para ficar, não sabemos. Mas uma coisa é certa: no seu conjunto, está em aumento. Usa-se muito a designação de extrema-direita porque é a que convém aos seus adversários. Mas a maior parte da direita não cabe nesse termo. O que definiria a extrema-direita não são apenas valores como o sentimento religioso, a nação e a família, comuns a muitas direitas, mas sim o ultranacionalismo, a solução não democrática para o regime e o governo, a desigualdade social e étnica e a crença na superioridade racial. Outras crenças estão-lhe associadas, como sejam a disciplina e a obediência nas relações de trabalho, a intangibilidade da propriedade, a pena de morte e a prisão perpétua. E não lhe faltam laivos de racismo e xenofobia.

 

É fácil verificar que nem tudo é preto e branco. Na verdade, inúmeros valores e crenças podem ser partilhados com as esquerdas, extremas ou não. O nacionalismo pode existir à esquerda. As direitas podem desrespeitar a propriedade privada. Sentimentos antieuropeus e antiamericanos encontram-se tanto entre certas direitas como entre algumas esquerdas. Tal como o racismo que se pode encontrar ora à esquerda, ora à direita. Valores relativos à família, à religião, à pátria, à nação, à caridade e ao papel das elites, por exemplo, podem encontrar-se em todos os lados, mas é provável que seja na direita que têm mais significado.

 

Nas últimas décadas, a política ocidental, europeia e portuguesa tem sido dominada ou marcada pelos valores da esquerda e da direita democráticas, do centro-esquerda e do centro-direita. Juntas ou separadas, foram estas forças políticas que orientaram a Europa e a maior parte dos países europeus. Esse período parece acabar. A direita é cada vez mais direita. A esquerda cada vez mais esquerda. Os dois lados falam-se menos, entendem-se pouco. Mesmo se em certos momentos ou diante de alguns casos (a Ucrânia e a Rússia, por exemplo) o entendimento parece fácil, a verdade é que está em curso um processo de bipolarização e de afastamento entre esquerda e direita. O que significa também alguma radicalização.

 

É neste quadro, que a esquerda protesta todos os dias contra a extrema-direita e o regresso do fascismo. Nos partidos de centro, reclama-se contra a extrema-direita e a direita radical. Mas nos meios de esquerda, a linguagem é mais ácida. Ouvem-se os “Acudam que aí vem o fascismo”! Não são raros os apelos a legislação e a políticas de censura do que chamam “discursos de ódio”. Todos os dias sobejam as acusações contra as direitas que seriam totalitárias, racistas, xenófobas, demagógicas, reaccionárias e demagógicas. Não são raras as tentativas de censura de partidos, pessoas, publicações e iniciativas da direita, sempre identificadas com a extrema-direita antidemocrática. Grande parte desta retórica é idiota. É simplesmente inútil reclamar contra a extrema-direita e nada fazer para evitar que ela se desenvolva.

 

Berrar contra a extrema-direita é muito interessante. Mas absolutamente errado e ineficaz. É subterfúgio ou artimanha para evitar um real exame de consciência. Na verdade, as razões que fazem o êxito da extrema-direita são os erros da democracia, as deficiências dos democratas, os falhanços das esquerdas e a incompetência do centro.

 

As extremas-direitas nascem nas filas de espera dos hospitais, nos bairros segregados e nos edifícios degradados. As extremas-direitas nascem à entrada dos tribunais que não julgam os ricos e os poderosos, surgem à saída das escolas onde manuais pretendem impor programas politicamente correctos e germinam nos aeroportos onde se cruzam emigrantes portugueses de partida e imigrantes estrangeiros de chegada. As extremas-direitas alimentam-se nas Forças Aramadas sem equipamento nem autoridade, nas barcaças dos traficantes de mão-de-obra e nos conflitos raciais. As extremas-direitas medram nos bairros onde se faz tráfico de endereços falsos, nas residências recheadas de clandestinos, nas reuniões onde se vendem ao desbarato empresas nacionais a grupos predadores e nos bairros metropolitanos onde os preços da habitação atingiram valores insuportáveis. As extremas direitas nascem onde se cultiva o nepotismo familiar e o favoritismo partidário. As extremas-direitas desenvolvem-se neste ambiente de crise larvar, de desordem institucional e de incompetência a que se assiste presentemente. 

 

A extrema-direita não tem soluções, nem remédios. A extrema-direita nacionalista não consegue contrariar estas evoluções. Nunca conseguiu. E o que fez foi com força, violência, ditadura e sem liberdades, acrescentando crise à crise. O partido Chega é particularmente interessante. A sua ascensão surpreende toda a gente, a começar pelos seus próprios simpatizantes e dirigentes. Populista, hesita sempre entre a democracia e a ditadura. Ora defende os processos democráticos e se integra na respectiva liturgia, ora resvala para áreas de nenhuma tradição democrática. Simpatiza com o racismo e a xenofobia, incensa a autoridade, cultiva a castração química e a pena de prisão perpétua, mas respeita as regras parlamentares e as normas constitucionais (de que quer tirar partido, mas que diz respeitar). O Chega, pelo que se sabe e vê, não é antidoto para a desordem e o caos, não é remédio para os evidentes problemas sociais e económicas, não é solução para a crise que temos diante de nós. Mas o Chega é produto dessa crise. É uma manifestação da crise. É o seu resultado.

