25.11.23

Grande Angular - 25

Por António Barreto

Hoje, 25 de Novembro, é dia de festa. Apesar de ser data controversa e detestada por alguns. Mas é natural que haja opiniões diferentes relativamente ao 25 de Novembro, sua importância e sua recordação. Ainda bem! Foi mesmo para isso, também para isso, que se fez o 25 de Novembro: para permitir que se tenham opiniões diferentes. Também há muita gente que não aprecia especialmente o 25 de Abril, mas tal não basta para que se apague a data.

 

Os que perderam, nesse dia de Novembro de 1975, choram e fazem o possível por esquecer. São, em geral, comunistas, outros de extrema-esquerda e militares revolucionários. Desses, uns estão hoje no PCP, alguns no Bloco de Esquerda e outros em sítio nenhum. 

 

Os que ganharam recordam com prazer, às vezes com orgulho. Uns estão hoje nos grandes partidos da democracia, o PS e o PSD, alguns em todo o sítio e outros em parte nenhuma.

 

Mas há grupos especiais e que merecem referência. Alguns militares moderados do MFA (Movimento das Forças Armadas) e uns tantos socialistas venceram então e têm vergonha hoje. Fazem o possível por esquecer. Não querem que se recorde, pois tal pode “abrir feridas”, dizem. É este grupo que merece ácida reflexão.

 

A polémica alimenta-se de ridícula comparação: qual é a data mais importante, o 25 de Abril ou o 25 de Novembro? É tão idiota a ideia que nem apetece perder tempo. Por todas as razões, o 25 de Abril é a principal data, a mãe de todas. Mas também há o 25 de Abril de 1975, dia das primeiras eleições livres, as constituintes, que revelaram a fraqueza dos revolucionários e afirmaram a vantagem dos democratas, assim como desviaram, para os eleitores, os poderes que se limitavam aos activistas. E ainda há o 25 de Abril de 1976, dia das eleições legislativas, alicerce do Estado democrático em vias de fundação. Entre estes 25, há o de Novembro, o motivo das polémicas, mas que entra, de pleno direito, nesta espécie de galeria. Neste último dia, derrotaram-se os revolucionários que queriam uma ditadura e que procuravam explicitamente impedir a democracia parlamentar.

 

Ao lado destas datas, ainda é possível acrescentar o 1º de Maio de 1974. É talvez o dia das maiores manifestações da história do país. Com a particularidade de não se manifestar contra ninguém, mas com a intenção de festejar a liberdade. Foi nesse dia que o “golpe de Estado” se transformou em levantamento popular. Foi nesse dia que a liberdade se socializou. Foi nesse dia que se percebeu que a democracia não seria outorgada, nem de cariz militar ou hipotecada aos movimentos revolucionários, antes seria de todos, do soberano, do povo. Ainda demorou muito. Ainda houve riscos, tentativas revanchistas e tentações totalitárias para implantar regimes de farsa, como uma “democracia avançada”, eufemismo para ditadura. Tivemos isso tudo, mas foi o 25 de Novembro que estabeleceu as fronteiras. 

 

É possível que, sem o 25 de Novembro, não houvesse necessariamente ditadura comunista ou militar. Era muito arriscado, mas teoricamente possível. O problema é que o maior risco ainda era a guerra civil e a divisão definitiva de portugueses. Nesse sentido, ao contrário do que se diz hoje em certas instâncias, o 25 de Novembro não é fracturante. Não foi na altura, nem a sua comemoração o é hoje. Pelo contrário, o 25 de Novembro impediu uma fractura radical, violenta e ameaçadora.

 

Além de tudo o mais, o 25 de Novembro contribuiu para um dos mais importantes traços da democracia portuguesa: afastou uma revolução e impediu uma restauração, sem vingança, sem novos presos, sem novas interdições, sem adiamentos eternos de eleições e sem vagas promessas de democracia. Deste ponto de vista, o 25 de Novembro e a democracia que se seguiu fizeram algo de único ou de raro na história recente: derrotaram uma revolução e não fizeram prisioneiros nem proibições. E muito menos mortos e feridos. A vaga das democracias europeias dos anos 1990 e seguintes deu exemplos notáveis de instauração pacífica do novo regime. É verdade. Mas não resultaram de processos exclusivamente internos, de revolução e derrube de ditaduras. Nem travaram uma revolução em curso. Na verdade, o apodrecimento do comunismo começou, sem revolução, na União Soviética e contagiou vizinhos e clientes.

 

Sabe-se que há gente de direita que vibra mais com a correcção de Novembro do que com início de Abril. Como há muitas pessoas de esquerda que sonham com o que se perdeu em Novembro. Tudo isso é normal e previsível. O problema não é o de quererem comemorar uma data e outra não. Nem o de saber por que querem festejar ou de que modo pretendem recordar. Os gostos discutem-se, é bom que assim seja. O problema também não é o de não querer comemorar. O problema é o de quem quer que os outros não comemorem. De quem não reconhece o valor nacional de uma data libertadora (Abril ou Novembro). E de quem quer impedir que as instituições democráticas festejem o que democrático é.

 

Como é sabido, os despotismos e as vocações ditatoriais, de esquerda ou direita, são muito exigentes na semântica. O politicamente correcto, por exemplo, é em parte uma luta por uma semântica aceite e outra condenada. Também neste caso estamos perante uma destas armadilhas de vocabulário. Para os candidatos a déspotas, Novembro não rima com democracia. Por isso, estes esforços incansáveis de pessoas e partidos contra a comemoração de Novembro em sede oficial, nas instituições. Chocante, todavia, é ver tantos que a Novembro muito devem aceitar o ditame comunista contra a vitória democrática daquela data. 

 

Alguns socialistas, em especial, têm enorme jeito para acrobacia e outras artes de contorção. Um partido que cresceu, em 1975, graças à luta contra o comunismo, acabou por não ter remorsos numa aliança com aquele partido. De modo parecido, um partido que sobreviveu graças ao 25 de Novembro, não vê com bons olhos os que o querem assinalar.

 

Em Portugal, em 1975, Novembro salvou Abril. Salvou a liberdade e a democracia. Permitiu a Constituição e as eleições. Prometeu o pluralismo, que garantiu. Não vingou, não matou, não prendeu, nem proibiu os responsáveis pela deriva autoritária e revolucionária. Sem Novembro, teríamos talvez a ditadura ou uma a guerra civil. Mas não a liberdade.

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Público, 25.11.2023

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24.11.23

UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO QUE ESTAMOS A VIVER

Por A. M. Galopim de Carvalho

Estamos a viver um tempo altamente preocupante, não só a nível internacional, como cá dentro deste “torrão” de iliteracia de quase tudo, mercê de um sistema educativo que deu e dá diplomas, mas não deu nem dá esse tudo que tanta falta nos faz. 

