30.1.24

CONDIÇÃO FEMININA (em Évora, anos 30 e40 do século que passou)

Por A. M. Galopim de Carvalho

Depois do jantar, os homens saíam a caminho dos seus interesses. Fossem ricos, remediados ou pobres, a regra era essa. As mulheres ficavam em casa. De muitas delas, a única distração era ficarem à janela a ver quem passasse ou a falar com a vizinha da frente. Prisioneiras das responsabilidades que lhes eram atribuídas pela tradição e pelo regime, continuavam no exercício das tarefas domésticas, lavam a loiça, arrumavam a cozinha, costuravam e, ao mesmo tempo, cuidavam dos filhos mais pequenos. Estes, ou faziam os trabalhos da escola ou brincavam, muitas vezes na rua, à porta da casa, sempre aberta. As filhas com idade para ajudar, começavam aí a sua iniciação de mulher de família

Eram as mães que, contra elas próprias, educavam as filhas e os filhos a perpetuarem os hábitos da sociedade machista em que cresci e me fiz homem, numa vivência estimulada pela Igreja e pelo poder político da época. Jovem casadoira, qualquer que fosse a sua condição, já sabia que o seu lugar ia ser no lar ou no “ninho”, como algumas e alguns gostavam de dizer. Ao contrário das mulheres do campo, eram poucas as da cidade com trabalho fora de casa.

No mundo rural não era assim. Pobres por condição e tradição, mães com ou sem filhos e raparigas adolescentes tinham mesmo de trabalhar sempre que as oportunidades surgissem e essas oportunidades eram, sobretudo, a monda, a ceifa e a apanha da azeitona.

«A mulher quer-se em casa, a cuidar dos filhos», «a rua é que é para os homens», «homens na cozinha só atrapalham» eram frases feitas, submissa e pacificamente aceites pela generalidade das mulheres, industriadas que estavam em casa, pelas mães, e na escola, pelas professoras. Eram frases próprias de uma sociedade machista como era a nossa, numa tradição europeia vinda da antiguidade helénica, onde, na Pólys, a cidade-estado da Grécia antiga, cidadão era aquele - nunca aquela - que gozava do direito de participar na vida política da cidade, um direito igualmente vedado a estrangeiros e a escravos. Mais tarde, na Europa e até finais do século XVIII, foi condição de dignidade do homem – nunca da mulher - que recebia esse título honorífico. Mantida e aperfeiçoada na cultura judaico-cristã, esta diferença era, e ainda é naturalmente bem aceite por muitos homens, como parte interessada. 

Esta desigualdade tinha para nós, rapazes, as suas vantagens, habituando-nos a essa condição privilegiada dos elementos masculinos da família.

- Tisa, já fizeste as camas? – Ordenava a mãe. - Agora vai pôr a mesa!

- Lurdes, vai passar (a ferro) a camisa do teu irmão.

E aí, nós só não líamos o jornal, recostados num sofá, porque não tínhamos sofá. De qualquer maneira, lá se nos ia metendo na cabeça que isso dos trabalhos domésticos eram coisas de mulheres.

No meu tempo de escola, o ensino obrigatório, estabelecido pela reforma de 1936, de Carneiro Pacheco, ministro da Educação do governo de Salazar, era o primário, terminado com o exame da 3ª classe (3º ano, como agora se diz). Certificado pelo diploma do “Primeiro Grau”, era exigível para ingresso em algumas profissões e, nos homens, para ser eleitor. A escola primária separava rapazes de raparigas e o ensino destas estava confiado a professoras e, às raparigas, na sua predestinada condição de mulher, bastava aprender a ler e fazer contas, duas aquisições essenciais a quem tinha por dever a economia do lar. 

Nascida em 1937, a Mocidade Portuguesa Feminina visava criar “a nova mulher portuguesa: boa esposa, boa mãe, boa doméstica, boa cristã, boa cidadã sempre pronta a contribuir para o bem comum, mas sempre longe da intervenção política deixada aos homens”, como na dita Pólys. A mulher viu-se, assim, relegada para um plano secundário na família e na sociedade em geral, até que, entre nós, o 25 de Abril, não o esqueçamos, pôs fim a esta indignidade.

Obrigatória para todas as jovens dos 7 aos 14 anos, a inscrição na Mocidade Portuguesa pretendia estimular nas nossas jovens a formação do carácter, o desenvolvimento da capacidade física, a “cultura do espírito e a devoção ao serviço social, ao amor de Deus, da Pátria e da Família”. Nos textos oficiais desta organização do Estado Novo figuravam conselhos sobre as atitudes (de acato e docilidade) a ter em casa para com o marido, lições de lavores femininos, com linhas, dedais, tesouras e agulhas, culinária e outros afazeres da vida doméstica e indicações sobre o fato de banho “com decote pouco generoso e saia não muito curta”. 

Saídas à noite, só na companhia de alguém que a protegesse, não de qualquer agressão física, praticamente inexistentes nesse tempo, mas das “más línguas”. E essa protecção era a dos pais, a de um irmão ou outro familiar mais velho. As idas ao cinema, a um qualquer evento público ou a um Café tinham as mesmas restrições. Sempre que as minhas irmãs, adolescentes nesses anos, queriam ir ao cinema tinham de convencer o meu pai, nunca a minha mãe, a acompanhá-las. Do mesmo modo, a minha mãe só podia ir ao cinema, a um teatro, ou a qualquer outro espectáculo acompanhada do meu pai. Poder, podia, só que havia que enfrentar os “bons costumes”.

Nos bailes ou nas matinés dançantes, desiderato da juventude, sempre realizados nas sociedades recreativas, rapazes e raparigas podiam abraçar-se, com decência, dizia-se. As mães, numa “sova de cadeira” de várias horas, acompanhavam invariavelmente as filhas, não só para as vigiarem, não fossem os rapazes apertá-las demais ou fugirem dali com elas, como também para as defenderem das “bocas do mund

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28.1.24

O "1-2-3" das promessas eleitorais...

 Faz lembrar a anedota do caçador que não conseguia matar coelhos porque eles corriam em “ziguezague”:
— Quando disparo para o zigue, já eles estão no zague. E vice-versa…

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27.1.24

Grande Angular - Prova de fogo

Por António Barreto

Um grupo de pessoas de direita ou de extrema-direita entende levar a cabo uma manifestação. As intenções e o espírito são de ordem nacionalista, possivelmente xenófobas ou racistas. A manifestação está convocada para a zona do Martim Moniz e da Mouraria, isto é, bairros onde vivem comunidades de imigrantes, africanos, asiáticos e outros. Está também convocada, para a mesma hora e no mesmo local, uma contramanifestação. Entretanto, circula uma carta, assinada por uns milhares de pessoas, solicitando que a primeira manifestação seja proibida. Outras vozes, na imprensa, exigem também a proibição. O executivo da Câmara Municipal de Lisboa condenou, por unanimidade, a realização desta manifestação.

