27.3.22

CONVITE

 

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26.3.22

Grande Angular - Uma pequenina luz bruxuleante…

Por António Barreto

Brilhando incerta, mas brilhando. Luz que não ilumina, mas brilha! É um bom momento para pedir emprestado este verso a Jorge de Sena. Que luz é esta? O que seria? O princípio de humanidade? O sentido de solidariedade? A ideia de decência? A noção de civilização? Nestes tempos incertos, de gestos horrorosos e de feitos medonhos, essa pequena luz é a da liberdade, a que nos vai distinguir durante décadas, a que nos vai entusiasmar, a que nos permite sobreviver e ter esperança, a que vai brilhar…

O ano de 2022 será inesquecível. As gerações futuras saberão que este foi um ano especial. Um ano de esperança e de pavor. Foi o fim exacto de uma era, de uma época. Até então, pensava-se que o mundo caminhava lentamente para um universo de cooperação. Com enormes dificuldades e negras surpresas, mas a ideia de progresso parecia estar presente. Verificou-se que não. Foi neste ano que morreram esperanças, nasceram medos, se forjaram novas energias e se prepararam novos combates que se julgava desnecessários.

Na Europa, praticamente sem guerra há mais de setenta anos, tinha-se uma enorme esperança no entendimento continental e, para além disso, na convergência transcontinental. Não obstante a Chechénia e a Geórgia, mau grado a Sérvia, a Bósnia, o Kosovo e a Herzegovina, apesar disso tudo, procurava-se o equilíbrio e a coexistência continentais. Além disso, sem esquecer a Síria, o Iraque e o Afeganistão, a Europa tecia redes sólidas e aparentemente duráveis com a América, a África e a Ásia. A paz parecia instalar-se. A paz tinha uma oportunidade.

Libertada do comunismo, tal como uma mão cheia de países satélites, a Rússia parecia querer aprender os passos e os caminhos da liberdade. Apesar da corrupção, a níveis quase desconhecidos na história da humanidade, a Rússia dava sinais de que era possível criar laços permanentes de entendimento e colaboração. Os vínculos económicos, dupla e reciprocamente vantajosos, com os países ocidentais, criavam alicerces em que poderia confiar-se.

Longe, no Oriente, a China tinha-se transformado numa das maiores potências económicas e políticas mundiais. Apesar de firme ditadura política, a liberdade económica e a vida capitalista e empresarial prometiam liberdades, competição e tolerância. Mas ficavam desmentidos todos quantos pensavam que a liberdade económica exigia a liberdade política. A China conseguiu o milagre dos opostos, capitalismo e comunismo na mesma nação, no mesmo Estado. Na Austrália, a democracia fazia parte da génese continental. Outros países, no Oriente, sugeriam a ideia liberal.

Mesmo em África, o mais desolado e explorado de todos os continentes, surgiam indicações de que talvez fosse possível, um dia, a prazo, mas um dia certamente, o Estado de direito ter uma hipótese e a paz ter uma possibilidade. 

Na América Latina, apesar de desmandos populistas e de excentricidades ditatoriais, viviam-se décadas de relativa paz, de estabilidade e de duração inédita de regimes e governos.

O Próximo e o Médio Oriente eram as áreas mais problemáticas, com nações enredadas nos seus conflitos seculares, ricas de recursos, eternamente avessas à democracia, envolvidas em lutas com e por causa de potencias estrangeiras: eram as regiões que constituíam a zona mais frágil e a fonte de maior inquietação do mundo.

A globalização, sobretudo económica, comercial, financeira, mas também turística, levava a melhor por todos os cantos do mundo. Apesar da sua força destruidora, nem sempre bem-vinda, a globalização abria portas fechadas e criava oportunidades onde antes só havia rivalidades e fricção. Mais do que nunca antes, os adversários eram obrigados a chegar a acordo sobre comércio e economia.