O poder do feiticeiro reside da ignorância dos seus irmãos tribais. Quer isto dizer que, quanto mais inculto for o povo, mais facilmente é dominado e, até, desprezado pelo poder. 

Tornámo-nos um país caído nas lutas entre aparelhos partidários, onde emergem políticos incompetentes e oportunistas, de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

Ao aproximar-se a data de comemorarmos os 50 anos de liberdade (apenas a de expressão, reunião, criação de partidos, associações e coisas assim) é com um sentimento de profunda decepção que me dou conta deste grande número de anos desaproveitados. É por demais evidente que não soubemos aproveitar a liberdade que nos foi oferecida, para erradicarmos muitos dos nossos atavismos civilizacionais e culturais. 

“O que é preciso é ter bons padrinhos”. 

“O gajo é que foi esperto, amanhou-se. Entrou de mãos a abanar e hoje anda de Mercedes”. 

“Estudar para quê? O que interessa é esperteza p’ró o negócio”. 

“São 230 euros, mas se for sem recibo, a gente fecha os olhos e só pagas 180”. 

“Quanto mais cedo vier a reforma, melhor”. 

Estas e outras frases e atitudes do desenrascanço, do enganar o Estado ou o patrão, ainda perduram em muitos dos nossos compatriotas. Como já escrevi tantas vezes e volto a escrever a generalidade da classe política a quem os Capitães de Abril, há quase 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas partidárias, nos compadrios e nas vantagens do poder, esqueceu-se completamente de facultar aos cidadãos cultura civilizacional, científica e humanística. Esqueceu-se? Ou entendeu que havia outras prioridades?

É evidente que a revolução iniciada com o 25 de Abril de 1974 nos trouxe grandes progressos materiais e sociais, por demais apontados, mas muito aquém do que poderia ter sido se as competências e as vontades tivessem sido outras.

Mas pouco ou nada mudámos nas mentalidades. Vimos um vislumbre de um real propósito de elevação do nível cultural e cívico dos portugueses no fugaz e efémero programa da 5ª Divisão de Estado-Maior-General das Forças Armadas, chefiada pelo saudoso primeiro-tenente médico Ramiro Correia, mas não vimos nada que se lhe comparasse em nenhum dos governos constitucionais destes cinquenta anos de democracia. Fez-nos falta a honestidade, o pensamento e a vontade de servir de Melo Antunes, o “capitão de Abril” que nos deixou cedo demais.

À semelhança do sempre esquecido mundo rural, as nossas cidades têm, ainda, uma lamentável percentagem de analfabetos funcionais, a par de uma classe média a que a escola não deu a educação, a formação e a preparação essenciais a uma cidadania plena, antes. Uma escola que, desde há muito, por falta de visão política, atravessa uma crise, sem solução à vista, 

As conquistas na segurança social, nos cuidados de saúde, na ciência, no ensino e no apoio à cultura conseguidas na vivência em democracia que se seguiu à Revolução dos Cravos, estão a fugir da nossa vida colectiva como areia por entre os dedos. Só a justiça se mantém intacta no seu pedestal.

Perdemos uma parte significativa da independência nacional e assistimos à asfixia e destruição de muitas das nossas valências económicas. Estamos a viver tempos de miséria e, até, de fome para um número cada vez maior de famílias, de miserável abandono dos idosos, de corrupção descarada e impune e de aumento do número e da riqueza dos ricos. A chamada classe média está a afundar-se, o desemprego está a ressurgir e é mais um incentivo crescente à igualmente dramática emigração de uma juventude qualificada.

Tudo isto e mais alguma coisa foi sabiamente previsto por Natália Correia (1923-1993), grande portuguesa, que deixou nome na poesia e na política (deputada à Assembleia da República entre 1980 e 1991). Estou muito longe de ter lido a obra desta saudosa açoriana de São Miguel, mas o que li, em especial, poesia, sempre me mostrou, pela excelência do conteúdo e da forma, a mulher com quem tive o privilégio de conviver nos últimos anos da sua vida. Quando a procurei, em começos da década de 90 eu era um profissional, a tempo inteiro, com 30 anos de dedicação exclusiva a uma ciência demasiado terra-a-terra - a geologia - em busca de um outro caminho que tinha o dela e de muitos outros mestres da palavra, por modelo. Prenderam-me a esta lutadora a intransigência com que defendia a liberdade, a solidariedade, a justiça e a cultura, o desassombro, a elevação e a beleza, a força e a energia, que usou na palavra falada e escrita, características que sempre igualei às do também grande e saudoso Ary dos Santos.

Apraz-me aqui e agora transcrever, pelo que têm de impressionante realismo, algumas premonições desta grande Senhora, trazidas a público por Fernando Dacosta em “O Botequim da Liberdade” (Casa das Letras, 2013).

"Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente".

“O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida”.

"Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a pôr gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão".

"As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo”.

“Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres”.

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23.11.23

No "Correio de Lagos" de Outubro de 2023

 «Quem se assemelha se emparelha»

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«Quem nos diz as verdades não são os amigos, mas sim os inimigos» — Plutarco — «Como Tirar Proveito dos Inimigos»

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A CRER no que Yuval Harari nos conta num dos seus livros, Arthur Miller (1915-2005) terá dito, um dia, que não acreditava que Bush ganhasse as eleições, pois não conhecia ninguém que votasse nele. Ora, como se sabe, não só Bush as ganhou, como o fez duas vezes seguidas, o que nos leva a pensar como é que alguém, certamente extremamente culto (e, ainda para mais, norte-americano), pôde cometer um erro desses — a menos que tenhamos em conta a sua idade, dado que faleceu aos 90 anos, e precisamente no da reeleição do invasor do Iraque. Mas a explicação está na própria frase, pois quando o autor de “Os Inadaptados” se referia às “pessoas que conhecia”, certamente estava a falar daquelas que eram das suas relações mais próximas. Miller estaria, pois, capturado por uma realidade a que o mesmo Harari chama “Silos sem janelas”, um universo em que as pessoas se fecham num mundo confortável, apenas composto pelas que pensam como elas — algo que, hoje em dia, nos é familiar em qualquer rede social, onde as pessoas se “babam” com “likes”, “emojis” e partilhas, ignorando, insultando ou mesmo bloqueando quem se atreva a manifestar opinião diferente, especialmente se estiverem em causa assuntos como Política, Religião, Futebol ou (mais recentemente) “Costumes”.