 

Uma manifestação não necessita de autorização, mas apenas de informação remetida às autoridades, a fim de, se tal for necessário, serem tomadas providências. Do ponto de vista da liberdade de expressão e do direito à manifestação, este dispositivo parece suficiente.

 

Proibir esta manifestação é um acto grave e de sérias consequências. É a melhor maneira de abrir uma temporada de violência na sociedade. Deixá-la correr sem qualquer intervenção é igualmente gesto condenável e de maus efeitos: haverá afrontamento e violência. Deixar correr as duas, manifestação e contramanifestação, é ainda pior, é quase garantir que haja confronto físico. Em poucas palavras, qualquer destas soluções é uma má resposta ao problema.

 

É verdade que a situação é delicada e perigosa, ainda por cima com eleições marcadas para breve. A “questão racial” está a ser fomentada há anos, racistas e anti-racistas procuram-se mutuamente. Por ausência de políticas de imigração e de integração, pelo aumento de imigração ilegal, pela exploração de trabalho clandestino e pelas condições de vida de milhares de imigrantes, por todas estas razões, é possível prever a iminência de afrontamentos. É possível que estejamos a viver um desses momentos que marcam uma viragem, para pior, da situação e dos acontecimentos. É alto o grau de nervosismo. É garantida a vontade de mostrar forças.

 

Grupos e partidos nacionalistas e de extrema-direita desejam um momento dramático para dizer que “isto aqui é Portugal”! Para isso, estão dispostos a tudo. Querem choques violentos para depois afirmarem que já não se pode ser português em Portugal. Do outro lado, esquerdistas, antifascistas e anti-racistas querem uma oportunidade dramática e se possível violenta para demonstrar que “Portugal é um país racista”! Ambos ficariam satisfeitos com o confronto. Ambos receberiam com delícia a proibição da manifestação.

 

A discussão pública sobre a imigração e o debate sobre as respectivas políticas estão por fazer. Estes temas são difíceis, por isso mesmo urgentes. São igualmente recheados de preconceitos, o que reforça a necessidade de esclarecimento e de elaboração de políticas. Assim é que importa que não se deixem abrir feridas nem azedar ânimos, o que só tornaria mais inútil o debate nacional. Parece, pois, essencial evitar o confronto que se desenha para a próxima semana. Este e outros a seguir. Mas, evitar esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão. Por isso não é imaginável que se proíba a liberdade e o direito de expressão e de manifestação.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de antidemocratas. Sejam eles de extrema direita nacionalista ou fascista, sejam revolucionários comunistas e aparentados. Todos estes querem ultrapassar a democracia e criar novo regime que a elimine. É o seu direito. São livres de assim pensar e tentar convencer a população, desde que não cometam actos ilegais, como sejam a violência contra pessoas, a segregação à força, a destruição de bens, o roubo, a agressão de qualquer espécie… Isto é, que cometam actos ilegais de qualquer espécie. Nesses casos, terão de ser detidos e julgados. Mas não podem ser atacados pelas suas opiniões.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de racistas e xenófobos. Brancos, negros ou de qualquer outra origem. Os racistas e os xenófobos são pessoas frequentemente detestáveis, não escondem a sua animosidade pela democracia e têm um orgulho infundado na superioridade da raça branca. Podem defender as suas ideias. Podem publicar as suas opiniões e até divulgá-las. Não podem é agir em consequência dessas opiniões, segregar outrem de serviços e empresas, ser violentos, expulsar de locais públicos e ofender as outras pessoas. Noutras palavras, não podem cometer crimes de ofensa, agressão ou segregação, proibidos na lei em todas as circunstâncias. Mas a liberdade de expressão é intocável.

 

A ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás na democracia, é uma perversão da tolerância, é um atentado contra alguns dos direitos e liberdades fundamentais da democracia.

 

O direito a manifestação de todos os cidadãos, protegido pela lei, sem qualquer autorização, é igualmente intocável. Evidentemente que se pode, por razões de segurança, condicionar esse direito de manifestação, não no essencial, mas na circunstância. Por exemplo, a hora e o local de manifestação. Este caso da manifestação nacionalista do Martim Moniz e da Mouraria parece um exemplo de escola. Evidentemente que o local traduz uma procura de afrontamento e de confronto social no que pode ser considerado uma provocação. Assim sendo, é legítimo que as autoridades nacionais e camarárias obriguem os manifestantes a alterar a circunstância (hora e local), sem renunciar ao essencial (a manifestação e a expressão de opinião). Como é igualmente legítimo que a contramanifestação seja deslocada na hora e no local. É um imperativo de ordem pública e de paz social que essas manifestações não coincidam no espaço e no tempo. Mas não se pode proibir uma nem outra.

 

O que está em causa na próxima semana é a liberdade de expressão e o direito de manifestação. É uma real prova de fogo da democracia portuguesa. Por razões de interesse público e em defesa da paz e da ordem pública, podem as manifestações (que não necessitam de autorização) ser deslocadas no espaço e no horário, como pode ser exigido que não se realizem no mesmo sítio ou à mesma hora. Mas não podem, definitivamente não podem ser proibidas!

 

Se a democracia portuguesa não consegue viver com antidemocratas e com racistas ou xenófobos é porque é fraca, frágil e medrosa. A democracia defende-se com métodos legítimos e com força democrática, sem recorrer a meios ilegítimos. Sem pisar o risco.

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Público, 27.1.2024

 

 

 

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NO 19.º ANIVERSÁRIO DO "SORUMBÁTICO"

 Meu Caro Sorumbático! 

Vai o meu artigo desta semana, sobre assunto delicado e difícil. A liberdade de expressão e as questões de racismo, verdadeiro ou alegado.


Quero aproveitar o envio para o festejar uma vez mais. Agora são 19 anos! Já estamos na maioridade, como se fosse possível aplicar tal critério ao Sorumbático! Foi maior… desde sempre! Muito parabéns pelo aniversário e muitos parabéns ao seu Guardião, Carlos Medina Ribeiro.


Quando comecei a colaborar aqui, há muitos anos, tinha a impressão de que estava na vanguarda! Escrever num Blogue! Publicar artigos e fotografias! E assim era. Verifico hoje, com as “redes” ditas sociais, que o Blogue já é uma tradição. Que deve ser mantida. A todo o preço. Como os jornais e a rádio, ricas tradições do melhor espírito da humanidade.