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Público, 25.3.2023

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23.3.23

No "Correio de Lagos" de Fev 23

 

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22.3.23

Um remate fenomenal - *Sporting eliminou o Arsenal em Londres

Por Antunes Ferreira

Sentado no meu sofá preparei-me para uma verdadeira “degola de inocentes” porque no habitual derrotismo português o meu sportinguismo estava pelas ruas da amargura depois do empate de 2-2 no estádio de Alvalade frente ao Arsenal – o líder da lPremier League inglesa, considerada a melhor do Mundo.

Como não posso beber o meu uísque preferido, o Bushmills – nem qualquer outro por via dos medicamentos que tomo quotidianamente, muni-me de um ice. Tea sem açúcar, estendi as pernas e só não me benzi pois como costumo dizer e escrever fui católico, mas curei-me. Os dados estavam lançados e veríamos o que “aquilo” ia dar. Felicidade – nem pensar.

O jogo começou com o Arsenal – aliás como lhe competia – a tentar resolver a partida tão depressa quanto possível, mas pelo que estava a ver, o meu Sporting estava no relvado do Emirates Stadium decidido a vender cara a possível. E previsível derrota. Os comandados de Ruben Amorim traziam bem estudada a tática para dificultar ao máximo os gunners (para quem não saiba é o nome no jargão futebolístico dado aos jogadores arsenalistas).

Mas – há sempre uma miserável adversativa para dar cabo da ilusão que se apossara do assistente cada vez mais admirado da prestação dos leões – eis que ao minuto 19 um tal Granit Xhaka, um suíço de má memória para as equipas lusitanas arrancou um remate indefensável em recarga com a baliza aberta depois de Adán ter rechaçado um primeiro remate. Estamos feitos pensei para com os meus botões. O resultado “agregated” entre Lisboa e Londres era 3-2.

O futebolista comemorou o tento com um gesto de escárnio agitando os dedos da mão direita apoiados no nariz como que gozando antecipadamente com os lusos irremediavelmente eliminados. E, na verdade tudo indicava que assim iria acontecer. O Arsenal estava na mó de cima e o Sporting parecia muito abalado. Mas não era bem assim. Os verde-e-brancos não atiraram com a toalha ao chão.

O intervalo chegou e eu mudei de canal para ver um pouco de policial e desanuviar. No fundo, não me restava uma esperança fundada, mas às vezes, enquanto o diabo esfrega um olho… Regresso à transmissão da partida e noto – ou penso notar – que os jogadores leoninos vêm com um ânimo de antes quebrar que torcer. Boa, penso, atitude não lhes falta – o que lhes falta são golos…

Batendo-se com denodo e pundonor os leões não davam mostras de inferioridade perante os líderes do campeonato inglês. E de repente, o espanto: do meio-campo, aproveitando um ressalto da bola feito por Paulinho, Pedro Gonçalves entrou para a história do futebol português e quiçá para o europeu. Levantou a cabeça e percebeu que o guarda-redes do Arsenal, Aaron Ramsdale, estava adiantado em relação à baliza e aplicou um remate inacreditável que resultou num golo fantástico! Fenomenal! Estava feito o empate, Da partida e da eliminatória. Eu nem queria acreditar. Mas era mesmo assim.

Depois foi o arrastar dos noventa minutos mais uns quatro de ajuste e o resultado não se alterava. Eu sofria, nunca tendo pensado anteriormente que tal me aconteceria. Recorreu-se então ao prolongamento de mais trinta minutos e ninguém conseguia acertar nas balizas. Só restava a lotaria dos penaltis.

Cinco para cada lado como estipula a norma. Os quatro primeiros quer do lado do Arsenal – por sorteio o primeiro a rematar – quer do Sporting resultaram em golos. Porém ao quinto, Gabriel Martinelli atirou por forma a permitir a defesa de Adán! Que, de resto, tinha feito um jogo extraordinário defendendo tudo o que era possível e até o “impossível”… Faltava o quinto do Sporting. Eu já estava de pé quando Nuno Santos arrancou para a bola e com um chuto certeiro eliminou o Arsenal no Emirates Stadium! Hurra!  Ultra!! Como escreveu o “Mais futebol” há mais de vinte anos que os ingleses não ganham um troféu europeu.

Esta crónica foge ao habitual, mas o meu sportinguismo justifica a alteração. Pelo menos do meu ponto de vista, No momento em que escrevo este texto já se sabe que nas meias finais o Sporting irá defrontar a Juventus. Um novo desafio, um outro obstáculo que terá de ser ultrapassado se os leões quiserem chegar à final e – quem sabe, no desporto-rei tudo é possível? – ganhar a competição europeia.

Mas aqui entra um factor que não pode ser ignorado: as previsões. Ninguém – nem mesmo a Pitonisa de Delfos – se atreveria a antever o resultado registado no Emirates Stadium. As apostas iam todas no sentido da vitória do clube treinado por Mikel Arteta. Por isso, depois do empate em Alvalade (2-2), tudo se inclinava para um resultado na segunda mão que ditasse o afastamento dos lisboetas.