 

E VEM a propósito disto uma experiência em que há algum tempo me vi envolvido, embora de forma totalmente involuntária, e que passo a contar:

Um dia, tinha eu acabado de publicar, numa das páginas do Facebook dedicadas a Lagos, o habitual gráfico do Ministério do Ambiente que nos vai dando conta do estado dramático da Bravura (que está, à data de fecho desta crónica, no mínimo histórico de 7,5%!) quando, ao descer à rua, me deparei com dois cães que pareciam perdidos. Então, tirei-lhes uma foto, e afixei na mesma rede social o habitual aviso que, por sinal, ficou junto do anterior. Pois... Ficou, mas não por muito tempo, pois os algoritmos do Facebook atiraram o primeiro ‘post’ para o fim de tudo, e deram ao segundo honras de ‘primeira página’ pois este, como era de prever, estava a breve trecho cheio de comentários.
Quanto ao ‘post’ da água, que deixei de acompanhar porque ficou praticamente invisível, deve ter tido os habituais ‘likes’ dos amigos que costumam ter essa simpatia, e deve ter recebido, também, os habituais insultos dos que me chamam “Profeta da Desgraça”, e que fazem parte do regimento dos “medíocres que estão sempre satisfeitos” a que se referia o autor do Princípio de Peter.


MAS NADA disso é novo para mim, pois quando falo acerca dos problemas da Cidade com as pessoas com quem tenho mais confiança, estamos de acordo em colocar à cabeça a caótica distribuição de correspondência pelos CTT, e em segundo lugar a deficiente recolha do lixo pela Algar. Depois desses, e variando de pessoa para pessoa na importância que cada uma lhes dá, aparecem a previsível Escassez de Água, o Desprezo pelo Património, a Desarborização, o Estacionamento Selvagem, o Estado dos Passeios... e mais alguns outros que primam pela ausência nas redes sociais de Lagos.

 

APOSTILA: E já esta crónica estava terminada, quando surgiu uma cena bizarra: para satisfazer os que me acusam de “só dizer mal”, acolhi de bom grado uma informação de um leitor segundo a qual no parque de estacionamento da Docapesca estavam a ser instalados painéis fotovoltaicos nos abrigos para carros. Essa informação veio acompanhada de uma foto, e eu sugeri a quem ma enviou que a mandasse para a secção “Buracos & Companhia” deste jornal, que certamente lhe daria destaque, com um “De Saudar!”. No entanto, isso não vai acontecer porque sucedeu o seguinte:
No passado dia 9, ao passar pelas referidas instalações, fui confirmar a informação do leitor, aproveitando para fazer uma foto mais elucidativa, com a ideia de também a publicar aqui, com DESTAQUE E ELOGIO. Pois bem, fui abordado por um senhor que quis saber porque é que eu estava a tirar fotografias, e esclarecendo-me que ali era “Propriedade Privada”, pelo que eu só o poderia fazer com autorização, que poderia pedir por ‘e-mail’. Claro que não o vou fazer, pois ainda espero resposta ao que para lá enviei em finais do ano passado a propósito do estado extremamente perigoso do cais flutuante existente ali perto. 

Quanto ao facto de aquilo ser “propriedade privada”, a Docapesca dá-nos conta de que — e passo a citar: «A Docapesca – Portos e Lotas, S.A. é uma empresa do Setor Empresarial do Estado, tutelada pelo Ministério da Agricultura e Alimentação, etc». Que diabo!, então já nem se pode DIZER BEM?

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“Correio de Lagos” de Outubro de 2023

 

 

 

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21.11.23

A DEGRADAÇÃO DO NOSSO ENSINO PÚBLICO

Por A. M. Galopim de Carvalho

Pode parecer que me repito, mas o problema é grave e parece não ter fim à vista. Tudo o que já se disse e escreveu tem de continuar a ser dito e escrito.

A par das minhas obrigações profissionais, sempre mantive estreita ligação com a escola pública e os seus professores. É com estes que sempre alinhei e continuarei a alinhar enquanto tiver voz. A luta dos professores, numa determinação e intensidade nunca vista, tem trazido, ao de cima, a degradação a que chegou este grande pilar de qualquer sociedade democrática. 

 

Não é demais lembrar que, à semelhança do que se passou com a Primeira República, a classe política, no seu todo, a quem os Capitães de Abril, há quase 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, à sociedade que libertou. Entre os sectores da vida nacional que nada beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia está a educação. E, aqui, a ESCOLA FALHOU COMPLETAMENTE. Se não mudarmos grande número dos paradigmas que têm sido os nossos, não merecemos os cravos que os militares de Abril nos ofereceram.

 

A iliteracia cultural e científica, mesmo aos níveis mais básicos, de uma parcela importante da nossa população, a sucessiva e elevada abstenção em actos eleitorais, assim como a irracionalidade e violência associada ao futebol, são a prova provada desse falhanço.

 

É muito grande a parcela da nossa população, a quem a ESCOLA DEU DIPLOMAS, MAS NÃO DEU A EDUCAÇÃO, A FORMAÇÃO E A PREPARAÇÃO ESSENCIAIS A UMA CIDADANIA PLENA. Educação, formação e preparação, três grandes défices que o Dr. António Costa, em começos do seu mandato, como Primeiro-Ministro, há oito anos, disse serem sua grande preocupação. Preocupação que, infelizmente, pouco ou nada mudou. Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a História já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. 

No que respeita ao nível e exigência de ensino nas nossas escolas, não aprendemos nada com o ideal da Instrução Pública posto em prática na Primeira República. No preâmbulo do Decreto de 29 de Março de 1911, lê-se: “Portugal precisa de fazer cidadãos, essa matéria-prima de todas as pátrias”.

 

Reafirmo que considero os professores, incluindo educadores, os mais importantes elementos da sociedade e, uma vez mais, que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância. Antes de me pronunciar por esta luta que, a todas as horas, nos entra em casa, através de todos os canais de televisão nacionais, detenhamo-nos na referida degradação, afirmando, desde já, que não estou aqui para agradar ou desagradar a quem quer que seja. Estou apenas a revelar a análise que faço de um problema nacional que sempre me preocupou.

A degradação do nosso ensino público é uma deplorável e angustiante realidade. Todos sabemos que se alargou a escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12º ano. E isso foi bom. Foi, mesmo, muito bom. No meu tempo, a escolaridade obrigatória e gratuita era a chamada 3ª classe (actual 3º ano). Todos sabemos que o parque escolar deu um grande pulo em frente, comparativamente ao de um passado que nos envergonhava. Mas a verdade é que não chega. Está “a léguas” de chegar.