O mundo progredia economicamente como nunca se tinha visto antes. Centenas de milhões de novos empregos, criados sobretudo na Ásia, eram a tradução de uma nova redistribuição económica.

As guerras religiosas ou de religião pareciam estar contidas e dominadas pela política e pela economia.

Ainda longe de se ter encontrado um estado satisfatório, algumas chagas indeléveis da sociedade, como a desigualdade de género, o racismo e a xenofobia, tinham conhecido décadas de melhoria e esclarecimento. Em contrapartida, a democracia parecia estar em recuo em quase todos os continentes. 

Novos problemas, de grande acuidade e urgência, tinham surgido diante de todos e eram objecto das maiores preocupações: a conservação e a renovação de recursos naturais e as alterações climáticas. Eram questões tanto ou mais graves do que as ameaças de guerra entre os Estados, mas não tinham a imediata configuração da violência e do massacre.

Neste mundo, os mais ingénuos sonhavam com certeza com a Paz perpétua e outros devaneios. Mas, com realismo, mesmo com cepticismo, era possível imaginar um mundo de aproximação, de convergência e de cooperação.

O ano de 2022 vai marcar a diferença. Ainda é cedo para conhecer o futuro imediato, muito menos os anos a seguir. Mas já sabemos que o mundo ficou diferente. Para pior. A globalização foi interrompida. A disseminação dos direitos humanos travada. A liberdade de comércio suspendida. E renasceu a ameaça nuclear, química e biológica.

A Rússia está a levar a cabo uma das mais sujas e cruéis guerras que se pode imaginar. Mesmo em situação de guerra declarada, a destruição de cidades e a agressão contra populações civis é um dos mais baixos pontos a que a humanidade chegou. Nas circunstâncias da Ucrânia, sem estado de guerra, é uma verdadeira selvajaria. A Rússia reintroduziu a força e a guerra nas relações entre Estados europeus. 

É verdade que os principais contributos da Rússia para a humanidade, nestas últimas décadas, com comunismo ou com o regime excêntrico que o substituiu, foram de guerra, de uso e abuso da força, de censura, de prisão e de liquidação dos adversários. Tanto dentro do seu território, entre os seus povos, como com os países vizinhos ou com Estados clientes em África, no Próximo Oriente e na Ásia. A Rússia acaba de alterar, por muitos anos, o clima político e económico do mundo, assim liquidando o quadro geral de paz que gradualmente se construía.

Ainda não se conhece o resultado da guerra. Mas já sabemos que a paz, a democracia e a justiça foram atacadas. Já sabemos que o progresso económico e social foi interrompido.

O cepticismo é obrigatório e de regra. Sobra-nos a “pequenina luz bruxuleante, trémula e muda, que vacila, mas brilha”! A liberdade. A ideia de liberdade. O amor pela liberdade.

Público, 26.3.2022

 

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25.3.22

RELÓGIO

Por Joaquim Letria

Com cara de lua cheia enrugada num sorriso inocente, Francisco Relógio ganhava a vida curvado sobre um estirador da CP, quando esta era uma casa de bem.

Hoje, talvez ninguém lá saiba que este artista de primeira água foi ali, anos a fio, um  modesto e cumpridor desenhador, desenhando projectos em papel vegetal, com os seus casacos deformados de “tweed” sobre camisas azuis Oxford engalanadas por uma perene gravata de malha preta que formavam o seu uniforme de sempre.

Aposto que nas escadinhas do Duque, ao lado da Estação do Rossio, não se encontra sequer uma daquelas fichas amarelecidas pelo tempo, preenchidas a cursivo francês de aparo fino, geralmente ostentando uma fotografia “à la minute” com uma cara patibular, comprovando que o grande pintor Francisco Relógio fora ali um apagado desenhador das 9 às 5 para viver.