Um abraço, Sorumbático!


António Barreto

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21.1.24

19º ANIVERSÁRIO do "Sorumbático"


No passado dia 5, até eu me esqueci do 19º ANIVERSÁRIO do "Sorumbático"!
No entanto, continuam a estar aqui todas as publicações desde o primeiro dia (16.650, ao todo) tendo tido, até à data, 3.658.940 visualizações com 34.522 comentários.
Aqui fica, também, uma especial palavra de saudade aos amigos Carlos Pinto Coelho, Nuno Brederode dos Santos, Pedro Barroso e J. L. Saldanha Sanches.

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20.1.24

Grande Angular - Sonho de uma noite de Inverno

Por António Barreto

Dentro de pouco mais de uma semana, ficaremos a conhecer as listas completas de candidatos à Assembleia da República. São listas exclusivamente subscritas por partidos ou coligações de partidos. Movimentos, associações e grupos de cidadãos estão excluídos. Independentes também não se podem candidatar, a não ser que se submetam a fazer parte de uma lista partidária, o que quer dizer que estejam dispostos a perder a sua independência. A não ser que façam prova de fidelidade partidária, mais de dez milhões de portugueses não se podem candidatar a eleições legislativas.

 

O fabrico destas listas é um dos momentos mais polémicos da política portuguesa. Esse gesto traduz a realidade da vida partidária e das relações dos partidos com a sociedade. É através das listas que se pode escolher e sanear quem vai ser eleito, quem fica na vida política e quem é despedido. O dispositivo essencial das listas consiste na ordenação dos candidatos: são eleitos os que vêm à frente, são afastados os que vêm atrás ou ficam cá para baixo. Mas tudo depende, evidentemente, do número de votos que a lista recebe. Nos partidos com muita autoridade, tudo se passa sem ruído percebido pelo público. Nos partidos democráticos no poder, o clima é tenso, mas pacífico. Nos partidos democráticos na oposição, o momento é febril e adequado a ajustes de contas. 

 

De qualquer maneira, dos 230 deputados a eleger, 190 já estão eleitos. Já podem tomar providências, alugar casa ou reservar hotel em Lisboa. Foram as escolhas dos chefes dos partidos que decidiram o lugar em que estão nas listas e é assim possível saber já a maioria dos que são eleitos. Os cidadãos não escolheram absolutamente nada. A não ser os muito pequenos partidos que podem eleger alguns ou nenhuns deputados. Assim como os últimos 30 ou 40 deputados eleitos que vão compor os grupos e definir quem tem maioria. Na verdade, são estes que decidem a vitória eleitoral e respectiva amplitude. Justiça seja feita: o eleitorado ainda tem a escolha destes últimos deputados. Ou seja: escolhe quem vence, mas não escolhe quem o representa.

 

Há cinquenta anos, abstiveram-se cerca de quinhentos mil cidadãos. Há vinte anos, um pouco mais de três milhões.  E há dois anos, perto de cinco milhões e meio optaram pela abstenção. Melhor do que taxas e percentagens de abstenção, estes números brutos revelam um profundo mal-estar. De muitas democracias, com certeza, mas a nossa é a que nos traz aqui. Como toda a gente sabe, existe um problema muito sério, cada vez mais difícil, de legitimidade e de representatividade dos parlamentos eleitos.

 

E tudo poderia ser tão diferente! Poderíamos ter, neste 10 de Março, uma verdadeira revolução dentro da democracia! Poderíamos ter 230 círculos eleitorais, cada um elegendo, por maioria absoluta, um só deputado. Este seria alguém já conhecido pela comunidade, ou que passaria a sê-lo depois da campanha e da eleição. Seria um elemento da região, ou de sítio vizinho, ou mesmo vindo de longe (da capital, por exemplo) mas que se tinha apresentado localmente para ser seleccionado. Aliás, o “candidato a candidato” por um partido deveria ser seleccionado pelas assembleias dos partidos. 

 

O termo “o meu deputado” faria assim sentido para todos os deputados, com responsabilidades pessoais, contas a prestar, mandatos a receber, lutas a conduzir e batalhas a travar. O distrito de Lisboa, por exemplo, em vez dos actuais 48 deputados, uma verdadeira sociedade anónima que ninguém conhece em maioria, seria dividido em outros tantos círculos, cada um com o seu deputado, de acordo com a dimensão demográfica. O resto do país teria o mesmo tratamento.

 

O “meu deputado” seria o que foi eleito, evidentemente, poderia ou não ser do meu partido ou daquele em quem votei. Desde que é eleito, um deputado representa todo o eleitorado, não apenas o seu partido. Esse “meu deputado” teria reuniões regulares com os seus eleitores (os que quisessem estar presentes) e teria anunciado, à porta do seu gabinete e na NET, os dias em que receberia os seus eleitores que lhe apresentariam casos e poderiam assim elogiar, criticar e fazer sugestões ou reclamações.

 

O “meu deputado” poderia ser um membro do partido que eu apoiaria, ou de um outro partido que teria ganhado as eleições. Mas poderia também ser de um movimento cívico, de um grupo de defesa do meu bairro ou da minha cidade. Ou de um movimento de defesa da ecologia, do género, de uma religião, dos idosos, dos doentes ou de outro qualquer grupo de referência. Poderia até ser apenas independente absoluto, sem pertença a grupo, partido ou movimento, mas claramente conhecido, até para vencer as eleições.

 

O mais provável é que a maioria dos deputados eleitos pertencesse aos partidos estabelecidos. São eles que têm nome e meios, profissionais de campanha, história e interesses estabelecidos, referências de classe, religião, origem ou doutrina. Mas as relações de cada deputado com o seu partido mudariam de modo significativo. Os deputados saberiam que eram eleitos pelo que eram, ou também por isso, não apenas pelo nome do partido. O que quer dizer que teriam mais força e mais autonomia.

 

Ao mesmo tempo, os partidos saberiam que se não respeitassem os deputados e a sua liberdade, estes poderiam pura e simplesmente informar o eleitorado. Além disso, quando os partidos escolhessem as suas listas, teriam de ser muito mais exigentes e seleccionar os melhores, tanto do seu ponto de vista como dos interesses das comunidades. Caso contrário, perderiam a eleição. Ou os candidatos em questão apresentar-se-iam por eles próprios. As listas partidárias teriam de ser as melhores e não apenas o rol dos fiéis, dos que causam menos problemas à direcção do partido e dos que fazem o que lhes mandam e só isso. Os independentes e membros de associações ou movimentos teriam assim um duplo papel: o de serem bons representantes do povo e o de obrigarem os partidos a seleccionar melhor.