Com base nas classificações (os “rankings”, como se tem dito) oficialmente divulgadas, é para mim claro que escolas públicas más e alunos maus, em quantidade preocupante, são, entre nós, uma vergonhosa realidade. Uma realidade que põe a nu a muito pouca atenção que tem sido dada a este sector, por parte dos sucessivos governos do Portugal de Abril. Para vergonha nossa, estas classificações são cada vez mais preocupantes, mesmo contando com a desnatação dos programas e as facilidades nos exames. Percebe-se, assim porque é que continuamos na cauda da Europa. Estamos a assistir à destruição do futuro dos nossos filhos e netos e as causas não são difíceis de encontrar:

1 - As dotações orçamentais têm sido e continuam a ser insuficientes para a importância deste sector na sociedade. Radica aqui a causa dos baixos salários de todos os profissionais de ensino, dos professores e educadores aos agora chamados «assistentes operacionais», passando pelos administrativos, e tudo mais que importa melhorar;

2 – Entre nós, uns ministros fazem e outros, logo a seguir, desfazem. O drama é que a escola exige políticas estruturais continuadas. Não se planeia nada, resolve-se tudo na urgência e acrescenta-se cada vez mais burocracia e controle. Os titulares da pasta entram e saem, mas a poderosa e impenetrável "máquina ministerial" tem lugar assegurado até à aposentação, dominando, entre outros, a concepção e elaboração do que eram programas, que foram extintos, e de que restam umas indefinidas e genéricas «aprendizagens essenciais», e dos questionários dos exames nacionais;

3 - A preparação de professores tem muito que se lhe diga e o sistema de avaliações, demasiado injusto, não ajuda a elevar o nível do ensino. Avança-se por quotas e não por mérito. Praticamente, nada avalia. Lembre-se que propostas de avaliações a sério têm sido rejeitadas por parte dos muitos que não querem ou receiam ser avaliados. Neste capítulo, os maus professores, que os há e não são assim tão poucos, os tais que recusam as avaliações a sério e veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação, têm contado com o apoio dos sindicatos, que põem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais; 

4 – O chorudo negócio das editoras produze e comercializa os manuais escolares, sem uma rigorosa supervisão científica e pedagógica, em disciplinas como geologia, por exemplo. São muitos os que se repetem acriticamente, com noções estereotipadas e, por vezes, com erros, tantas vezes denunciados; 

5 - Os pais ou encarregados de educação que não estão à altura das suas responsabilidades. Pais e encarregados de educação, já instruídos e educados no pós-Revolução de Abril, a quem a escola deu, igualmente, muito pouco;

6 - As escolas empobreceram e os professores são contratados à hora. Os funcionários vêm do Instituto do Emprego e Formação Profissional e são precários e mal pagos. Deixou de haver equipas pedagógicas, com professores de apoio, animadores, psicólogos. Tudo é escasso. Voltou-se às aulas expositivas e às turmas numerosas. Tudo numa permanente política de poupança.

7 - A escola progressivamente mais empobrecida, deixou de ser uma "comunidade educativa". É o ministério que define tudo sobre objectivos, matérias e conteúdos. Os agrupamentos de escolas dispõem de uma mecânica que obriga muitos professores a correrem de umas para outras, sem trabalho em equipa. Os professores só reúnem para dar as avaliações. 

8 - A carga burocrática que se abate sobre os docentes, em planos, arrevesados descritivos de metodologias e estratégias, «adaptações» de critérios de avaliação e obrigatoriedade de justificações que se traduzem em inflação de classificações para obter sucesso estatístico. Os "bons" professores fazem maravilhas. mas tudo está montado para trabalharem como lhes mandam.

É urgente que o Governo de mãos dadas com os bons professores (os que não temem ser avaliados a sério, e são muitos) comece uma campanha poderosa, com base na verdade e no dever patriótico, que desmascare o que tiver de ser desmascarado e varra o que tiver de ser varrido.

Trata-se de um imperativo nacional que os portugueses agradecem e hão de premiar os que conseguirem levá-lo a bom termo.

 

Pergunto muitas vezes que infelicidade caiu sobre uma significativa parcela do nosso povo, que rejeita, com o sorriso da ingenuidade ou da iliteracia, tudo o que convide a pensar, a reflectir sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia. Um mundo, tantas vezes, nas mãos de políticos incompetentes e oportunistas de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça. Uma parcela que bebe toda a alienação que lhe é servida de bandeja por uma comunicação social, em grande parte, prisioneira de interesses ligados ao grande capital.

 

Tenho pena do Ministro da Educação, ao vê-lo vaiado por multidões de manifestantes. Acompanho o seu desconforto no papel de escudo do seu próprio governo face à pressão reivindicativa de professores, pais e alunos. É por demais evidente que o Dr. João Costa vai para a mesa das negociações com os representantes dos professores, bem ciente das “linhas vermelhas” que não pode ultrapassar ou, melhor dizendo, que o ministro da Finanças lhe impõe. Mas o que me vem à ideia, é que ele as aceita, porque, caso contrário, já teria “batido com a porta”. É minha convicção que os temas ou pontos em debate, todos, sem excepção, não passam de remendos num edifício obsoleto, de há muito a precisar de ser demolido de raiz para, em seu lugar, surgir outro, concebido e levado a cabo, numa profícua colaboração entre governos e oposições, para durar três ou mais legislaturas e que envolva gente verdadeiramente capaz de o concretizar.

 

Cada vez há menos interessados e seguir a profissão e os que nela labutam só esperam reformar-se logo que a idade o permita.

 

Todos sabemos que há boas e excelentes escolas públicas, que há bons e excelentes professores, mas o essencial do problema que temos de enfrentar reside na quantidade preocupante de escolas más e de alunos maus e esse problema só se resolve com uma verdadeira e interessada política de Educação. É, pois, urgente olhar para esta realidade e haver vontade para promover uma profunda avaliação e consequente reformulação desta que é uma das mais importantes pastas da governação. Repito dizendo, uma vez mais, que esta reformulação tem de passar por um muito bem estudado programa, concebido para duas ou mais legislaturas e acordado entre governo e oposições. Quero acreditar, que uma tal política há de aparecer, mas, o drama é que não vejo, nem no PS nem nos restantes partidos, quaisquer pensamentos ou propostas políticas sobre Educação e Escola pública.

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18.11.23

Grande Angular - Corrupção e impunidade

Por António Barreto

Nos anos a vir e nos seguintes, assim como na história futura, esta semana, estes tempos e os próximos ficarão para sempre. Inesquecíveis. De triste recordação. E de inquietação crescente. Entraram em crise elementos básicos da confiança e da esperança. A certeza das instituições, a serenidade das elites e a segurança da justiça falharam. Ou não deram garantias. O Estado de Direito foi posto explicitamente em crise.

 

Descobrem-se em abundância casos de corrupção e favoritismo. São ordenadas detenções apressadas e mal fundamentadas. Reinam as fugas de informação e as violações do segredo de justiça. Uma reunião confidencial do Conselho de Estado, um dos últimos redutos da serenidade, é desvendada. O Primeiro ministro demite-se de modo incompreensível. A dissolução do Parlamento não é cabalmente justificada. As decisões do Ministério Público e da Procuradora Geral revelam ligeireza e leviandade. Um Parlamento dissolvido, a prazo, aprova um orçamento de Estado, a correr, antes de partir para campanha eleitoral. Um governo demitido, a prazo, aprova aumentos da Função Publica e do salário mínimo. Um ministro demitido, a prazo, pretende resolver, à pressa, a crise dos médicos e da saúde.