Ficou célebre nos anais do futebol a frase do jogador João Pinto do Futebol Clube do Porto quando lhe pediram para fazer uma previsão duma determinada partida. “Previsões... só no fim do jogo…”

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18.3.23

Grande Angular - Pode acabar mal

Por António Barreto

Não é provável. Mas é possível. Isto pode acabar mal. O que é “isto”? O regime democrático, as liberdades públicas, a paz social e um razoável desenvolvimento. Mas sobretudo a democracia e a liberdade.

 

Poderá mesmo acabar mal? Não será demasiado pessimismo? Mais uma vez Cassandra? Ou os habituais Profetas da Desgraça?

 

É mesmo o caso. Pode acabar mal. Ainda há pouco, havia trunfos inesquecíveis. Há ou havia dinheiro e capital disponível. Não era português, nem privado. Era europeu. Mas havia. E era capital. Havia paz social. Nas ruas e nas empresas vivia-se um relativo conforto. Sem fortuna, nem exaltação. Mas alguma serenidade. O desemprego era baixo. Ou antes, não era alto. Tempos houve em que 6% era muito. Agora, já parece ser aceitável. O parlamento gozava de maioria absoluta, um dos mais formidáveis instrumentos de governo, um trunfo raro na história da democracia portuguesa. Era claro e indiscutível. O trunfo continua lá. Mas as dissensões dentro do partido do governo revelam tempestades para amanhã. E a desordem nos espíritos é má conselheira. Entretanto, da rua e da vida, vêm constantes rumores. Descontentes.

 

O primeiro ministro parece cansado. Não se sabe se é só isso ou se é incerteza quanto ao que há para fazer. Ou vontade de ir embora. A sucessão de demissões deixou má impressão no país. Fica-se com a sensação de que os governantes não sabem que fazer, não têm competência ou não se interessam. A história da TAP, do aeroporto, dos comboios, do TGV e dos transportes públicos é reveladora desta incapacidade. As únicas coisas em que o governo parece especialista são a distribuição de subsídios e a encomenda de estudos inúteis.

 

Que aconteceu para que as escolas e os professores estejam em crise como raramente se viu? Que aconteceu para que os hospitais, as maternidades, as urgências, os médicos e os enfermeiros, para já não falar dos doentes, se encontrem neste estado? Que aconteceu para que surjam, nas áreas metropolitanas, novas barracas, mais sem abrigo e mais droga nas ruas? Que se está a passar com as políticas de população, quando a emigração continua e a imigração aumenta, com os incentivos que o governo dá ao mercado negro de trabalhadores, ao tráfico de imigrantes e ao trabalho ilegal? Que continua a passar-se com a justiça, incapaz de resolver os casos difíceis de poderosos, de afortunados e de políticos? Que se passou com o mercado da habitação que vive na desordem e revela a sua maior violência social, sem que as autoridades tenham a noção do que deve ser feito, a não ser acudir aos miseráveis?

O que se passou ou está a passar na Armada, na Madeira e relativamente ao NRP Mondego, parece ser de gravidade extrema. Poderia ser apenas um caso isolado ou um incidente episódico sem dia seguinte, mas tudo leva a crer que seja sintoma de mal-estar, de perda de confiança e de disciplina, de falha na coesão na Armada e nas Forças Armadas. Ou até de abismo entre o poder político e as Forças Armadas. Até agora, ainda não houve esclarecimento. Os órgãos de poder político esforçam-se por disfarçar. Após tantos sinais de inquietação, já seria tempo de ver o poder político preocupar-se com as Forças Armadas: não só com as questões habituais, o equipamento, a organização, os efectivos, as capacidades e os orçamentos, mas também com as questões mais importantes, o clima geral no seu interior, a relação das Forças Armadas com a sociedade e com o Estado. Era tão bom que os políticos percebessem de uma vez por todas que, sem Forças Armadas, não há democracia, nem liberdade, nem paz social!

 

A Igreja católica portuguesa, uma das mais importantes instituições nacionais, acaba de se afundar numa das suas piores crises. Por sua obra e graça! Os católicos vão ficar a perder, não se sabe por quanto tempo. Os portugueses também. A crise actual da Igreja é provavelmente a mais grave do último século. Com uma característica: não tem origem em ataques feitos a partir do exterior, da política, dos costumes e de crenças concorrentes, mas sim a partir de dentro. A Igreja, a sua hierarquia e os seus sacerdotes só se podem queixar de si próprios. A Igreja pecou por altivez e presunção. 

 

Esta crise vai ter consequências na sociedade. Crise de confiança, tanto por parte da população em geral, como do lado dos seus crentes. A dúvida e a incerteza perante a Igreja são sinais de desconfiança. Nas instituições da sociedade civil, nas instâncias do poder político, nas regras de direito e no funcionamento da Justiça. Apesar disso tudo, é difícil detectar um esforço de correcção dentro da Igreja portuguesa. Mas quase só é visível a tentativa de encobrimento, de subvalorização, de menoridade e de complacência.

 

De fora, do mundo, não chegam boas notícias. Guerra sem fim à vista. Tensão política e militar internacional. Nova crise financeira e bancária. Incerteza sanitária. Novas crises de imigração. Sérias perturbações sociais em vários países europeus. Crescimento das políticas radicais. Para tudo isto, em Portugal, era necessária uma política segura, uma democracia sólida e instituições estáveis. Além de confiança da população nos seus dirigentes. O que não parece ser o caso.

