30.3.18

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AVES DO MEU BANDO

Por Joaquim Letria
Não sei se é do avançar dos anos mas, ultimamente, dou comigo a recordar figuras, encontros e outras circunstâncias que andam desarrumadas pela minha memória. Em alguns casos, rebobino perfeitamente as recordações, viajando por elas com total nitidez; noutros fico-me por uma vaga ideia, tipo pintura de Noronha da Costa, mas no conjunto distraio-me tanto como se tivesse ido a uma matinée de cinema com filmes a preto e branco. Reparo que a morte de amigos e conhecidos íntimos, como é hoje o caso, me ajuda a escolher quem vou recordar. E ultimamente tem sido uma razia de tal ordem que parece andar alguém de caçadeira em punho a atirar às aves do meu bando.
Conheci José Fernandes Fafe era eu ainda um adolescente mal amanhado, prestes a converter-me num homenzinho a caminho da vida. Foi o meu primo Jorge Vieira, o escultor, quem me apresentou aquele senhor de ar e voz graves, sorriso fugaz e olhar arguto que me dedicou a atenção devida a um rapazinho como eu, então, era.
José Fernandes Fafe e Jorge Vieira eram vizinhos em vivendas contíguas e amplas de Cascais de há 50 anos. Percebi pelas meias palavras do meu primo e pelo empenho com que ele queria que eu o conhecesse, que José Fernandes Fafe era um homem notável e, para mais, um democrata, o que na ditadura não era muito frequente encontrar-se em encontros ocasionais e fortuitos como estes, entre nós três, aconteciam ser.
Estava eu então muito longe de imaginar que as nossas vidas se viriam a cruzar em encontros de amizade e reuniões profissionais. Impossível, ainda mais, pensar que mais tarde o visitaria nas suas residências de embaixador de Portugal respectivamente em Cuba, Cabo Verde e no México, e que nos desencontraríamos, tendo eu perdido a oportunidade de estar com ele também  em Buenos Aires.
Reencontrei o Dr. José Fernandes Fafe nos atavios de produzirmos, com qualidade, parte do “Diário de Lisboa”, vespertino  respeitado e independente que um e outro nos empenhávamos em fazer, cada um na sua função, todos os dias, semana após semana. Ele como mentor e director do suplemento semanal “Mesa Redonda”, 8 a 12 páginas de ensaios, sociologia e política que eu acabava a organizar e a paginar, no âmbito de coordenador dos suplementos do jornal. Estreitámos aí e assim o nosso conhecimento mútuo e, porventura, a nossa amizade.
Nos tempos das vivendas em Cascais, eu era um apanha-bolas e ele, para mim, o maior craque do mundo. Era assim que o via, eu a tentar vir a ser jornalista, escrevinhando à condição pequenas críticas a jogos de juniores e da terceira divisão para as páginas pares  do “Mundo Desportivo” e ele ensaísta, poeta e romancista, articulista e escritor regular dessas pedras angulares da resistência séria e democrática  que eram as revistas “Vértice” e “Seara Nova”. Por aqui se pode imaginar o que significou para mim colaborar com o Dr. José Fernandes Fafe.
A vida é cheia de idas e voltas, por isso fiquei muito contente quando após a sua função diplomática reencontro o embaixador Fernandes Fafe no Instituto Damião de Góis, organismo muito próximo da Presidência da República de Ramalho Eanes, que tinha grande consideração pelo antigo diplomata político que viria ainda a desempenhar funções de Embaixador itinerante para os países africanos.
Poder-se-á medir a esporádica relação que mantivemos ao largo da vida se aqui citar um discreto, tranquilo, simples e gostoso almoço no Alentejo promovido pelo seu filho José Paulo Fafe, ex-jornalista e actual marketeiro político na América Latina e África, com quem mantenho até hoje uma velha amizade.
Porém, se quisermos aquilatar a humanidade e as preocupações deste homem, saído da Universidade de Coimbra, autor de cerca de 20 livros, considerado o melhor biógrafo de Fidel Castro, com quem se deu, ou autor duma interessante biografia de Che Guevara, publicada na Mondadori, de Itália, sob pseudónimo, permitam-me que evoque um almoço, antes da sua partida para o México, para o qual convocou João Soares Louro e a mim próprio, ambos inquietos quanto ao objectivo. Descobriríamos após o café:
“Eu juntei-os para pedir a ambos que olhem pelo meu filho José Paulo. Eu sei que ele vos ouvirá e eu não vou cá estar”.
Estive na capela mortuária da Igreja de S. João de Deus a despedir-me do embaixador José Fernandes Fafe. Ali assisti à comovente despedida de seus netos e acompanhei a dor de seus filhos, em particular a de José Paulo Fafe. E num daqueles momentos em que ficamos poucos, por ser a altura de aproveitarmos e irmos “comer qualquer coisa”, pareceu-me que o embaixador, no seu leito de morte e com o seu humor peculiar, me sorriu brevemente para me dizer:
 “De vocês todos já eu me livrei ”.
Publicado no Minho Digital