 

O Primeiro-ministro e outros governantes sugerem que, em certos casos, a necessidade política e as exigências da vida económica podem obrigar a ponderar o sentido da aplicação da lei. Parece que basta o rigor legal na decisão, sendo que a aplicação prática das leis obedeceria a outros critérios, designadamente do interesse público definido pelos próprios políticos. É possível que nunca se tenha ido tão longe, nas últimas décadas, no desrespeito pelo Estado de Direito.

 

Por vezes importa tomar um pouco de distância. Como se pode corrigir? Que se pode fazer para melhorar, punir e prevenir? Pouco. Muito pouco. Talvez nada a curto prazo. Talvez alguma coisa a longo prazo. Com outras gerações. Mais leis, não vale a pena. Já temos e a mais. Formar novo pessoal político e novos magistrados? É possível. Demora décadas e coloca sempre o problema existencial: quem forma o pessoal e quem forma os formadores? Liquidar a democracia? Não resulta, pois já sabemos que a ditadura e o populismo são, sempre e em todo o sítio, piores do que a democracia.

 

A nossa democracia não conseguiu, nas áreas da corrupção e da justiça, ser melhor do que a ditadura. Tem mil vantagens. É superior em muitos aspectos, na liberdade, nos direitos individuais, na dignidade das pessoas, na cultura, na educação, no trabalho e na saúde. Mas na justiça e na corrupção não consegue ser melhor. Até porque, com o capitalismo, a democracia e a sociedade aberta, há mais corrupção e mais interesses. Mais e mais democratizados. O nacionalismo demagógico, o justicialismo virtuoso e a ditadura puritana são sempre e serão piores do que a democracia. A história de Portugal e do mundo demonstra-o nitidamente.

 

A situação, na justiça e na política, por causa da corrupção e do favoritismo, está má. E vai ficar pior. E não tem cura tão cedo. Pessimismo? Nem por isso. Realismo, talvez. A sociedade e as instituições não são melhores do que as classes dirigentes e ilustradas. Nem melhores do que os políticos. E estes não são melhores do que a sociedade em que têm origem. E é mesmo isso que é crítico, é esse o problema: das classes dirigentes, das elites, esperava-se mais e melhor!

 

Portugal sofre, há décadas e séculos, de peste de país pobre, de povo sem liberdade e de país dependente do Governo. Sem liberdade, sem democracia, sem imprensa livre, sem empresas poderosas, sem mercado e sem sociedade aberta, cultiva-se facilmente a corrupção, o nepotismo e o favoritismo. A “cunha” e o “jeitinho” fazem parte do quotidiano. A “palavrinha” e o “empenho” são modos de vida. A nomeação de parentes e de correligionários também. Passar à frente nas filas de espera ou nas competições é usual. Abrir concursos “com fotografia”, isto é, que só podem ser ganhos por pessoa certa, é uma arte. Rechear os gabinetes com assessores, consultores e especialistas, pagos pelo erário público, mas para benefício do próprio, é aceitável.

 

As modalidades de pequena e média corrupção abundam e são bem conhecidas. Uso privado de carros de função, realização de obras domésticas à custa de dinheiros públicos, nomeação de filhos e afilhados, pagamento de refeições caras, luvas de grandes negócios, estágios e cursos superiores em instituições reputadas, percentagens depositadas “lá fora” e avenças estranhas, de tudo um pouco, os portugueses conhecem bem. Infelizmente, parece que também vivem bem com isso. O que é triste e desesperante é verificar que os raros mecanismos de combate à corrupção e ao favoritismo são a inveja e a concorrência. Quando são vários os predadores e só uns os beneficiários, é quase certo que os outros arranjarão maneira de denunciar. Em nome do bem público, alegam.

 

O problema, não sabemos bem se sobretudo nosso ou se partilhamos com outros, é o da dualidade de conceitos. Por um lado, como no futebol, o que os “nossos” fazem está bem, o que é da autoria dos “outros” é condenável. Mais inquietante é a diferença moral entre a esfera privada e a partidária. Para muitos, a verdadeira corrupção é aquela de que se aproveitam os indivíduos, as suas famílias e os seus amigos. O que é para proveito pessoal é condenado e pode ser exposto. O que é para uso do partido não tem o mesmo tratamento: a “ética republicana” e a legitimidade política garantem que é justa a distribuição de despojos e razoável o benefício partidário. Quer isto dizer que, para muitos, as eleições democráticas conferem uma legitimidade a toda a prova, que se sobrepõe a outros critérios morais ou legais. Por outras palavras, quem está no poder, usa-o.

 

É este sentido de legitimidade que explica, em parte, o facto de tantas pessoas inteligentes, sabedoras, por vezes competentes, eventualmente cultas e experientes terem comportamentos condenáveis sem recear a lei ou a opinião. É o pior de tudo: o sentido da impunidade. A certeza de que o voto dá direitos e de que a democracia oferece vantagens pessoais e partidárias. O “quero, posso e mando” do soba ou do ditador não é pior do que o “quero, posso e mando” do democrata eleito…

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Público, 18.11.2023

 

 

 

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16.11.23

No "Correio de Lagos" de Outubro de 2023



 

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11.11.23

Grande Angular - Um verdadeiro desastre!

Por António Barreto

É o maior desbaratamento da história da democracia portuguesa. O governo tinha tudo o que era preciso. Um Primeiro-ministro hábil e habilidoso. Uma maioria absoluta. Um partido de governo coeso e unido. Um Presidente da República cooperante e colaborador como nunca se tinha visto. As esquerdas destroçadas. O Chega a subir, não de mais, mas o suficiente para diminuir o PSD. Uma oposição tépida e desorientada. Um Programa de financiamento europeu de montante inimaginável. Uma situação económica e financeira melhor do que se esperava ainda há pouco tempo. O erário público com uma folga confortável. A admiração, o respeito, a necessidade e a dependência das academias, da administração, das instituições e da imprensa. A colaboração do capital internacional. A atenção dos empresários. E os autarcas em fila de peditório.

 

Por isto tudo, não se percebia bem a razão pela qual o governo não conseguia tratar da situação social que não corria muito bem. As lutas e as greves nos hospitais, nas escolas e nos tribunais persistiam e os respectivos ministros não conseguiam tratar nem dialogar. Os serviços públicos em geral davam claros sinais de que se aproximava o colapso, com enormes prejuízos para a população. Os aumentos do custo de vida e a inflação ameaçavam o bem-estar de grande parte das famílias. A crise na habitação atingia alturas de quase calamidade. Alguns ministérios ressentiam-se da mediocridade dos seus ministros, com relevo para a saúde, as infra-estruturas, a educação e a justiça. O governo sabia distribuir, mas não organizar e criar.

 

Em oito anos de governo, várias perturbações gravíssimas ameaçaram tudo. A pandemia dominou a vida pública durante dois anos. A guerra na Ucrânia destruiu a paz europeia, com efeitos nefastos para todos os países. Agora, a guerra na Palestina e em Israel revelou novas ameaças para o mundo, cujas consequências estão ainda longe de ser medidas.