 

O Governo está a passar um mau bocado. Portugal e os portugueses também. Era bom estarmos atentos. O pior pode acontecer. Há instituições, mas são frágeis. Há recursos financeiros, mas estão a ser distribuídos e um dia acabam. Há defensores das liberdades, mas também há desconfiança e afastamento. Há partidos políticos democráticos, mas também há os que o não são e ameaçam a democracia. Há protesto político, mas o descontentamento social, sem conotação partidária, exprime-se nas ruas. Os partidos estão presentes nos meios mais agitados, mas nas escolas, nos hospitais, no Serviço Nacional de Saúde, nos transportes públicos e nos supermercados é crescente a convergência entre esquerda e direita, a ponto de se poder dizer que o protesto social é pouco partidário. O regime e o sistema de governo parecem estar a perder talento, competência e capacidade para tratar das questões de fundo e das crises presentes.

 

Há um mau ambiente social evidente. Muito mais perigoso do que a estridência política e a berraria de candidatos a salvar a pátria.  O que é realmente ameaçador é o mau ambiente, essa espécie de burburinho permanente, o descontentamento da população, as dificuldades em que vivem os cidadãos. O pior pode acontecer. Não é provável. Mas pode.

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Público, 18.3.2023

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17.3.23

No "Correio de Lagos" de Fev 23


QUEM acompanha as redes sociais, sabe que quando alguém, no exercício do seu legítimo direito de opinião, nelas manifesta desagrado por alguma situação envolvendo entidades públicas ou privadas, quase de certeza que é mimoseado com comentários agressivos por parte de indivíduos que “tomam as dores” dos criticados. No entanto, de entre esses “medíocres que estão sempre satisfeitos” (como lhes chamava Lawrence Peter — o autor do famoso “Princípio”), há alguns que disfarçam o seu desagrado com a pergunta “Porque é que você vem para aqui reclamar, e não o faz no sítio certo?”— questão que não merece resposta, porque o que está por trás é o incómodo pelo facto de a situação ser exposta publicamente, em vez de ficar sepultada no “sítio certo” — que, para essa gente, seria o cesto de papéis de um qualquer burocrata de serviço. Mas se, mesmo assim, eu tivesse de responder, diria que, no decurso da minha já longa existência, também reclamei muitas vezes nos “sítios certos”, mas também aprendi que não faltam “sítios” desses em que o que existe de “certo” são a arrogância, o desleixo e a incompetência — e julgo não estar a ser muito injusto se disser que é esse o caso que hoje aqui partilho com os leitores:

 

NO ANO passado, este jornal (na secção “Buracos & Companhia”), fez eco, por duas vezes, de alertas de pessoas que denunciavam no Facebook (com abundância de imagens) a situação que aqui se documenta, tendo publicado fotos de 29 de Maio e de 7 de Novembro, pelo que os mais ingénuos esperaram que alguma coisa fosse feita no sentido de atalhar ao que ali se passava. Ingénuos, sim, pois no dia 6 de Dezembro fui até lá, mas apenas pude confirmar que tudo se mantinha — se não na mesma, ainda pior.

Tirei novas fotos, e, resolvido dessa vez a seguir o tal princípio de “reclamar para o sítio certo”, telefonei (mesmo dali) para o número indicado na placa que se vê à entrada, mas sucedeu que o engenheiro (a quem o funcionário que me atendeu quis passar a chamada) estava indisponível. Deixei então recado com o meu nome e número de telemóvel, pedindo expressamente que o colega me ligasse... e esperei. Enquanto continuava a esperar, e para tornar mais proveitosa a conversa que eu supunha vir a ter com alguém responsável, passei a escrito o que lhe pretendia dizer, e enviei, para os dois endereços electrónicos indicados na tal placa, um sucinto texto, acompanhado de fotos actuais e dos recortes do “Correio de Lagos” onde o assunto era referido.

A primeira surpresa desagradável veio de imediato, com a devolução de um dos ‘e-mails’, indicando que “não foi possível encontrar o endereço”.

A segunda surpresa talvez não tenha sido bem uma surpresa: é que decorreram mais de dois meses, está tudo na mesma (*), e ninguém se digna responder-me.

 

EMBORA todo este arrazoado possa sempre vir a servir para memória futura se um dia ali houver uma desgraça, não tenciono perder mais tempo com o assunto — encaremo-la apenas como um desabafo, uma manifestação de tristeza pela proverbial apatia da sociedade lacobrigense, mesmo perante uma situação como esta. 

 

NORMALMENTE, procuro terminar estas crónicas com uma nota ligeira, até de pretenso humor. Mas confesso que desta vez não consegui... o que julgo ser perdoável.

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(*) - À data em que escrevo (9 de Fevereiro de 2023), pude constatar que a foto que aqui fica (uma das várias que enviei para a Docapesca) está perfeitamente actualizada; infelizmente, ela não mostra tudo, pois, além da “passagem” que se vê em primeiro plano, há várias outras (mais à frente), mas onde não me aventurei a ir — o que penso que também é perdoável...