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29.3.18

O ruído que abafa o furacão

Por C. Barroco Esperança
Enquanto a Sr.ª May, desorientada, afunda o Reino Unido e arrasta a União Europeia para um futuro incerto, acusa Putin de mandar envenenar o ex-espião russo que mudou de patrão, Sergei Skripal, e a filha, e comunica a suspensão de contactos bilaterais com Moscovo, expulsando 23 diplomatas.
Entretanto, Donald Trump nomeou John Bolton conselheiro de Segurança Nacional, um norte-americano que defende ataques nucleares preventivos à Coreia do Norte e ao Irão, e logo apontou Vladimir Putin como o responsável direto pelo ataque contra o ex-espião russo, em solo britânico.

O Reino Unido, sem apresentar provas, com o inquietante precedente das armas químicas de Saddam, conseguiu facilmente apoio dos EUA, Canadá e da maioria dos 28 membros da União Europeia, com a honrosa prudência da ONU e, entre poucos, de Portugal, para retaliar a Rússia cujos diplomatas passaram a ser considerados espiões.
Quando a comunicação social mundial silencia o genocídio que uma coligação liderada pela Arábia Saudita, a mais rica teocracia do Eixo do Bem, leva a efeito no Iémen, não surpreende que seja notícia a alegada invasão da Arábia Saudita por mísseis iemenitas que só não atingem o alvo graças às compras avultadas de armamento aos EUA.
Se o Reino Unido não explicar como pôde Putin usar contra o ex-espião russo o veneno que o vitimou, estamos perante uma grotesca e colossal encenação, que augura o pior dos cenários e a mais dramática das expectativas em relação à paz.
É lícito pensar que o ruído imenso à volta da Rússia e o seu isolamento é uma forma de disfarçar a derrota anglo-americana na Síria e o pretexto para a escalada belicista, sem precedentes, a começar no Irão e/ou na Coreia do Norte.

Há um furacão apocalíptico em marcha e prevê-se que a verdade seja a primeira vítima do ruído que ressoa de um só lado. Só surpreende a unanimidade com que, até prova em contrário, um monstruoso embuste consegue a unanimidade dos órgãos de informação, sem necessidade de provas.
É urgente indagar o papel do Faceboock na eleição de Trump, no referendo catalão e no Brexit, e saber como a nova direita populista confiscou o arsenal da ciberguerra através da Cambridge Analytica.

A direita populista, em geral, e a estado-unidense, em particular, são as beneficiárias da conjura montada.