 

Tal como noutros países, este sistema eleitoral poderia funcionar a duas voltas, isto é, todos concorrem à primeira e, à segunda, passam os dois primeiros ou os que estão acima de uma fasquia determinada. Quer isto dizer que um deputado é sempre eleito com mais de 50% dos votos, o que confere legitimidade e consolida as maiorias. 

 

Não há milagre. Nem soluções mágicas. Mas os que se queixam de falta de proximidade da democracia, de afastamento dos políticos, de reduzida transparência do processo democrático e da legitimidade decrescente em tempos de abstenção em permanente aumento, deveriam pensar duas vezes. O sistema está feito para afastar, não para chamar.

Público, 20.1.2024

 

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18.1.24

No "Correio de Lagos" de Dez 23

 

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16.1.24

DAS MEZINHAS E REZAS AOS FÁRMACOS

Por A. M. Galopim de Carvalho

Um tema antigo, bem gravado na memória, é o das enfermidades e dos meios com que se procurava dar-lhes combate. Nos curtos anos da minha infância e adolescência pude assistir à substituição das mezinhas e dos remédios manipulados na farmácia pelos fármacos produzidos industrialmente. É claro que não conheço o suficiente de história da medicina e da instituição farmacêutica que me permitam abordar este tema em moldes minimamente fundamentados. Mas o que eu posso e sei fazer é relatar o que, neste domínio, se passava nesse tempo, no seio da minha família. 

Constipações, amigdalites, otites, gripes, sarampo, varicela, papeira e disenteria, embora com nomes diferentes, tudo isso andou lá por casa, tocando todos os filhos. Falava-se, de anginas, de dores de ouvidos, de bexigas doidas, de dores de barriga, tudo situações que a mãe ultrapassou, por si só ou com a ajuda do médico, mas sempre com muita fé, velas e promessas de cera ao Senhor Jesus dos Passos e muitas rezas a Nossa Senhora e às duas santas da sua devoção: Santa Rita e Santa Teresinha.

Uma purga com óleo de rícino ou um clister eram coisa certa sempre que aparecíamos com febre. Dizia a mãe que serviam, antes do mais, para limpar os intestinos. Vinham, depois, consoante os casos, os papelinhos de criogenina, para baixar a febre, as fricções com vinagre aromático ou com álcool canforado, o algodão iodado ou os emplastros de papas de linhaça e mostarda, a escaldar, colocados sobre o peito. Se doíam as costas pincelavam-se com tintura de iodo ou aplicavam-se meia dúzia de ventosas.

Nas dores de ouvidos, e quão fortes eram, a minha mãe procurava dar-nos alívio vertendo, lá para dentro, leite levemente aquecido, o que, segundo me lembro, pouco ou nada resultava. As dores só passavam quando a infecção era debelada pelas defesas próprias do organismo. Com as anginas, nome que se dava às amigdalites era a mesma coisa. As correspondentes dores de garganta, a febre e a dificuldade de engolir passavam ao fim do tempo que durava a luta dos leucócitos sobre o agente patogénico. Mas era crença generalizada que as anginas se curavam com as mezinhas caseiras e, assim, besuntava-nos a parte anterior do pescoço, onde se localizavam as ínguas, com pomada de beladona, sobre a qual se passava um lenço de algodão. Em complemento, gargarejávamos com água e sal, chupávamos sumo de limão, engolíamos colherzinhas de mel e fazíamos zaragatoas com azul de metileno. Este último tratamento, feito ao deitar, era aceite como uma brincadeira, porque tingia de verde a urina da manhã seguinte. Ir para a escola com um lenço atado ao pescoço, a cheirar a beladona não era agradável. Mas muito pior era quando o tratamento tinha sido feito com “enxúndia de galinha” que, com o mesmo propósito, era preferida pela minha avó. Esta gordura amarela da ave era guardada numa velha tigela de faiança de Sacavém, onde se oxidava, tornando-se rançosa e mudando a cor para castanho. Era nesta fase de apodrecimento, exalando um cheiro nauseabundo, que este unguento estava, dizia ela, em condições de produzir o efeito desejado.

Na maior parte dos casos estas amigdalites eram passageiras e com ou sem mezinhas acabavam por passar. Havia, porém, situações graves como o garrotilho, designação que se dava à difteria. Esta exigia o recurso ao médico, mas havia uma norma nesse tempo, segundo a qual o doutor só era chamado se, ao fim de três dias, o doente não desse mostras de recuperação, em resposta aos tratamentos caseiros. Por vezes, este tipo de procedimento tinha consequências fatais. Isto aconteceu com um meu vizinho e colega de escola, vítima desta angina má. O estado da doença causada pelo Corynebacterium diphtheriae não cedeu ao soro que lhe foi ministrado tarde demais. Foi a consternação na minha rua. Morrera um menino. Passados dois ou três dias sobre este trágico desfecho, comecei com dores de garganta e muita febre. A minha sorte foi o estado de alerta em que a minha mãe ficara, o que a fez chamar, de imediato, o nosso médico. Foi já amodorrado na cama, cheio de febre, que vi surgir, na porta do quarto, o Dr. Fonseca, pai. De farta bigodeira branca, a chegada do velho clínico confirmou os meus receios, afinal, os mesmos da minha mãe. Experiente destas situações, ela já tinha ali, à mão, uma toalha de linho destinada à auscultação. Não havia ou, se havia, ainda não se usava estetoscópio. O paciente, de tronco despido, era coberto por este pano que a tradição e o brio da dona da casa mandavam que fosse branco e se apresentasse sempre muito bem passado a ferro. Com esta toalha de permeio, o médico encostou-me o ouvido às costas e ao peito, mandando-me respirar fundo, parar de respirar, tossir e dizer trinta e três, à medida que ia procurando, em audição directa, as respostas dos meus pulmões. Observou-me depois a garganta com o cabo de uma colher a servir de abaixa-línguas, e a sua conclusão, dita à minha mãe, numa voz descontraída que deu para eu ouvir perfeitamente, foi:

- Temos aqui, dona Adília, um caso de angina diftérica.

Face a esta afirmação, recordo, afundei-me resignadamente nos lençóis, convicto que teria o mesmo fim do Cardoso, o meu colega acabado de enterrar. Pouco depois da saída do médico, entrou a menina Rita, a enfermeira que habitualmente nos assistia, para me injectar o soro e, assim, as imunoglobulinas do fármaco inactivaram as toxinas produzidas pela bactéria, mas encheram-me de urticária, situação que se resolveu depois com um antiestamínico (Anafilarzan).