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No “Correio de Lagos” de Fevereiro de 2023

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15.3.23

Deste velho cacilheiro *Mas o Tejo é sempre novo

Por Antunes Ferreira

Andava eu pelos meus oito anitos quando o meu tio e padrinho Armando Antunes (do lado da minha mãe), primeiro-sargento da Força Aérea – então dizia-se da Aeronáutica – me inoculou com o vírus leonino o que me causou a “maleita” que continuou até hoje e irá (como costumo dizer) até ao forno crematório. A esse baptismo seguir-se-ia uns bons anos depois, o crisma cujo padrinho foi para mim o melhor presidente que nós leoninos tivemos na minha vida: João Rocha. De cor política antagónica mas isso nunca obstou que conservássemos uma óptima Amizade. Reservo-me para outra ocasião para contar a nossa comum “odisseia” sem Homero.

Basta de divagações e voltando ao meu tio e padrinho, lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, de no dia em que fiz os já citados oito anitos, além de me dar uma caixa de lápis de cor Faber Castell me te perguntado o que eu queria ser quando fosse grande. Os temas aéreos estavam na berra na família, o meu tio Jacinto Paiva Simões casado com a única irmã da minha mãe, a querida tia Lurdes era capitão aviador reformado.

Daí que a resposta fora imediata: “Quando for grande quero ser aviador!” Os meus tios Armando e Virgínia tinham aprazado com os meus pais um almoço num restaurante de Cacilhas. Por isso metemo-nos no Morris Minor HÁ-17-63 (verde-alface) que o meu pai Henrique Silva Ferreira acabara de comprar, tomámos um cacilheiro e ala que se faz tarde rumo a umas ameijoas à Bulhão Pato, qu’eu cá não era disso, por isso enquanto os casais tiravam a barriga de misérias com uns lagostins e duas santolas recheadas fiquei-me por belo bife com um ovo estrelado a cavalo e batatas fritas. No fim houve bolo com oito velas mas o que me deslumbrou (e até hoje isso acontece) foi uma estrondosa musse de chocolate!

Os ponteiros do relógio do tempo são uns maganos: não param; antes era porque não se dava corda ao instrumento; hoje é que a pilha deu o berro. Nunca mais dera por mim a pensar na viagem no cacilheiro. Mas a Raquel e eu fomos à revista no Maria Vitória e eis senão quando apareceu em cena o meu amigo Zé Viana vestido de marujo que cantou o Fado do Cacilheiro que eu sussurrei entre dentes para não incomodar a plateia:  

 

«Quando eu era rapazote
Levei comigo no bote
Uma varina atrevida
Manobrei e gostei dela
E lá me atraquei a ela
Pro resto da minha vida.

 

Às vezes numa pessoa
A idade não perdoa
Faz bater o coração
Mas tenho grande vaidade
Em viver a mocidade
Dentro desta geração.

 

Sou marinheiro
Deste velho cacilheiro
Dedicado companheiro
Pequeno berço do povo.


E navegando
A idade foi chegando
Ai… O cabelo branqueando
Mas o Tejo é sempre novo.

 

Todos moram numa rua
A que chamam sempre sua
Mas eu cá não os invejo
O meu bairro é sobre as águas
Que cantam as suas mágoas
E minha rua é o Tejo.

 

Certa noite de luar
Vinha eu a navegar
E de pé junto da proa
Eu vi ou então sonhei
Que os braços do Cristo-Rei
Estavam a abraçar Lisboa.

 

Sou marinheiro
Deste velho cacilheiro
Dedicado companheiro
Pequeno berço do povo.


E navegando
A idade foi chegando
Ai… O cabelo branqueando
Mas o Tejo é sempre novo»


No final da revista fui aos bastidores onde o Zé não queria acreditar que era eu que ali estava. O abraço que trocámos foi mais um abração. A PIDE, como sempre, andava na sua peugada. “Continuam a ser uns filhos-da-puta! Não sabem ser outra coisa! Imagina tu, Henrique, que quiseram cortar o cacilheiro porque era subversivo!” E soltou uma daquelas suas gargalhadas. Das que até se ouviam na… António Maria Cardoso! 

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11.3.23

Grande Angular - Imigrantes: As políticas (3)

Por António Barreto

No Mediterrâneo, recomeçou a estação de tráfico, refúgio e acidente. A Europa no seu todo e cada país em particular não conseguem elaborar e pôr em prática uma política de controlo do acesso e menos ainda de decência no acolhimento. A desordem, o sofrimento e a morte têm mãos livres neste mar e nas suas praias. O que a Europa faz favorece a travessia clandestina, o refúgio ilegal e o sacrifício de crianças e idosos. Os “negreiros” e os traficantes vivem das políticas europeias e das hesitações dos seus dirigentes. A generosidade e a compaixão de muitos europeus são vilmente utilizadas como estímulos ao crescimento do tráfico.