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25.3.18

Sem emenda - A prova de fogo

Por António Barreto
Os incêndios de floresta de 2017, dos piores da história de Portugal, dos mais mortais da Europa e do mundo no último século, deixaram feridas não cicatrizadas nas famílias, nas autarquias, nos campos e na natureza. Assim como na segurança colectiva e na confiança dos cidadãos. Agora, há relatórios de investigações, ao que parece competentes e independentes. O que, mesmo havendo polémica, como em tudo, já é um progresso. A conclusão essencial é devastadora: confirma-se, se é que era necessário, o falhanço dos sistemas de prevenção, de protecção e de socorro. Por outras palavras, a segurança foi muito deficiente. Mas aplaude-se o pagamento de indemnizações, o que, além de humano, é o reconhecimento de responsabilidades.
Há também relatórios sobre o desaparecimento de armas e munições das Forças Armadas e das Polícias. Relatórios mais discretos e não inteiramente públicos, não se percebe porquê. A conclusão primordial, a partir do que se sabe, comprova o que era evidente: fracassaram os sistemas de vigilância e de segurança.
O problema da segurança colectiva é muito grave. Dos mais sérios que se conhece. Mas, entre nós e nos tempos que correm, questão tão séria quanto a da segurança é certamente a da Justiça e do Estado de direito, o que implica apuramento de responsabilidades e capacidade de correcção de erros e negligências. Eis por que os próximos meses serão absolutamente decisivos. Serão a prova dos nove e a prova real para a nossa justiça. Poderemos verificar se tudo será diluído pelo sistema político e pela ineficiência. Ou se, pelo contrário, por uma vez, a justiça vai até ao fim.
Obcecados com as questões sociais (os de esquerda) ou económicas (os de direita), os governos portugueses estão a deixar instalar-se uma deriva de impunidade e de ineficiência da justiça. O assunto é sério: é a erosão do Estado de direito.
A segurança colectiva e a protecção civil constituem apenas um capítulo da fragilidade crescente do Estado. A privatização e a reprivatização de empresas e grupos, feitas em condições de poucas garantias, deixaram o país mais fraco. Até porque, em certos casos, algumas privatizações tiveram como destinatários Estados estrangeiros, o que é irónico e arriscado. Um Estado fraco e endividado vende de qualquer maneira.
Coladas às operações de privatização, as desventuras da banca portuguesa aumentaram a fragilidade do país. Constituíram a mais drástica destruição de valor levada a cabo na história recente, só comparável aos efeitos económicos da revolução de 1975 e às consequências económicas da descolonização. Além desse estranho fenómeno que é o da destruição de valor, assistimos, nas sucessivas crises bancárias, à apropriação de recursos e ao desvio de capitais, mais próprios do roubo do que da falência. Como muitos desses bens e recursos eram de milhares de pessoas, vieram os contribuintes compensar as vítimas dos assaltos. É uma nova figura de culto em Portugal: os custos públicos dos roubos privados.
Com a destruição de valor e o roubo de capitais, verificou-se ainda, sob a capa da internacionalização, um autêntico massacre de empresas que tinham conseguido uma posição interessante em áreas de inovação e desenvolvimento, como no caso dos cimentos, das telecomunicações e da energia. Esta reconversão de serviços públicos e de grupos nacionais em redes internacionais foi levada a cabo por gestores sem escrúpulos. Nada do que precede se fez sem intervenção directa do Estado, sem a colaboração de governos e sem a cumplicidade de governantes.
Mais uma vez: a Justiça em causa. Há, na verdade, dos incêndios às armas, entre o BES e o BPN, entre a PT e a EDP, entre Angola e China, entre o Brasil e a Venezuela e entre os vários grandes processos em curso, verdadeiras “causes célèbres”, um fio condutor: é o da ineficiência da Justiça.
Tudo está em saber se a democracia e o Estado de direito podem sobreviver à ausência da Justiça.
DN, 25 de Março de 2018

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Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Residentes no Teatro Nacional D. Maria, em Lisboa – Há uns anos que parte do Rossio, ruas adjacentes e Largo de São Domingos se transformaram em ponto de encontro de africanos, muçulmanos, asiáticos e, por vezes, uns europeus. Nos acessos ao Teatro, há sempre uns velhotes a descansar ao sol, a jogar às cartas, a conversar, a intrigar, a trocar notícias de outros continentes. Ali perto, fica A Ginjinha, frequentada mais por turistas e lisboetas. Lojas de roupa “étnica”, produtos longínquos e géneros exóticos dão cor e vida. Todo aquele local encontra-se hoje em mudança. Há vários riscos para a evolução futura daquele bairro e daquelas paragens. Transformar-se em bairro degradado e marginal é uma hipótese. Outra é a da operação de limpeza étnica. Qualquer delas é odiosa. Manter a doçura cosmopolita e cuidar da qualidade urbana, preservar a humanidade, tratar da beleza do sítio e garantir a limpeza e a segurança… Estas seriam as boas hipóteses. Sempre as mais difíceis.
DN, 25 de Março de 2018