 

Não foram, todavia, as dificuldades sociais internas nem as perturbações internacionais que deram cabo do governo e da estabilidade política. Foram questões morais, foi a falta de seriedade, foi o nepotismo partidário, foi a incompetência de vários ministros, foram os escandalosos abusos de poder dos ministros nas questões do aeroporto, da TAP, do lítio e de outros grandes projectos. Foi a auto-suficiência de ministros e de dirigentes partidários que se sentiam capazes de tudo, do melhor e do pior e que julgavam que podiam tratar da felicidade dos outros e da riqueza de alguns. Foi a incapacidade de servir o país e os cidadãos.

 

A causa da crise não foi social, nem económica, muito menos internacional. Foi o mau governo. O bem e o mal andam de braço dado! O que parecia um bom governo era feito de maus ministros. Em certos casos, gente vaidosa e prepotente. Noutros, medíocres fantasmas.

 

Esta crise surpreendeu toda a gente. Não só a crise, como também o modo como muitos reagiram. Alguns comportamentos das autoridades deixaram perplexos os cidadãos. O Presidente da República aceita o pedido de demissão, mas não demite, para já. Anuncia a dissolução do Parlamento, mas não dissolve, por agora. Apesar de anunciar a sua intenção de demitir o governo e dissolver o Parlamento, marca eleições! Será que estamos perante a criação de novos dispositivos constitucionais, tal como a declaração de intenções?

 

O Presidente da República afirma que é necessário aprovar o orçamento de Estado e promulgar várias leis e dispositivos legais necessários à economia. Por isso, afirma que demite e dissolve, mas só o fará daqui a umas semanas! Entretanto, o governo e o Parlamento exploram o mais possível este extraordinário período de terra de ninguém e de tempo de todos. Sem orçamento de Estado aprovado, depois de aceite o pedido de demissão do Primeiro ministro e de marcadas as eleições sem dissolução prévia, o Conselho de Ministros aprova, a correr, o maior aumento da história do salário mínimo! Antes de estar aprovado o orçamento de Estado, já depois de o pedido de demissão do Primeiro ministro ter sido aceite e depois de o Presidente da República ter declarado que dissolveria o Parlamento, o Conselho de Ministros aprova aumentos salariais para a Função Pública.

 

Esta crise ainda revela fenómenos estranhos. Um Primeiro ministro, cuja pedido de demissão foi aceite, propõe ele próprio o seu sucessor! O Parlamento é ignorado em todo este processo. O partido maioritário é marginalizado. O grupo parlamentar do partido maioritário é ignorado pelo chefe do partido, pelo Primeiro-ministro e pelo Presidente da República. O presidente não se sente obrigado a pedir ao partido maioritário (e não apenas ao Primeiro ministro demitido…) que indique, se for capaz, um novo Primeiro-ministro, como se faz em países com experiência democrática. Todos concordam, estranhamente, com a ideia de que o governo da nação não é do Parlamento, nem do partido maioritário, mas sim do chefe do partido.

 

Outros factos surpreendentes são visíveis para todos. Circulam nos jornais, nas televisões e nas redes centenas de transcrições de interrogatórios, de declarações, de despachos confidenciais e de escutas telefónicas. A Procuradora geral da República utiliza formas sibilinas e estranhas à clareza do Direito e ao respeito pela dignidade das pessoas, com o que desencadeia uma crise política sem precedentes. Se não tiver razão, deve ser banida e afastada. Se tiver razão, tem de mudar o seu estilo, dado que o actual não é próprio da democracia e da justiça.

 

Mais ainda do que noutros tempos, vamos ter meses sem governo pleno, sem Parlamento completo, sem orçamento a sério, sem novo programa… O próximo governo vai querer mudar e alterar. Não há costumes nem tradição suficientes para poder viver uns tempos sem governo ou com pouco governo. Tudo depende do Estado e do governo. Vão ser precisos meses para demitir, dissolver, convocar, realizar congressos, estabelecer listas de candidatos, sanear uns, promover outros, fazer campanha, eleger, apurar, formar governo e ir ao Parlamento. Sem orçamento, sem autonomia financeira e sem autoridade de serviço público. Há países onde é possível viver meses e meses sem novo governo e sem novo parlamento em plenas funções. Aqui, não. Os prazos legais são absurdos. Os costumes obsoletos. As regras fantasmagóricas.

 

É assim que os portugueses vivem.

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Público, 11.11.2023

 

 

 

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6.11.23

VIDAS PETRIFICADAS


Por A. M. Galopim de Carvalho

Fósseis e fossilização

Fóssil (do latim fossilis, que quer dizer desenterrado), é hoje um conceito amplamente vulgarizado, aprendido nos bancos da escola, nos museus de História Natural ou em séries televisivas, apresentado como todo e qualquer vestígio identificável, corpóreo ou de actividade orgânica, de um ser do passado, chegado até nós, conservado no seio de uma rocha, portanto, em contexto geológico.

Os geólogos pioneiros davam-lhes o sugestivo nome de petrificados, dado que, na grande maioria dos casos, são vestígios de antigos animais e plantas transformados em pedra.

Animais e plantas do passado, que constituem o objeto de estudo da Paleontologia (do grego palaiós, que quer dizer antigo, ontos que significa ser, e logos, que alude a estudo).

O vocábulo “paleontologia” foi usado, pela primeira vez, em 1882, pelo zoólogo e anatomista francês, Henri Marie Ducrotay de Blanville (1777-1850), editor do Journal de Phisique

 

Em Paleontologia fala-se de somatofósseis (do grego soma, -atos, que significa corpo) sempre que (1) os achados correspondem à totalidade do corpo do ser, o que é relativamente raro, (2) os apenas representados por partes ou restos maiores ou menores do seu corpo (ossos, dentes, concha, carapaças, troncos, folhas) o que é frequente, e ainda, (3) os moldes desses corpos ou partes deles deixados na rocha que o envolveu.

São icnofósseis (do grego ichnós, que significa traço, marca) os vestígios da sua existência, como são as pegadas e outros rastos, as dentadas e perfurações em carapaças, os gastrólitos (pedras que ingeriam para ajudar a triturar os alimentos, no estômago, à semelhança da moela nas galinhas), os ovos e os coprólitos (excrementos fossilizados) e outros vestígios de actividade orgânica.

 

Designam-se por macrofósseis todos aqueles que podem ser estudados à vista desarmada e por microfósseisos cujo estudo tem de ser feito lupa ou ao microscópio. Destes, uns são organismos de dimensões submilimétricas (foraminíferos, ostracodos, acritarcos, diatomáceas, carófitas) a nanométricas, como são os nanofósseis calcários (cocólitos de cocolitoforídeos). Outros são partes muito pequenas de organismos de maiores dimensões (e.g. espículas de esponjas e ascídias, otólitos de peixe, escamas dérmicas de seláceos).