Foi um tempo em que a única vacina era a que se dava contra a varíola, enfermidade grave, tantas vezes fatal, conhecida por toda a gente por bexigas, pois deixava os poucos que lhe sobreviviam marcados pelas inúmeras pequenas cicatrizes das vesículas pustulentas espalhadas por todo o corpo, particularmente visíveis no rosto.

Uma entorse, por exemplo, num artelho ou num pulso resolvia-se, via de regra, com escaldões num alguidar com água quase a ferver onde se dissolvia um punhado de sal. Aí se mergulhava o pé ou a mão e parte do antebraço, procurando resistir ao intenso calor, o tempo considerado necessário. Por último apertava-se a articulação com uma ligadura, no sentido de a imobilizar e reduzir o inchaço. Depois era esperar uns dias até o incómodo passar. Nos casos mais difíceis de resolver por esta via, a mãe recorria a uma vizinha tida por muito virtuosa, para que ela “cosesse o torcegão”. Conheci a virtude desta senhora uma vez em que, correndo no Largo dos Penedos, torci um pé no sítio do tornozelo. Chegado a casa dela, levado pela minha mãe, a senhora mandou-me sentar à sua frente, numa cadeirinha baixa, pegou-me no pé magoado e ajeitou-o sobre os seus joelhos. A seguir tirou-me a ligadura, encostou um novelo de lã cinzenta à zona mais inchada e começou a “cosê-lo” com uma agulha grossa onde enfiara um pedaço de lã do mesmo novelo, sem o habitual nó na ponta do fio. A agulha e o fio iam entrando e saindo ao ritmo de uma reza, dita em surdina, para mais ninguém ouvir. Recebida da mãe à hora da morte, guardá-la-ia consigo enquanto vivesse e só ao sentir-se morrer a transmitiria à mulher que ela entendesse merecer tal virtude. A intervalos de tempo, como se de um refrão se tratasse, perguntava em voz bem audível.

—  O que é que eu coso? – e a minha mãe respondia, por mim.

—  Carne quebrada, nervo torto. – E a senhora confirmava – “Isso mesmo é que eu coso”.

Terminada a cosedura, repôs-me a ligadura e recomendou-me repouso e mais uns escaldões. O incómodo acabou por passar e tudo voltou ao normal alguns dias depois. Habituada que estava na assistência à doença, numa casa de família com seis filhos, a minha mãe passou a assumir, sempre que necessário, o papel da virtuosa senhora. Não conhecendo a tal reza, substituía-a por Padre Nossos e Avé Marias, com idêntico bom resultado. Em sua muito convicta opinião, o que contava era a fé com que se rezava.

 

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15.1.24

No "Correio de Lagos" de Dez 23

 


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13.1.24

Grande Angular - Santos e diabos. Polícias e ladrões.

Por António Barreto

O Partido Socialista é, cada vez mais, o partido do regime. Está a ficar parecido com o que foram, durante uns tempos, o Partido Conservador britânico ou os partidos Gaullistas franceses. É o partido da democracia portuguesa. Não era esse exactamente o sonho de Mário Soares, mas foi o de Sá Carneiro e a obsessão de Cavaco Silva. Os dois últimos falharam. Nunca estiveram tão próximos de ser o partido do regime como o PS de hoje, herdeiro de Guterres e de Sócrates, filho de Costa e de Santos. O que é uma vantagem para os socialistas e certamente um motivo de orgulho. Mas os benefícios para a população são muito discutíveis.  Até porque não é partido do regime quem quer e só porque quer. É também preciso que o deixem ser.

 

O grande sonho do PS consiste em transformar-se numa espécie de PRI mexicano, o Partido Revolucionário Institucional! Só o nome é um programa! Único na história a juntar, na mesma designação, revolução e instituição! O PS conseguiu meter tudo dentro. Do liberalismo ao socialismo, passando pelo corporativismo. Tanto ajuda, apoia, subsidia e controla a economia privada como a empresa pública. Foi o maior obreiro da Constituição, mas também o seu mais importante revisor ou revisionista. Dentro de si cabem todos. Há lugar para todos e acredita em tudo, desde que esteja no poder e que os seus dirigentes desempenhem as primeiras funções.

 

Na verdade, dentro do PS, há de tudo. Santos e demónios. Polícias e ladrões. Virtuosos e bandidos. Maçons e católicos. Rigorosos e trafulhas. Por isso se sucedem a si próprios, por isso se alternam. Neste PS, está o público e o privado. O nacional e o estrangeiro. O judeu e o palestino. O americano e o russo. Guterres e Sócrates. Costa e Santos. Tudo cabe no PS que consegue sempre mudar de pele sem mudar de corpo. Melhor ainda, o PS é capaz de criticar, com aparente inocência, o que está mal no país  e não corre bem por sua própria responsabilidade. Com enorme sentido da oportunidade, faz o mal e a caramunha.

 

Sempre o PS teve uma predilecção pelos serviços públicos. É o seu melhor lado, a sua primordial inspiração. Acontece que é crente, mas não praticante. O estado actual em que se encontram muitos serviços púbicos faz-nos pensar em ciclos de bancarrota ou situações depois de catástrofe natural. As cidades são esvaziadas, é o termo, dos seus habitantes tradicionais. Nas ruas de Lisboa e Porto, regressam os mendigos, os sem abrigo e os despejados sem capacidade económica. A crise da habitação parece planeada pelos especuladores. O caos do Serviço Nacional de Saúde é inimaginável. É escandalosa a absoluta falta de previsão das necessidades, dos meios, dos profissionais e dos recursos para a saúde. Tal como a incapacidade para gerir a escola pública, que parece em permanente desastre.

 

O partido e os seus dirigentes revelaram um excepcional talento para adoptar todas as políticas possíveis. Sucessivamente ou, se for necessário, ao mesmo tempo. Aliaram-se com a direita, com o centro e com esquerda, com a mesma sinceridade. É o único partido que já se coligou com quase todos os outros: CDS, PSD, PCP e Bloco, sem falar nos governos provisórios onde estavam em circunstâncias excepcionais. Nacionalizaram e privatizaram com igual alegria. Tiveram tantas políticas económicas, agrícolas e industriais, quanto os ministros que nomearam e não foram poucos. Com igual firmeza, foram centralistas, descentralizadores e regionalistas. Construíram incansavelmente o Serviço Nacional de Saúde, que estão em vias de destruir ou deixar decair com cuidadosa minúcia. Tiveram várias políticas de educação, ao sabor dos ministros, com cujas ideias, as boas e as más, navegaram alegremente. Foram campeões do endividamento e brilharam pelo modo como reduziram o mesmo. Levaram o país à bancarrota e pediram assistência financeira internacional. Quando havia recursos, gastaram tudo o que havia para gastar e foram, depois, autores dos primeiros grandes programas de austeridade. Defendem a abertura de fronteiras, são tolerantes e amigos dos imigrantes, mas os seus governos são os que mais permitiram o desenvolvimento do tráfego de mão-de-obra ilegal e a sobre-exploração de trabalhadores estrangeiros.