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23.3.18

JUNTAR BENITE E SARAMAGO

Por Joaquim Letria
Conheci  “A Historia do Cerco de Lisboa” quando esta  peça foi levada à cena pelo Teatro de Almada, já com Saramago muito debilitado. Eu conhecia muito bem o autor e o encenador, respectivamente José Saramago e Joaquim Benite. 
Ambos haviam trabalhado no “Diário de Lisboa”, onde eu próprio começara a minha vida profissional de jornalista e os nossos passos cruzaram-se também desde ali e por muito tempo em que os três partilhámos não só essa profissão mas também as afinidades políticas e culturais. 
É interessante recordar hoje como nos conhecemos então, de modo muito diferente. Fico a dever a evocação desta recordação ao Joaquim Benite e a uma recente homenagem que lhe prestaram.
Eu e o Joaquim Benite conhecemo-nos quando ambos tínhamos dez anos de idade. Não foi de longe nem de perto, ou de “olá, estás bom?”. Foi uma relação muito próxima e duradoura, com laços indestrutíveis, pelas nossas vidas fora.
O Joaquim era o 20, eu era o 21. Os nomes emparelhavam-nos e os números confirmavam no que parecia um cuidado de secretaria. Joaquim Benite (JB) número 20, Joaquim Letria (JL) número  21, na turma B do 1º ano do Liceu Passos Manuel, decorria então o ano de 1953.
Depois do Liceu, onde o Joaquim bebia as aulas de certos professores fixando os seus olhos brilhantes e irrequietos naqueles em que mais confiava e maior interesse lhe despertavam, sujeitando-os, sempre que possível, a um comentário, uma pergunta, um pedido de esclarecimento.
 Lucília Estanco Louro, que viria a ser nossa professora de História, encantava-nos e Benite mostrava-se fascinado pelo seu espírito e conhecimentos, assim como se rendia ao encanto granítico de Soledad Fernandes, professora de Ciências Naturais, mulher do Norte que quando errávamos uma resposta ou fazíamos perguntas disparatadas disparava sobre nós um “oh meu menino, ide marrar com um combóio”, frase que em vez de nos ofender, nos despertava um regozijo  indisfarçável, abertamente assumido no riso contido de 40 matulões muito infantis que eram quantos de nós enchíamos  as nossas salas de aula.
Foi assim e ali que conheci o Joaquim Benite.
José Saramago vi-o pela primeira vez na pequena e mal amanhada sala de visitas da Redacção do Diário de Lisboa, na Rua Luz Soriano, para onde a chefia me despachara a fim de atender um editor que nos procurava. Estava de pé, apoiado na pequena mesa à qual nos sentaríamos a fim de eu saber quem era aquela figura austera e longilínea, um homem de meia idade vestido de fato cinzento completo, envergando  uma imaculada camisa branca. e o que  dali buscava. Soube então chamar-se José Saramago, e era representante duma pequena editora chamada Estúdios Cor.
 Mal sabia eu que nos viríamos a reencontrar naquele mesmo jornal, onde após a cisão que ditou o afastamento do director Norberto Lopes, José Saramago viria anonimamente a ser o editorialista que diariamente assegurava a opinião do “Diário de Lisboa”em escorreitos e secos editoriais com que  substituira as “Notas do Dia” do prévio director, por determinação do administrador Lopes do Souto. Aquela sua visita tinha o propósito de solicitar uma nota crítica a um livro de poemas que  aquela editora  publicara e também pedir a melhor atenção do suplemento literário daquele jornal para as obras que entretanto iriam saír com a chancela daquela modesta editora independente.
Lembro-me que era inverno, que estávamos no fim da manhã dum dia chuvoso e que falámos de literatura e de política, muito longe de saber eu que estava fechado naquela sala com um futuro Prémio Nobel da Literatura, aliás sem que Saramago se assumisse sequer como um escritor, vestindo antes a pele dum modesto editor revelador de talentos. Recordo-me que falámos longamente não só porque a conversa era interessante mas também na esperança de que a chuva intensa parasse de cair ruidosamente sobre o vidro da clarabóia do edifício. Dali só o viria a reencontrar em almoços ocasionais num pequeno restaurante do Bairro Alto ou numa tasquinha da Madragoa.
Por essa altura, era o Joaquim Benite um brilhante redactor de “O Século”, eu um modesto repórter do Diário de Lisboa e Saramago um discreto editor e promotor de obras literárias, nunca coincidindo os passos de nós três, senão anos mais tarde, quando finalmente trabalhámos ao mesmo tempo no mesmo jornal, o “Diário de Lisboa”.
Ao Joaquim nunca perdi o paradeiro e já depois dele abandonar o jornalismo e enveredar episodicamente pela publicidade, para acabar a montar em Campolide aquela que é hoje a companhia de teatro de Almada, encontrávamo-nos com regularidade, falando disto e daquilo até quase de manhã, mesmo que fosse com um pé e o costado contra a parede dos cafés Monte Carlo, ou Monumental.
Ao José Saramago nunca deixei  de acompanhar até ao fim da sua vida, sem que eu pudesse esconder a minha admiração pelos livros que foi publicando, desde o “Levantados do Chão”, daquela obra monumental de dar Portugal  a conhecer aos Portugueses  até desembocar naquele espantoso “Memorial do Convento” e todos os outros que se lhe seguiram.   
Vi a armadilha que lhe montaram quando foi Subdirector do Diário de Notícias, estive com o Joaquim Benite quando em último recurso foi trabalhar para a empresa do Vasco Morgado e quando eu visitava Portugal, durante os anos que vivi em Londres, procurei sempre estar com o Joaquim e com o José, que também regressava de Lancelote. Gostávamos uns dos outros e apreciávamos a dignidade por que pautámos as nossas vidas.
Estivemos os três juntos quando vimos ser cometido um acto ignóbil contra Luis Francisco Rebelo, traído no fim da vida na instituição que criara por aqueles que mais ajudara.
Por tudo isto não pude ficar sem me comover ao ver o carinho com que o Joaquim tratou o José naquela noite em que meteu em cena a “História do Cerco de Lisboa” no teatro municipal de Almada que muito justamente hoje tem o seu nome. A representação do “Cerco de Lisboa” devia ser obrigatória nas escolas, tal como não devia haver um Português sem visitar o mosteiro da Batalha.
Trazer de novo esta peça a cena nos teatros de Portugal seria a melhor  forma de  homenagear José Saramago e Joaquim Benite . E a melhor  maneira de manter ambos vivos.
Publicado no Minho Digital