 

Sucedem-se os sinais de crise iminente. Surgem novas barracas e alojamentos miseráveis na área metropolitana de Lisboa. Aparecem novos edifícios inóspitos na margem Sul. Publicam-se notícias sobre o alojamento degradado ocupado por imigrantes e minorias. Descobrem-se cubículos com dezenas de pessoas amontoadas em beliches. É crescente a acidez nas discussões sobre questões raciais e de imigração. Novas disposições legais estabelecem o visto automático para as pessoas dos países da CPLP. Em Angola, são longas as filas de espera de cidadãos que tentam obter os vistos de residência em Portugal, agora facilmente distribuídos. Começa a correr o processo de legalização expedita de milhares de residentes ilegais. Dizem os jornais que, segundo o SEF, se espera legalizar de imediato perto de 150.000 imigrantes. E receber outros tantos nos próximos dois anos. A verificarem-se estas previsões, serão os mais elevados contingentes de imigrantes jamais chegados a Portugal. Descobrem-se novas fileiras de imigração especialmente usadas por mulheres à beira de dar à luz e outras situações a configurar emergência médica. Não se conhecem progressos nas numerosas situações de imigrantes alojados em condições precárias e malsãs junto às culturas forçadas e às agriculturas hiper-intensivas. As questões raciais e os incidentes envolvendo problemas de imigração, de minorias e de estrangeiros ocupam cada vez mais a atenção e as preocupações. 

 

A imigração, em Portugal, faz-se sem política e sem escolhas. E sem respostas às questões difíceis. Há recursos humanos, de equipamento e de capital, para abrir as portas? Há cidades e habitação decente à altura? A economia necessita desta mão-de-obra? Haverá emprego suficiente para os residentes e para os novos imigrantes? Estão preparados os serviços sociais, as escolas, os hospitais, a habitação e os transportes para estes novos fluxos de população? Algumas vez estas políticas foram sufragadas pelo eleitorado e aprovadas pelo Parlamento?

 

A habitação é quase um problema à parte. Pela sua natureza, pela dimensão, pelo custo e pela durabilidade das decisões, os problemas de habitação são uma espécie de lugar geométrico de todas as questões sociais da imigração. Por vias da habitação, definem-se bairros, prédios e ruas, numa palavra, comunidades. Em grande número de países europeus a distribuição geográfica das comunidades imigrantes tem conduzido à fixação de áreas de especialidade nacional, de concentração étnica e de segregação. As cidades europeias, tanto os seus centros históricos como as suas periferias, transformam-se em territórios próprios e exclusivos de comunidades nacionais. As grandes cidades fragmentam-se de modo ameaçador para a paz social e o convívio entre povos. A segregação aumenta a separação, o confronto e o conflito, o que agrava as dificuldades de integração social. O descontrolo das migrações e a abstenção relativamente à organização das sociedades e dos espaços são convites à marginalidade. É uma infâmia o mercado ilegal de residências, vistos, autorizações de trabalho, certificados de casamento, títulos de adopção, contratos de trabalho falsos e outras habilidades destinadas a fomentar uma imigração oportunista.

 

As novas modas e doutrinas apoiam de modo crescente as opções multiculturais. O que quer dizer que se defende que cada comunidade, nacional ou imigrante, mantenha as suas tradições, a sua cultura, os seus costumes e até as suas regras “legais”. Ora, é superior a política que recorre e aceita imigrantes, mas que opta deliberadamente pelas políticas de integração cultural, social e económica, em detrimento das políticas do multiculturalismo, de preservação do mosaico de regras e costumes, geralmente propícios à instalação de sociedades paralelas, de comunidades marginais e de estranhas formas de apartheid.

 

A integração é, em democracia, um factor de agregação e não de fragmentação, como é o multiculturalismo. Este último, aliás, levanta problemas de enorme dificuldade. Que fazer, numa sociedade que privilegia o multiculturalismo, com a aprendizagem da língua, o respeito pelas leis sobre violência física e familiar, a poligamia, as regras de saúde e higiene pública, o respeito pela individualidade da pessoa humana e a crença na inviolabilidade da vida humana? 

 

É difícil formular políticas de integração, mesmo sabendo que são essas as que melhor defendem os direitos dos imigrantes, tanto quanto os dos já residentes. É difícil porque os inimigos da coesão social consideram essas políticas racistas ou autoritárias. Mas são princípios simples. Os imigrantes não devem ter direitos diferentes, em nenhum aspecto, aos dos residentes e nacionais. A imposição de regras pelos traficantes de mão de obra deve ser recusada. Ninguém ilegal, indocumentado ou clandestino deve ser aceite, a não ser em casos excepcionais de sofrimento e perigo. A aprendizagem da língua deve ser promovida. A mera utilização de serviços de saúde por estrangeiros que assim abusam das facilidades existentes deve ser proibida. A integração vem acima de tudo.

 

O multiculturalismo acrescenta-se à política de porta aberta e de acolhimento universal. São duas tendências perniciosas. Pela segunda, um país renuncia ao seu direito e ao seu dever de organizar, programar, legalizar e cuidar dos fluxos migratórios. Mesmo que nunca seja possível, a não ser em ditadura, controlar absolutamente estes movimentos populacionais, é sempre possível aumentar o controlo, o planeamento e a previsão, a fim de melhor organizar a sociedade e os serviços públicos. Pela primeira atitude, a que defende o multiculturalismo, abre-se a porta a verdadeiros apartheids culturais, com regras e direitos próprios, verdadeiros alfobres de conflitos sociais e raciais. Sob a aparência de respeito pelas culturas e pelas identidades, o multiculturalismo é um convite à ilegalidade e à fragmentação. Nestas questões, a complacência é tão perigosa quanto a opressão.