 

Os socialistas podem gabar-se de ter estado em todas, de terem sido responsáveis por tudo! Foram favoráveis a pelo menos quatro localizações diferentes para o aeroporto de Lisboa. Tal como apoiaram, hesitaram e combateram o TGV ou, antes disso, as auto-estradas. Nacionalizaram e privatizaram a TAP com igual destreza.

 

O novo secretário geral, Pedro Nuno Santos, anunciou ao que vinha. Depois de um enorme elogio ao antepassado António Costa e ao seu tempo histórico, garantiu que tudo isso, Costa e o seu tempo, estava acabado. Terminado. Ultrapassado. E prometeu que agora tinha chegado a sua vez. A “nossa” vez, como disse. Com singela delicadeza, anunciou tudo o que de novo e diferente quer fazer, tendo denunciado tudo o que anteriormente fez e em que colaborou.

 

O partido de regime necessita de apoio popular. Hoje, na imprensa e na comunicação, tem-no como ninguém. Pedro Nuno Santos, depois de obra mal feita e antes mesmo de obra nova, tem o favor da imprensa como raros políticos recentes. Depois de, na oposição, ter ameaçado os alemães e os banqueiros europeus, é agora, ao comando do partido, um doce e sensato aliado da finança internacional, do capital estrangeiro e das empresas europeias. O seu programa económico, saído directamente da universidade, anunciado no encerramento do congresso, é uma declaração de paz e de rendição à economia europeia e ao capitalismo internacional, mesmo se na versão moderna, sistémica e tecnológica. Prepara-se para fazer, à direita, o que a mão esquerda não vê.

 

Nem sempre é mau haver um partido de regime. Ou antes, um partido de regime não tem só más consequências. A democracia cristã em Itália, o partido Gaullista em França e o PRI no México, por exemplo, desempenharam essas funções durante uns anos e garantiram ciclos importantes na história dos seus países e na consolidação democrática. Mas também tiveram péssimas consequências políticas e sociais, sem falar na corrupção a pior chaga dos partidos de regime. Na verdade, a constituição de uma “grande família” de regime e partido é muito negativa para as liberdades e a honestidade. E tenhamos consciência de que, em democracia, um partido destes é assim porque os votos querem e os outros o deixam ser.

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Público, 13.1.2024


 

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11.1.24

“O CHEIRO DA MADEIRA”


Por A. M. Galopim de Carvalho

Em finais dos anos 80 tive oportunidade de ler o livro de Zélia Gattai, “Anarquistas Graças a Deus”, numa edição do Círculo de Leitores, de 1983. Como escreveu o crítico Álvaro Salema, trata-se de um livro de simples e profunda humanidade, colhido da memória, com singela pureza. Recordações de infância vivida numa família de emigrantes italianos, em S. Paulo, por volta dos anos 20 do século passado. Com grande simplicidade e realismo, sem pretensões de estilo literário, o texto flui agradavelmente em tom narrativo. Nesta obra, Zélia Gattai transporta, da infância para a maturidade, as suas vivências mais antigas, com um poder de simpatia contagiante.

No curto, mas entusiasmante prefácio, Jorge Amado, o seu marido há mais de três décadas, refere que, depois de ler um conto que ela escrevera durante uma estadia de ambos nas “aforas” (arredores) de Salvador, em finais dos anos 70, embora o conto lhe não tivesse interessado grandemente, encontrou nele elementos curiosos sobre a vida dos imigrantes italianos em S. Paulo, pelo que, conta ele, lhe disse: «Jogue o conto fora e escreva suas memórias de infância e adolescência. Descreva a vida em sua casa, a família, os amigos, os parentes, a rua, o bairro, a vinda dos avós e pais para o Brasil... tudo o que viveste e de que guardas memórias. Farás um livro único, um depoimento singular».

 

A leitura deste livro que me deliciou e, sobretudo, as palavras introdutórias do saudoso mestre da língua, no referido prefácio, despertaram-me uma vontade incontida de trazer ao presente as muitas memórias que tinha de uma infância e primeira adolescência ricas de acontecimentos, encorajando-me a passá-las ao papel. Tudo me motivava, até o facto de ter a mesma idade da autora ao escrever este seu primeiro livro. Nesta fase da minha vida eu era um professor universitário e investigador em Geologia e estava já bem familiarizado com o exercício mental e o acto mecânico de escrever (à mão), ao relatar entidades, processos e ambientes geológicos, formular hipóteses, e explanar ideias e teses, numa escrita clara e objectiva. Foi assim que, praticamente de um jacto, escrevendo quase sempre de madrugada, alinhavei as duas dezenas de histórias, mais ou menos ficcionadas na forma, mas rigorosas no conteúdo, o manuscrito a que dei o nome de “Reguadas, Orelhões e Orelhadas”.

Por essa altura, em começos da década de 1990, eu era um profissional, a tempo inteiro, de uma ciência demasiado terra-a-terra, em busca de um outro caminho, o da literatura. Foi aí que conheci Natália Correia, extraordinária e saudosa portuguesa, com quem tive o privilégio de conviver nos últimos anos da sua vida. Prenderam-me a esta açoriana a intransigência com que defendia a liberdade, a solidariedade e a justiça, o desassombro que usou na palavra falada e escrita, a força e a energia, características que sempre igualei às do também saudoso Ary dos Santos.

O caminho que então procurava tinha o dela e de muitos como ela, por modelo. Natália leu este meus primeiro escrito, arrumando-os num estilo literário que designou por “etnologia ficcional”, expressão que eu nunca imaginara e que me surpreendeu pela exactidão da análise. Nesta nova fase da minha vida, dera por mim a descrever pessoas, ofícios, utensílios, ambientes e modos de vida que vivi ou presenciei e que guardei quase intactos em recantos da memória. Fizera-o, sobretudo, ao sabor de uma certa, espontânea e desconhecida intencionalidade poética. Para tal, eu tinha que dar um primeiro passo e Natália deu-me o empurrão necessário.