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22.3.18

Marielle Franco

Por C. Barroco Esperança

A mulher teve sempre um quinhão maior de sofrimento, em todas as épocas e nas mais diversas sociedades, só comparável à dimensão dos direitos que lhe foram negados e de que ainda há quem a queira espoliada.
Ser mulher é a circunstância na perpetuação da espécie e um ónus que lhe impõe quem a quer tolhida para a liberdade e para a aventura da igualdade em que homens e mulheres se realizem de acordo com o mérito de cada um/a.
Não há felicidade para quem é escravo nem para quem escraviza. A igualdade plena é a meta civilizacional, onde não cabem tradições patriarcais das tribos da Idade do Bronze.
O papel reservado às mulheres define o grau civilizacional e a maturidade da sociedade, sendo certamente mentecaptos os homens que se julgam superiores e trogloditas os que exercem a violência, frequentemente legal ou socialmente aceite.
É intolerável que religiões, criadas por homens, imponham às mulheres os seus desejos, que atribuam a uma desalmada vontade divina a dor que lhes infligem e lhes arrestem os direitos, mas é criminoso que os Estados o permitam.
Ser mulher é difícil; mulher e pobre, doloroso; mulher, pobre e negra, insuportável; mas ser mulher, pobre, negra e lutadora por valores da liberdade e de direitos humanos, junto de outras mulheres, é o desafio que se paga com a vida, um ato de coragem que alguém se encarrega de interromper à bala.