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Público, 11.3.2023

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8.3.23

Uma estória de convento - *Uma feira, duas freiras e um homem

Por Antunes Ferreira

Como era habitual, a madre superiora encarregava as irmãs Maria da Piedade e Maria da Purificação de ir à vila no da feira para vender os produtos que o convento produzia desde doces e compotas, peças de artefacto religioso até ovos das galinhas poedeiras que cuidavam com a maior atenção e até, podia dizer-se, carinho.

Era uma fonte de receita que suplantava as ofertas das missas dominicais que o capelão, o padre Constâncio, já com os seus sessenta e muitos, rezava e que era abeta a quem nela estivesse interessado. Mas os tempos estavam difíceis e os fieis iam-se reduzindo e consequentemente os respectivos óbolos também; além disso, o tempo não perdoava e a média dos anos levava ao envelhecimento dos assistentes.

O país envelhecia, a terceira idade, as rugas, os cabelos brancos, as calvas, as bengalas, os bordões, até mesmo as muletas eram prato frequente na celebração e até havia quem viesse em cadeira de rodas empurrada por familiar mais chegado. Daí que a receita recolhida ia minguando e por isso a venda dos produtos n feira era indispensável e inquestionável. Igualmente as vocações sacerdotais sofriam uma diminuição o que levava a que os padres cada vez eram mais velhos e tinham de acorrer às diversas necessidades de várias ordens.

Regressavam da feira onde tinham banca montada graças ao auxílio do senhor Mendonça negociante de queijos e enchidos, com a bolsa recheada – o dia fora bem sucedido. Como não tinham arranjado boleia vinham a pé conversando, aliás a distância não era grande. De repente a irmã da Piedade disse em voz baixa para a outra feira se esta tinha reparado que um homem as seguia.

Na verdade, assim era. As freiras estugaram os passos mas o homem fez a mesma coisa. Aí a irmã Maria da Purificação, aproveitando uma curva do córrego, sussurrou à sua companheira: “Ali adiante há um bifurcação. Sugiro que cada uma de nós siga por uma delas. Eu levo a bolsa do dinheiro e vou pela direita que chego mis depressa ao convento.”  

E assim fizeram. Entretanto o Sol ia caindo e ao chegar ao mosteiro a irmã portadora da “massa” foi massacrada de perguntas sobre o motivo do atraso. A madre superiora estava preocupadíssima com o passar das horas e após ouvir a versão da estória pensou alertar a Guarda Republicana sobre o desaparecimento da irmã Maria da Piedade.

Já caía a noite e se preparava para fazer a chamada par a GNR  quando apareceu  freira faltosa tranquila ainda que um tanto ofegante. As perguntas fora múltiplas, todo o convento reunido em buca do que acontecera, aventando a hipótese mais negra. O canalha abusara da freira? Ele há homens capazes de tudo, o diabo anda à solta por ai, ninguém pode dizer que está seguro

A monja sossegou a assembleia das suas irmãs. E contou o que se passara. Com certeza o seu Anjo da Guarda (que não da Republicana…) a acompanhara naquele transe pois a ameaça não dera em nada. Mas que houvera ameaça, lá isso houvera. Um silêncio d cortar à faca estabeleceu-se entre as assistentes.

E foi a madre superiora que o quebrou: “Minha irmã acabe com essa estória, que Deus, nosso Senhor, sabe o que se passou, mas nós não!” E a irmã Maria da Piedade concluiu: “O homem apanhou-me, tentou ficar com o dinheiro com maus modos, mas vendo que eu não o tinha soltou uma gargalhada bestial e disse-me que nunca «comera» uma freira e estava na altura de o fazer!”

 E então? “Mandou-me arregaçar o hábito enquanto baixava as calças. Foi então que desatei a correr e cheguei aqui ao convento sã e salva! “ Um murmúrio de alivio  fez-se sentir enquanto a freira terminava: “Uma freira com o hábito  arregaçado corre muito mais do que um bandido com as calças em baixo!”

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6.3.23

Grande Angular - Imigrantes: As escolhas (2)

Por António Barreto

Por egoísmo e necessidade, Portugal acolhe todos os anos uns milhares de imigrantes de que precisa. No quadro da quebra de natalidade verificada nas últimas décadas, os motivos são muitos. Os mais importantes estão ligados ao trabalho e à economia. Sobressaem as necessidades de mão-de-obra. Há falta de trabalhadores em muitos sectores. Os residentes emigram ou fogem de certos trabalhos. Os imigrantes ajudam à produção nacional e à exportação de bens e serviços, assim como ao aumento do consumo. Os legais contribuem para os rendimentos da Segurança Social e para as receitas fiscais. Por todas estas razões, Portugal necessita de imigrantes.

 

Não é só por necessidade que Portugal acolhe imigrantes. Há também motivos relacionados com os valores dominantes em cada tempo e sociedade, como sejam a humanidade e a solidariedade. Ou obrigações ligadas a compromissos e ao espírito prevalecente em comunidades internacionais. Sem falar na humanização destas políticas, como se pode verificar quando há imigrantes que se justificam pela reunião famílias. Cada país tem refugiados em múltiplas situações que ilustram estes motivos para as migrações e que estão por vezes bem longe do interesse e da necessidade.