O Prof. Agostinho da Silva, com quem convivi e de quem me tornei amigo ao recebê-lo por diversas vezes no Museu, leu o original, a meu pedido, e a opinião, que acerca dele, me transmitiu, não podia ser mais encorajante. 

O escritor Vergílio Ferreira, que conheci nos meus tempos de liceu, em Évora, leu igualmente o manuscrito, aconselhou-me a mudar o título, sugerindo-me o de “O Cheio da Madeira”, dada a importância que tivera para mim o ver trabalhar a madeira, e tentou, sem êxito, encontrar-me um editor. Eu sabia, e ele também, que os editores não se arriscam, comercialmente, com obras de autores desconhecidos. Lyon de Castro, a quem o meu conterrâneo Júlio Roberto levou o mesmo manuscrito, leu-o e, segundo este meu amigo, terá gostado e dito o que eu já sabia: «uma editora não é uma fundação de apoio à literatura». Eu conhecia-o pessoalmente e fizera, a seu pedido, a revisão da versão Portuguesa da “Grande Enciclopédia dos Minerais”, de Rudolf Dud’a & Lubos Rejl. A estima que tinha por mim era uma coisa, a sua actividade comercial era outra.

Nestas andanças, à procura de uma editora que aceitasse publicar o meu manuscrito (nesta altura, início dos anos 90, nem por via dos dinossáurios eu era pessoa conhecida), cheguei à fala com a Editorial Notícias que aceitou editá-lo, desde que suficientemente patrocinado. Uma vez que este livro procura ser um relato ficcionado de situações vividas na cidade de Évora, no segundo quartel do século XX, foi-me sugerido que procurasse obter o patrocínio da Câmara Municipal. Foi então que dei o manuscrito a ler ao meu muito amigo Dr. Abílio Fernandes que, de pronto, acordou com a editora os termos desse patrocínio.

A primeira edição de “O Cheiro da Madeira” saiu a público em 1993 e, conforme me comprometera com o autarca, fui a Évora, na companhia do Dr. Baptista Lopes, o editor, entregar à Câmara o cheque correspondente aos direitos de autor dessa primeira edição. Além do presidente da autarquia assistiu a este acto o Dr. Manuel Branco, então o vereador da cultura, que me perguntou que destino eu gostaria que fosse dado aquele cheque, uma vez que a Câmara não desejava arrecadar a correspondente quantia. Não tive dificuldade em responder: a Escola de S. Mamede, onde fizera a instrução primária. Inteirámo-nos das carências em material didáctico que pudessem ser colmatadas com aquela importância e, feitas as aquisições, fomos fazer a festa na escola onde, hoje, todas as crianças são felizes e andam calçadas e onde, no meu tempo, as reguardas estalavam por tudo e por nada e muitas crianças vinham de pé descalço. Algumas dessas crianças, nunca o esqueci, traziam um pedaço de cortiça para colocar entre os pezinhos e o ladrilho a ressumar humildade fria como gelo.

 

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6.1.24

Grande Angular - O PS: Dualidade e duplicidade.


Por António Barreto
Em Congresso este fim de semana, os Socialistas portugueses bem podem ter orgulho na sua história. Fundado em 1973, o partido tem praticamente a idade da democracia portuguesa. Ao longo de cinquenta anos, é seguramente o primeiro responsável pelo estabelecimento da democracia em Portugal. Não se esquece, com certeza, Ramalho Eanes e os militares do 25 de Abril e do 25 de Novembro, nem o papel pessoal de Mário Soares. Além de, durante períodos curtos, mas significativos, a Aliança Democrática, o PSD, Sá Carneiro e Cavaco Silva terem dado também grandes contributos. Mas é indiscutível que a parte mais importante cabe ao PS.

 

Este venceu quase uma dezena de eleições, esteve em outros tantos governos, elegeu dois Presidentes da República do partido e um fora do partido, teve duas maiorias absolutas, já governou sozinho em minoria e em maioria, já fez governos de coligação com toda a gente, com a direita do CDS, com o centro direita do PSD e com as esquerdas bloquistas e comunistas. Foi o partido que solicitou a plena adesão à CEE (então Comunidade Económica Europeia). Deixou o seu nome associado à Constituição e às suas revisões, assim como às principais leis do país.

 

Mais e melhor do que todos os outros, os socialistas souberam, alternada e sucessivamente, mas também em simultâneo, aliar-se à Igreja e à Maçonaria, numa muito difícil, mas conseguida pirueta política. Em grande parte, as instituições públicas conhecidas e criadas nas últimas décadas foram conseguidas e estabelecidas por este partido. É, de muito longe, com perto de centena e meia de presidências de municípios, o partido dominante do poder autárquico. A sua força política contrasta favoravelmente com a maior parte dos partidos socialistas europeus que se encontram em plena decadência doutrinária e eleitoral.

 

Elástico, do ponto de vista ideológico e programático, a sua maior virtude reside na dualidade, no facto de tudo fazer para combinar liberdade com igualdade, Estado com privados, o individual com o colectivo e o mérito com a discriminação positiva. Esta dualidade, interessante e positiva, compara com a duplicidade do partido, as suas tendências para fazer uma coisa e dizer outra e a de virar à esquerda cada vez que quer governar à direita. Duplicidade também nas contas públicas, com as mais sólidas contribuições para os défices e os mais dolorosos esforços para a sanidade das contas certas. Por três vezes, teve de pedir assistência financeira internacional, tendo sido, uma vez, o responsável pela mais profunda bancarrota financeira portuguesa do último século. Em poucas palavras, a dualidade é de louvar, já a duplicidade é de lamentar.

 

A duplicidade pode ter vantagens a curto prazo, mas, no conjunto e historicamente, é o triunfo da desorientação e uma das causas do atraso relativo da economia, da sociedade, da cultura e da política. Fez a Constituição, é o seu principal autor, mas deixou fazer normas ridículas de que nos queixámos durante décadas e de que ainda hoje sofremos as consequências.

 

Aparentemente respeitador da sociedade civil e do livre associativismo, oscila entre a absoluta tolerância e o dirigismo despótico perante os grupos privados, as associações e as instituições. É, por um lado, defensor da transparência democrática nos processos de recrutamento para o Estado, de obtenção de benefícios e subsídios e de licenciamento e autorizações, que considera, justamente, essencial à liberdade e ao mérito. Mas também é, por ouro lado, o partido com mais clientes seus nomeados e beneficiados e com mais cunhas e favores que considera a justa recompensa da ética republicana, isto é, do espírito de “quem ganha, alcança”! Ou de “quem ganha eleições, manda!”. Ofende, sem escrúpulos, as ordens profissionais e as Forças Armadas.