Marielle Franco, vereadora do Rio de janeiro, socióloga, feminista e lutadora intemerata pela liberdade e pelos direitos humanos foi executada sumariamente depois de sair de uma reunião em que prosseguia a luta.
Acabou crivada de balas, por profissionais, num país onde há corruptos entre políticos e juízes, onde a classe dominante destitui presidentes, sequestra a democracia, prende ou assassina quem a enfrenta. Marielle, mulher e negra, socióloga que ousou pensar o que a elite não queria, morreu na cidade onde as favelas estão sob ocupação militar, numa rua onde assassinos e polícias se fundem na sombria recordação dos esquadrões da morte.
No corpo da mulher assassinada, as balas foram a dor menor de uma vida de mártir que se extinguiu na luta pela emancipação da mulher, isto é, na defesa dos direitos humanos.
A sua causa é a herança que nos deixa, a obrigação que cabe a tod@s assumir.


Ponte Europa / Sorumbático

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19.3.18

Trump e o Fim do Mundo

Por Antunes Ferreira
Corre na Internet uma piada que reproduz uma gravura tirada duma página do Facebook. Nela reproduzem-se em reprografia os 45 presidentes que até hoje os EUA tiveram, 43 dos quais surgem de forma uniformizada e sem identificação, o penúltimo é negro e o último é um palhaço. O gag nem precisa de explicação, de tal forma é evidente.
Donald Trump, o quadragésimo quinto presidente da História dos Estados Unidos da América é no mínimo um palhaço, porque para começar é um criminoso. E um paranóico. E se ser multimilionário não é pecado, a forma como alcançou o “estatuto” é criminosa. De resto também é mentiroso e os casos que teve com prostitutas são conhecidos.
O último (será mesmo o último?) terá sido o tão falado caso acontecido com a actriz de filmes pornográficos Stormy Daniels com quem Trump manteve uma relação e para a qual pagou uma avultada quantia para a manter calada sobre essa relação, o que Stephanie Cliffords, o verdadeiro nome da actriz, aceitou, e que agora tenta reembolsar a fim de contar num programa televisivo o que realmente se passara entre o presidente e ela. Trump continua a negar.
Por outro lado a disputa ente Donald Trump e Kim Dong-un continua na ordem do dia, ainda que um tanto apagada pela disputa sexual, mas, cuidado, nem um nem o outro esquecem as afirmações trocadas numa disputa diabólica em que a sorte do Mundo está a ser jogada. É um novo Apocalipse? São dois Nostradamus? É o Fim do Mundo?
Foi anunciado um encontro entre os dois, entre os senhores da guerra que, obviamente levarão para a mesa os truques de que dispõem e que, naturalmente, não revelam. Joga-se, portanto, a sorte deste triste órgão que é a Terra, que são os países que a compõem, entre os quais está o nosso, Portugal, entre os povos que a recheiam, repito, também nós, os portugueses.
Ao lado desta hipótese de hecatombe está a China que anunciou uma nova geração de submarinos incontroláveis e indetectáveis e também o Sr. Putin que ameaçou com uma arma invencível capaz de destruir tudo o que seja arma adversária e a qualquer distância.
Repito a pergunta dramática: será o Fim do Mundo?