 

Entende-se por fossilização a passagem de um corpo de um ser vivo, ou parte ao respectivo fóssil. Para tal é necessário tenham ficado rapidamente protegidos contra os agentes destruidores, nomeadamente, o oxigénio do ar. Assim, é necessário que tenham sido imediatamente cobertos pelos materiais em sedimentação. 

 

Geralmente fossilizam com maior frequência as partes duras, esqueléticas, ou os seus fragmentos, como ossos, dentes, carapaças, conchas, escamas, etc., que são alvo de mineralização por certos elementos químicos, minerais, como carbonato de cálcio (calcite), sulfureto de ferro (pirite), fosfato de cálcio (apatite) ou dióxido de silício ou sílica (opala, calcedónia e quartzo microcristalino). Ficando mais resistentes, conservam-se melhor. Fala-se, assim, de calcitização, piritização, fosfatização e silicificação. Um exemplo particular de mineralização é a substituição da matéria orgânica dos tecidos lenhosos de plantas por sílica, quer sob a forma de calcedónia, quer sob a de opala (xilopala), de que são exemplos os troncos de árvores silicificados, de idade triásica, do Parque Nacional da Floresta Petrificada, no Arizona (EUA). Há, todavia, casos, embora raros, em que fossilizaram as partes moles. Esta ocorre quando o ambiente sedimentar é muito rico em matéria orgânica que, na ausência de oxigénio, permite que alguns órgãos ou partes não esqueléticas fiquem preservados no sedimento. Um exemplo é do contorno do próprio corpo do animal bem evidente nos ictiossáurios do Jurássico de Inglaterra). 

 

mumificação corresponde preservação parcial ou total do corpo do ser, devido à sua inclusão em substâncias que impedem ou minimizam o processo normal de decomposição, como são os asfaltos, as resinas e o gelo.

São conhecidos fósseis de rinocerontes mumificados, em asfalto, nos Cárpatos orientais e em La Brea (Califórnia, E.U.A.), de mamutes congelados no permafrost (solo permanentemente gelado ou pergelissolo) da Sibéria e de insectos e outros artrópodes aprisionados em âmbar (uma resina fóssil). 

 

incarbonização é um tipo de fossilização, muito particular, que consiste no enriquecimento progressivo em carbono, relativamente aos outros componentes do corpo fossilizado, via de regra, vegetal. Esta transformação tem lugar ao abrigo do ar e nela participam bactérias aneróbias. Os carvões fósseis, como a lenhite, a hulha e a antracite, são exemplo de diferentes graus de incarbonização e atestam a importância deste processo ao longo da história da Terra,

 

moldagem resulta do preenchimento interno das partes duras do ser vivo por sedimentos, ou da moldagem da face externa dessas mesmas partes. 

 

Conhecem-se fósseis que só ocorrem em rochas geradas em determinados ambientes ou fácies. Tal acontece porque os indivíduos que lhe deram origem ocupavam um habitat muito restrito. São os fósseis de fácies,particularmente úteis em reconstituições paleoambientais.

 

Fósseis correspondentes a espécies de existência efémera, à escala geológica, têm grande utilidade em correlações cronológicas, em estratigrafia, pois estão confinados a intervalos de tempo muito restritos, e, portanto, com particular utilidade em datação de idade relativa por via da biostratigrafia, ou absoluta por via da biocronologia). São os fósseis de idade ou indicadores biostratigráficos e têm tanto mais interesse estratigráfico quanto maior tenha sido a expansão do respectivo ser, à escala global, e quanto melhor tenha sido a sua capacidade de fossilização, aspectos que determinam a sua abundância. 

 

Ao invés dos fósseis de idade, há outros de grande distribuição vertical (no tempo) e, portanto, sem grande interesse em geocronologia relativa. Correspondem a seres que se mantiveram praticamente invariantes ao longo dos tempos, alguns dos quais chegaram até nós. Entre outros, são exemplos o Nautilus (cefalópode), o Latimeria (celacanto), as baratas (Arthropleura) e a Ginkgo biloba (uma árvore). São as chamadas formas pancrónicas, cujos vestígios fossilizados recuam a muitas dezenas e, mesmo, a centenas de milhões de anos.

 

Os mais antigos

São conhecidos testemunhos de seres muito antigos, atribuídas a cianobactérias, identificadas em rochas sedimentares do Arcaico da Suazilândia, com cerca de 3000 Ma. Diga-se, a propósito que o Arcaico (do grego arkhé, principio ou origem) é o período da história da Terra com mais de 2500 Ma. 

Embora não tenham deixado fósseis, no sentido habitual do termo, outros seres rudimentares, geradores de estruturas afins, estão na origem de carbono orgânico em rochas sedimentares da Austrália, com 3500 Ma, e da Gronelândia, com cerca de 3700 Ma.

A vida ao longo do Arcaico e do Proterozóico esteve confinada ao mar, representada, sobretudo, por bactérias e algas dificilmente fossilizáveis. Diga-se, a propósito, que o Proterozóico (do grego proterós, anterior, e zoo, animal), é o intervalo de tempo da história da Terra compreendido entre 2500 e 539 Ma 

A primeira e a mais célebre ocorrência do surgimento dos metazoários (animais pluricelulares) foi encontrada no Proterozóico superior dos Montes Ediacara, no sul da Austrália, de idade compreendida entre 635 e 539 Ma. De corpo mole e sem partes esqueléticas, a fossilização destes seres primitivos (medusas, penas-do-mar, entre outros) é um acontecimento raro e de grande importância. 

A grande raridade de fósseis no Precâmbrico, isto é, o conjunto do Arcaico e do Proterozóico (os primeiros 4028 dos 4567 Ma de idade do nosso planeta, ou seja, cerca de 90%), deve-se à inexistência de seres com esqueleto. As substâncias construtoras de esqueletos (quitina, carbonato de cálcio, sílica e fosfato de cálcio) só começaram a ser elaboradas a partir de um dado nível de oxigénio na atmosfera, estimado entre 3 e 7% do valor actual, o que aconteceu no início do Fanerozóico, (do grego “phanerós,” visível, e zoo, animal), há 539 Ma.

Ao contrário das inúmeras dúvidas e incertezas relativamente ao Precâmbrico, os elementos paleontológicos dos tempos que se lhe seguiram são abundantes, permitindo uma informação mais vasta e segura. O Fanerozóico iniciou-se por uma explosão de vida onde já estão representadas plantas não vasculares (algas) e quase todos os grandes grupos de invertebrados existentes na actualidade, a maioria com partes esqueléticas susceptíveis de fossilizar. 

A vida continuava confinada ao meio marinho, iniciando uma caminhada evolutiva no sentido da biodiversidade actual. Ao longo desta evolução, a biosfera sofreu diversos eventos de perturbação extrema, marcadas por extinções em massa à escala global, após o que novas espécies repovoaram os lugares deixados pelas que desapareceram.