 

Sempre preocupado, justamente, com o progresso da educação e da cultura, que considera motores da igualdade e indispensáveis elevadores sociais, o partido deixou sistematicamente degradar o ambiente escolar, deteriorar a situação dos professores e instaurar-se um estilo indisciplinado no processo pedagógico. E deixou crescer uma orientação anticientífica e anti cultural, cujas principais vítimas são evidentemente as famílias das classes trabalhadoras e dos grupos mais desfavorecidos.

 

É seu o maior contributo para o crescimento da magistratura e para a definição dos campos e competências das várias magistraturas (judiciais e do ministério público), ao mesmo tempo que parece ser o partido com mais envolvimentos em processos de corrupção e nepotismo. Por outro lado, é também notória a sua paralisia ou a sua abstenção diante da crise de justiça que se agudiza há anos.

 

Os socialistas são, inequivocamente, os autores e os principais responsáveis pelo SNS, Serviço Nacional de Saúde, mas são também eles que presidem, no momento actual, ao período do seu maior declínio. Tudo fizeram para tornar compatíveis as duas medicinas, as duas saúdes, a pública e a privada, mas acabaram por se desentender com ambas!

 

Com provas dadas, no discurso e na legislação, de uma atitude excepcionalmente tolerante e solidária, não o incomoda ter vivido e governado o período de maior exploração de mão-de-obra clandestina e de mais intenso tráfico de imigrantes ilegais.  Favorável, retoricamente, à integração de estrangeiros imigrantes, tudo faz e deixa fazer para o progresso multicultural dos “guetos” e das comunidades segregadas.

 

Considera-se traído por todos os seus aliados. Foi derrotado no Parlamento pela esquerda e foi derrubado pela direita. Perdeu com a direita, mas com a cumplicidade e a ajuda da esquerda. Foi derrotado em Belém por presidentes que tinha ajudado a eleger.

 

Em geral, os congressos partidários deixaram de ser locais de debate e confronto. Ainda menos de reflexão. São agora, ainda por cima com a eleição directa e prévia do líder, liturgias de consagração. Deste congresso, nada resultará. Já se sabe o essencial. O objectivo é o de preparar a campanha, trocar números de telemóvel e mostrar-se ao eleitorado. O futuro destes socialistas, com a nova direcção, ser-nos-á servido logo a seguir às eleições de Março. Para já, de uma coisa podemos estar certos: o PS é capaz de tudo.

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Público, 6.1.2024

 

 

 

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2.1.24

No "Correio de Lagos" de Nov 23


I — FOI HÁ umas boas três décadas que a empresa onde eu trabalhava achou que tinha todo o interesse em obter a certificação ISO 9001. 

Como pode haver quem não saiba, diga-se que se trata de uma qualificação atribuída por uma entidade independente (a APCER — Associação Portuguesa de Certificação), que fornece — às empresas e, portanto, aos respectivos clientes — uma garantia de qualidade, tanto mais credível quanto os seus requisitos (claros, exigentes e universais) são reavaliados periodicamente, em auditorias “de seguimento” e “de renovação”.
No caso em que eu estive envolvido, todo o processo foi levado muito a sério e, dado tratar-se de algo demorado e complexo, foi nomeado um engenheiro-sénior para Director da Qualidade, com poderes semelhantes aos do “chefe-máximo”, pelo que tudo e todos lhe ficaram subordinados no que respeitava ao assunto em causa.

Depois disso, foram tomadas umas quantas acções (como a listagem dos procedimentos a empreender e a nomeação, em cada gabinete, de um responsável pela Qualidade), tendo-me calhado a função de fazer as necessárias auditorias internas (inicialmente, apenas prévias e informais), para o que tive de frequentar um curso de auditor, com aulas teóricas e práticas. 

Mais tarde, depois de vencidas as inevitáveis resistências à mudança (e apaziguados alguns egos e ódios pessoais...), a empresa foi auditada de alto a baixo pela APCER e, uma vez corrigido o que tinha de o ser, o desejado “galardão” lá foi obtido — e devidamente festejado pela generalidade do pessoal, que compreendeu bem o que isso significava para o prestígio da empresa e, por acréscimo, de quem nela trabalhava.

A partir desse dia, a DESIGNAÇÃO e o SELO de “Empresa Certificada” passaram a constar em todo o lado onde o seu nome figurava: página na internet, jornais, revistas, anúncios, cartazes, cabeçalhos de cartas e faxes, cartões-de-visita... e por aí fora.


COMO atrás se diz, éramos periodicamente sujeitos a auditorias externas, num processo que envolvia, para nós, uma grande tensão psicológica, por temermos a possibilidade — bem real — de a empresa PERDER a QUALIFICAÇÃO, o que seria uma despromoção de consequências catastróficas, quanto mais não fosse pelo facto de isso ser publicitado no Boletim da APCER e, obviamente, perder o direito de exibir o respectivo SELO DE QUALIDADE.

 

II — POSTO tudo isso, é natural que os leitores se interroguem o que é que o assunto tem a ver com Lagos. A resposta é simples, pois está relacionada com a insatisfação que, nos últimos anos, existe em relação à recolha dos resíduos pela Algar, não só por parte dos cidadãos em geral como — e isso é a parte mais grave — pelas autarquias, incluindo a nossa, como recentemente sucedeu.

E AQUI volto atrás, ao tempo das auditorias em que fui agente activo (inclusivamente em várias que vim a fazer mais tarde, quando trabalhei por conta própria): é que uma das primeiras coisas que os auditores faziam era consultar o “Livro de Reclamações” e, obviamente, ver quais as “acções correctivas” tomadas no seu seguimento — sendo fácil de ver que, no caso de reclamações legítimas, recorrentes e graves, a empresa podia PERDER a tão preciosa QUALIFICAÇÃO.

No caso que nos interessa, a pergunta óbvia é, portanto, perceber o que se passa com a Algar, tendo em conta as reclamações de que tem sido alvo, das quais as mais recentes são verdadeiramente graves, pois foram feitas PUBLICAMENTE PELAS AUTARQUIAS da região (que, por sinal, são seus accionistas minoritários). Sim, como é que ela consegue manter — apesar de tudo o que se viu, vê e sabe — as qualificações máximas que exibe, não só na sua página da internet (de onde esta imagem foi tirada), como nos próprios ecopontos? Será que houve mudança de critérios, do “meu tempo” para agora? Não se zanguem, meus caros, é que «Eu só queria entender...» — como dizia o saudoso Jô Soares.

 

 

 

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