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18.3.18

Sem emenda - A desigualdade na saúde

Por António Barreto
É provável que a saúde, em Portugal, esteja à frente do progresso. A saúde e, em particular, o Serviço Nacional de Saúde, vêm antes dos outros, educação, segurança social, justiça, protecção civil e segurança, em eficácia e qualidade. A razão parece simples: é o sector menos ideológico, menos submetido à polémica partidária, mais exposto à opinião, influenciado pela ciência, aberto ao mundo e com superior responsabilidade dos técnicos e cientistas.
O Serviço Nacional de Saúde é justamente defendido por quase toda a gente. Há polémicas, desde o papel da ADSE aos subsistemas, passando pela concorrência e pelo papel dos privados. Isso é certo. Mas o papel essencial do SNS não é posto em causa. Partidos de esquerda e de direita são convergentes, ninguém sugere a sua extinção. Mesmo se o pensam, não o dizem. Ricos e pobres defendem o SNS. Utentes de unidades públicas e das privadas defendem o SNS.
É verdade que há quem queira dominar a medicina privada, limitando-a ou proibindo-a. Como há quem queira privatizar a saúde pública. Mas não parece que estas opiniões tenham muitos seguidores, nem sequer hipóteses de se concretizar, a não ser nas cabeças dos polemistas de serviço nos partidos, nas ordens e nos sindicatos.
A actual agitação no universo da saúde, especialmente pública, tem causas clássicas: carreiras profissionais, vencimentos, horários, folgas… O habitual. Quando os profissionais falam em qualidade dos cuidados, “para bem dos doentes”, estão evidentemente a usar eufemismos para o que está em causa: as condições de trabalho. Mas existem também as tentativas de intervenção dos partidos políticos, de esquerda e de direita, que tentam perturbar o governo ou obter vantagens.
O problema novo é que parece que a saúde está em crise. As dívidas estão descontroladas. Há talvez cinco ou dez anos, a situação sanitária tem vindo a deteriorar-se. Menina de 15 anos, com mais de 40 graus de febre, espera na urgência até seis horas para ser atendida. Rapaz de quinze anos espera seis meses por cirurgia urgente. Senhora de setenta fica deitada em maca, no corredor, durante três dias, para tratamento urgente. Medicamentos em falta nas farmácias e nos hospitais. Os tempos de espera por consulta, exame, análise e cirurgia aumentam. Estes casos não são literatura: são de pessoas conhecidas que se dirigiram às urgências dos melhores hospitais públicos da sua área de residência.
Que provoca a deterioração do serviço? O número de profissionais parece não ser. Na verdade, o aumento de médicos e de enfermeiros por habitante é constante há várias décadas: Portugal era o último país da Europa em 1980 e é hoje um dos primeiros. Quebra de qualidade e competência dos profissionais? Nada faz crer nisso. Situações epidémicas graves? Não parece. Fuga dos bons profissionais públicos para as entidades privadas? O argumento é puramente demagógico.
Sempre na esperança de que estudos independentes possam dizer mais, tudo leva a crer que estejamos diante de dois factores primordiais: baixa de financiamento e organização deficiente. Esta, apesar dos enormes progressos registados nos últimos trinta anos, continua a ser uma forte razão. Ineficiência que se traduz ou resulta da falta de autonomia, do poder excessivo dos corpos profissionais, da confusão de funções, da acumulação de vínculos em sectores privados e públicos e da falta de recompensa para a gestão de mérito.
Mas a primeira razão parece mesmo ser a da redução do financiamento. É verdade que a despesa com saúde, em percentagem do PIB ou por habitante, tem descido. Parece estar agora em recuperação, mas muito ligeira e lenta. Que será preciso para que se mantenha a saúde no topo das prioridades? Com o máximo de controlo financeiro? Com o mínimo de desperdício? Com um real esforço de eficácia social, isto é, uma tentativa permanente de evitar que os menos afortunados e os mais pobres não estejam a ser sistematicamente desprezados nas filas de espera e na qualidade do atendimento?
A desigualdade social na saúde é a mais cruel de todas.

DN, 18 de Março de 2018

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Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Convento de Cristo, Tomar – Escadaria principal de acesso à igreja, à Charola e aos claustros. Este é um dos grandes monumentos, como a Batalha, Alcobaça e Jerónimos: são os mais visitados pelos turistas portugueses e estrangeiros. Todos tão elogiados e tão menosprezados, bem mereciam, neste Ano Europeu do Património Cultural, mais atenção, melhores políticas, mais recursos e uma visão consistente que permitisse ordenar, preservar, estudar e divulgar sem estragar… Alguns destes monumentos de enorme dimensão e complexidade, não chegam a ter uma dúzia de técnicos e funcionários que vendam bilhetes, acompanhem, estudem, divulguem, guardem, conservem, protejam, administrem… Será assim tão difícil, a qualquer governo, qualquer ministro, qualquer partido, considerar realmente prioritário este património único e irrepetível, sempre em risco de se deteriorar, sempre à beira de ser roubado e destruído, como já foi tantas vezes e ainda é? A questão é simples: o património faz-nos, é também o que nós somos.
DN, 18 de Março de 2018

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