 

A Paleontologia tem por suporte o registo fóssil dos animais e plantas que nos precederam. Registo vastíssimo, que não pára de crescer, enchendo armários e gavetas de museus, centros de investigação, universidades e, não menos importante, coleccionadores. Complemento essencial da Geologia, a Paleontologia tem particular importância em Biologia e em Estratigrafia, a disciplina que lê nas camadas das rochas sedimentares como de páginas de um livro se tratassem.

 

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4.11.23

Grande Angular - Uma reforma de papel

Por António Barreto

O novo sistema de controlo de estrangeiros e de imigração entrou em vigor há dias. É provável que a causa desta reforma das instituições ligadas às migrações seja o homicídio de um candidato ucraniano ao refúgio (ou imigração). O caso teve lugar nas instalações do SEF, no aeroporto, há cerca de três anos. Se assim é, a boa notícia é a de saber que as autoridades reagem com preocupação a esta lamentável ocorrência. A má notícia é a de ver que se aproveita a situação para fazer reformas aparentemente fundamentais. Este género de resposta, em cima do acontecimento, é raramente equilibrado e eficaz, mostra inquietação, mas na verdade revela má consciência.

 

Aprovada a respectiva lei há mais de dois anos, só agora o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a que pertenciam os culpados pelo homicídio, está extinto. Foi substituído por vários organismos. O AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo) surge à cabeça. Mas funções muito importantes são delegadas ou transferidas para a PSP, a GNR e a PJ, assim como para o IRN (Instituto dos Registos e Notariado). Além destes, são definidas competências para as autarquias, o SSI (Sistema de Segurança Interna) e a nova UCFE (Unidade de Coordenação de Fronteiras e Estrangeiros).

 

Ainda é cedo para avaliar estas reformas. Também é cedo para ter uma ideia sobre este novo sistema. Mas já é possível exprimir dúvidas. Uma é evidente: uma autoridade que necessita de centralidade de planeamento, eficácia e capacidade de resposta acaba por ser pulverizada. As diversas funções são distribuídas por várias instituições. A ponto de se ter também criado um gabinete de coordenação entre todos, isto é, o Gabinete de Coordenação e Gestão Integrada de Fronteiras!

 

A nova legislação e o novo sistema foram apresentados a público, há dias, com aparato. A Ministra anunciou pomposamente “um novo paradigma” e referiu-se aos méritos de Portugal na recepção de estrangeiros e subsequente hospitalidade, uma verdadeira “referência de humanismo e respeito pela dignidade humana”. O facto de Portugal ter adoptado um sistema único na União Europeia, diferente de todos os outros países, parece não ter suscitado dúvidas. É sempre assim, quando se diz que somos diferentes dos outros! Mas a verdade é que, numa área como esta, que inclui circulação entre países, aceitação de refúgio, regras de Schengen, valor dos passaportes, travessia de fronteiras e títulos de residência, seria bom que, em vez de brilhar pela diferença, nos ilustrássemos pela adopção de sistemas experimentados e consagrados. Mas as autoridades preferem a vaidade, talvez injustificada, de termos “um modelo único na Europa”! 

 

De qualquer maneira, convém estar atento. A concepção de reformas dos governantes nacionais, talvez especialmente dos socialistas, envolve sempre reformas globais, abordagens “sistémicas” e teorias grandiloquentes. As promessas imediatas referem a necessidade de legalizar, renovar e autorizar mais de 600.000 candidatos até Março de 2024! Como se fosse possível! Destes, mais de 350.000 são “pendências”, isto é, atrasados e ilegais à espera. Como é possível acreditar na boa fé e na eficácia de governantes que, em oito anos de governo, deixaram apodrecer a situação deste modo, com centenas de milhares de ilegais e atrasados? Pretende o governo esconder o facto de que é ele o principal responsável por esta situação?

 

Esta reforma, burocrática e de fachada, evita tudo o que é essencial. Na verdade, as políticas portuguesas para as migrações limitam-se a banalidades abstractas. Acolhimento generoso, regresso dos portugueses à pátria, direitos dos imigrantes, vantagens do multiculturalismo, tolerância, etc. As questões difíceis e que deveriam estar no topo das definições estão em geral afastadas.

 

Portugal opta pela porta aberta a todos? Quantos imigrantes podem entrar em Portugal? Há limites? Se sim, quais? E quem os define? Interessam-nos imigrantes de todos os continentes? Ou preferimos de países com os quais temos relações estreitas? Podemos fixar montantes ou fasquias para certas nacionalidades? Temos uma política igual para todos ou preferimos os originários de países de língua portuguesa? Há prioridade para trabalhadores desqualificados e indiferenciados ou para técnicos e pessoal qualificado? Portugal deve exigir contrato de trabalho prévio e residência assegurada antes de dar acolhimento? Podemos expulsar os ilegais ou devemos legalizar todos os que entrarem no país? Se os portugueses preferem emigrar para certos países, é justo que também possam preferir certos nacionais em detrimento de outros? Aceitamos que vivam em Portugal dezenas de milhares de ilegais?

 

Convém notar que, na história dos movimentos migratórios, há constantes bem interessantes. Os emigrantes vão dos países pobres para os ricos. De países sem emprego para onde há trabalho. De países onde há trabalhadores, mas não trabalho, para os que têm trabalho, mas não trabalhadores. De países em guerra para locais de paz. De países sem liberdade para democracias. De países atrasados para mais avançados. Portugal, tal como outros, tem a particularidade de estar em duas posições, a de atrasado e a de desenvolvido. Dezenas de milhares de portugueses partem todos os anos para a Europa e as Américas, enquanto dezenas de milhares de estrangeiros chegam de África, da América Latina e da Ásia.

 

Tentar controlar ao pormenor estes movimentos de população é do domínio da fantasia ou do impossível. As sociedades e o mundo têm uma margem de liberdade e de imprevisto que não se pode dominar ou extinguir. Mas é possível medir e avaliar, tentar orientar e adequar acontecimentos às necessidades. Fixar quantitativos, preferir nacionalidades de origem, valorizar as qualificações, exigir a legalização e o contrato de trabalho, punir a ilegalidade e o tráfico de força de trabalho e recusar a entrada aos criminosos são atitudes e opções aceitáveis e convenientes.

 

Nos tempos actuais, as migrações estão no centro das preocupações europeias. E talvez mundiais. O pior que pode acontecer, a Portugal, à Europa e a outros países, é deixar correr. A pretexto da “porta aberta” e do “acolhimento generoso”, cometem-se verdadeiros crimes políticos e deixa-se desenvolver o conflito, o crime e o tráfico. As velhas e doces ideias da liberdade de circulação e da escolha de local de vida e de residência, ligadas à cultura e ao trabalho, são postas em causa por esta negligência irresponsável.

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Público, 4.11.2023

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