 

Há, no mundo, milhões de candidatos à emigração para países mais ricos, desenvolvidos, abertos e com necessidades de mão-de-obra. Conforme os quadrantes geográficos e as relações sociais, políticas e económicas, os candidatos à emigração dirigem-se para os países da sua escolha. Ou que se enquadrem numa tradição social, política e cultural. Ou simplesmente países que oferecem oportunidades. Há também milhões que tentam fugir por desespero e miséria, para sobreviver. Dirigem-se para qualquer país possível. Muitos são perseguidos e procuram abrigo. A grande maioria dirige-se para os países europeus e norte-americanos. Há também, em números consideráveis, pessoas que se deslocam para qualquer sítio, de preferência países vizinhos, para fugir às guerras. Vários países africanos estão nestas circunstâncias. Actualmente, também da Ucrânia partiram milhões de deslocados.

 

As políticas dos países de acolhimento variam. Uns têm controlos apertados e exigem contratos de trabalho, períodos experimentais, actividades sazonais antes de empregos permanentes e autorizações temporárias antes das definitivas. Há países que tentam administrar as migrações segundo as necessidades da economia, as oportunidades de trabalho, a existência de familiares já estabelecidos e as especialidades profissionais. Há ainda os que tentam definir quotas por nacionalidade, isto é, só aceitar originários de certos países. Há finalmente países que abrem as portas a imigrantes sem controlo ou quase sem condições.

 

Importa notar que, entre os países que recebem imigrantes e refugiados, contam-se só democracias. As ditaduras e regimes equiparados não aceitam imigrantes nem refugiados. Não há imigrantes na China, na Rússia, na Bielorrússia, na Venezuela ou na Coreia do Norte. Como não havia na União Soviética ou nos países comunistas, nem nos países fascistas. Das ditaduras foge-se, para elas não se emigra. Os êxodos de massas em situação de guerra podem, como foi várias vezes o caso em África, orientar-se para países próximos da ditadura, mas trata-se de emergências vitais.

 

Em Portugal, como em quase todos os países da Europa e da América do Norte, discutem-se as políticas de acolhimento. Os problemas são muito graves. Já se percebeu que esta questão está em agravamento e vai transformar-se num dos mais sérios problemas da Europa. Ainda por cima, estamos a tratar de questão que exige aproximação global, isto é, europeia, mas também nacional. É provável que nunca se consiga pôr em prática uma política europeia. Cada povo tem a sua história, a sua cultura e os seus amigos. Por mais que se avance na integração europeia, a diversidade marcará as escolhas e as políticas. E quando esta não é respeitada, as pulsões nacionalistas, democráticas ou não, surgem imediatamente.

 

A política dita de porta aberta, de acolhimento de quem vem, de tolerância com a ilegalidade, é um estímulo às piores condições de imigração. Por exemplo, às redes de tráfico de trabalhadores, uma espécie de negreiros, que, dos confins da Ásia ao Próximo Oriente e do Mediterrâneo a África, organizam os fluxos, incluindo salva-vidas deficientes, mudanças de barcos e de aviões, alternância de autocarros e outros meios de transporte. Esta gente deveria ser perseguida. Os preços de uma passagem para qualquer país da Europa podem oscilar entre três e trinta mil euros. Os acidentes, os naufrágios e as mortes acidentais fazem parte da pressão exercida sobre os países de acolhimento para que, por motivos humanitários, recebam toda a gente, especialmente mulheres, crianças, idosos e parturientes. Pior ainda: os acidentes estimulam o negócio.

 

Quaisquer que sejam os argumentos, das necessidades de mão-de-obra à humanidade, uma coisa é certa: as práticas seguidas actualmente por Portugal são incentivos à clandestinidade, ao tráfico e ao abuso dos imigrantes pobres, sobretudo dos ilegais. Por isso, as melhores políticas de acolhimento são aquelas que definem os princípios orientadores de controlo de movimentos e de legalidade de contratos de trabalho e de autorizações de residência. 

 

Além disso, é natural que um país queira privilegiar umas tradições e umas culturas, isto é, umas nacionalidades, em detrimento de outras. Também parece natural que um país, o seu povo e os seus representantes queiram definir preferências profissionais, isto é, imigrantes que venham preencher lacunas, abrir oportunidades e desenvolver certas actividades. 

 

As políticas de imigração, em Portugal e noutros países europeus, não são sufragadas pelo eleitorado. E deveriam ser. Quase não há referendos sobre a imigração, nem aliás é certo que esse seja o melhor método de decidir. O parlamento nunca foi chamado a aprovar uma política consistente e pormenorizada de imigração. Nos programas eleitorais, os partidos ficam-se por proclamações vistosas sem medidas concretas. Em geral, os partidos têm medo de se comprometer com as migrações. Preferem agir, no governo, por medidas administrativas. Ou deixar correr a vida e acudir quando há problemas.

 

Ora, uma coisa é segura. É absolutamente legítimo que um povo queira decidir o que é melhor para si, sobretudo no que toca à população. A melhor maneira de o fazer é evidentemente a de escolher as vias e os compromissos que lhes são apresentados. Desde que o sejam!

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Público, 4.3.2023 

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