As noites de Francisco Relógio eram também sempre iguais. Fazia parte duma mesa saudosa da antiga pastelaria Ritz, um pouco mais acima do Hotel do mesmo nome na Rua Rodrigo da Fonseca, em Lisboa.

Desse grupo só resto eu e o Hermes Palma, pois o Manuel Antunes, o José Manuel Palminha e o Francisco Relógio foram desta para melhor muito mais cedo do que deveriam ir. O Luis Mendes foi à Suécia ver uma namorada e nunca mais voltou.

Ninguém imaginava a gravidade da nossa agenda de trabalhos, cumprida por entre livros e cadernos abertos, chávenas de café e de cariocas de limão. Naquela mesa “resolvemos” Dien bem-Phu, a Guerra da Coreia, o paralelo 38, a Batalha de Argel, a conspiração da OAS contra De Gaulle, as eleições de Humberto Delgado, relemos a “Seara de Vento” do Manuel da Fonseca, discutimos a dor e a tortura  segundo Henri Alleg. Só uma morena carnuda e pestanuda, de sorriso de mel, mulher dum juiz de má catadura,  nos distraía  da nossa ordem de trabalhos, digna dum Conselho de Segurança da ONU. Meu Deus, como era linda, sensual e discretamente provocante aquela mulher que com o marido a ler o jornal ao lado se tornava ainda mais excitante!!

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O Francisco Relógio era uma voz indispensável e um dia fomos com ele a Vila Verde de Ficalho, sua terra, para conhecer o Manuel Sapateiro, que aprendera a ler sozinho e tanto leu que se transformou em bibliotecário da Gulbenkian, ao volante duma Citroen de chapa ondulada que serviam de bibliotecas itinerantes, carregadas de livros que o Manel lia um a um desde que fugira das sovelas de remendão a que a fome da família o destinara.

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Invariavelmente, Relógio puxava dum porta-minas, ou lapiseira, como preferirem, e o papel da toalha da nossa mesa enchia-se de labirintos e de cabeças de mulheres de mãos e pernas grossas. Também invariavelmente o empregado de mesa levantava a loiça e sem um protesto ou queixume da nossa parte, fazia uma bola gigante com os desenhos do Francisco  e jogava-os  no lixo.

Anos mais tarde, no Maputo, passei horas desfrutando o mural gigante do Francisco Relógio na fachada do antigo Banco Nacional Ultramarino de Lourenço Marques e desde a independência sede do Banco Nacional de Moçambique. Aquele mural, que os moçambicanos cuidam e respeitam, é tudo: painel Inca, Maya,  Azteca, mexicano moderno, melhor do que muitos do Rivera  - tão discutido no nosso grupo quanto era Portinari. Aquela obra do Francisco Relógio que também podia ser Maconde, é uma síntese de civilizações, uma sinfonia de cores, dor, sofrimento, alegria e paz.

Quando me casei, o Francisco ofereceu-me um óleo. Mais tarde pediu-mo emprestado para o mostrar em Madrid, numa exposição para que lhe enviaram um convite súbito. Nunca mais vi o óleo e nunca falámos nisso. Quando os nossos passos se cruzavam era para recordarmos conversas, coisas boas e amigos inocentes.

Tudo o que o Francisco Relógio fez, pertença a quem pertencer, deveria ser património da terra ressequida de Vila Verde de Ficalho, Baixo Alentejo, sob cujos torrões as cigarras cantam um monumental Te Deum pelo meu amigo Francisco. As cigarras reconhecem os homens bons e admiram as suas coisas eternas. Por isso cantam como cantam.

Publicado no Minho Digital

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24.3.22

A longevidade da democracia ultrapassa a da ditadura

Por C. B. Esperança

Hoje é dia de celebrar a longevidade da democracia que o MFA (Movimento das Forças Armadas) legou a Portugal e aos portugueses.

Foi no seio das Forças Armadas, sobretudo no exército, a guarda pretoriana da ditadura, que germinou a revolta provocada pela guerra colonial, injusta, inútil e condenada ao fracasso. O povo e o MFA rapidamente transformaram em Revolução a oportunidade da mais bela de todas as madrugadas.

Em 25 de Abril de 1974 os militares escreveram uma soberba página da liberdade. Hoje, 17.500 dias depois, a democracia ultrapassou, em tempo, a mais longa ditadura europeia do séc. XX (17.499 dias). 

Cumpridos os objetivos dos três Ds do programa do MFA, Democratizar, Descolonizar e Desenvolver, apesar das tentativas frustradas de os desvirtuar ou de inverter a marcha da História, eis-nos a ultrapassar a duração da obscura ditadura com uma democracia de sucesso que nos integrou na União Europeia e libertou do isolamento a que a política do “orgulhosamente sós” nos havia condenado.

Só por má fé ou ignorância se pode negar o êxito da Revolução que nos conduziu a uma democracia liberal onde a alternância democrática é possível e as preocupações sociais se manifestam consoante a natureza dos governantes que o sufrágio popular legitima.

Num país sem tradições democráticas, esta segunda República, depois do interregno da longa noite fascista, é um feito que deve ser assinalado por todos os democratas, seja qual for o seu quadrante ideológico.

Sabemos que não há ditaduras perpétuas, mas também não há democracias vitalícias. É, pois, razão para não deixar murchar os cravos que floriram há 17.500 dias nos canos das espingardas do MFA, numa Revolução sem sangue, única no mundo.

Hoje e sempre, Viva o 25 de Abril!

Ponte Europa / Sorumbático

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19.3.22

Grande Angular - Círculos do Inferno

 Por António Barreto

frase é atribuída a Dante: “Nos lugares mais quentes do Inferno, encontram-se os neutros perante uma crise”. Bela frase, bom pensamento, mas aparentemente falsa: Dante não a terá escrito. Mas a condenação moral dos neutros ficou-lhe ligada para sempre na história.

Hoje, a neutralidade toma várias formas e feitios. A da equidistância, por exemplo. A virtude estaria nessa posição rigorosamente à mesma distância de Deus e do Diabo, do Capitalismo e do Comunismo, da democracia e da ditadura. Ou então a imparcialidade, que não é bem independência, mas que é mais abstenção ou indiferença.

Apesar da voz dominante de repúdio pela invasão da Ucrânia, ouvem-se com inusitada frequência, entre analistas, jornalistas, académicos e intelectuais, afirmações de distância e afastamento. A invasão da Ucrânia é injusta? Sim, mas não se deve ignorar o que foi a invasão do Iraque. A agressão à Ucrânia é violenta? Com certeza, como o foram as do Afeganistão e da Sérvia. O massacre dos ucranianos é condenável? Talvez, mas convém não esquecer a Síria. A Rússia está a esbracejar para além das suas fronteiras? É evidente, mas é necessário recordar o cerco que a NATO vem fazendo à Rússia há mais de vinte anos. Há imagens de cidades destruídas, de hospitais arrasados e de escolas incendiadas? É visível, mas não se esqueça que há ucranianos que pegam fogo para depois atribuir as culpas à Rússia. Os Russos não brilham pela sua vocação democrática? É possível, mas há grupos de extrema-direita e de nazis que se infiltraram nas Forças Armadas ucranianas e que provocam os Russos. A Rússia tem veleidades imperialistas? É provável, mas o verdadeiro imperialismo está do lado americano, europeu e ocidental, que há décadas cerca a Rússia com a NATO.

E há ainda as culpas próprias da Europa. Comprou gás e petróleo à Rússia, dela ficando dependente. Compra-lhe cereais e minério em grandes quantidades, explorando os seus recursos. Acolheu plutocratas, magnates, bilionários e mafiosos de vária estirpe. Permitiu negócios suspeitos. Não teve defesa própria.

Em resumo e poucas palavras: a equidistância serve para isso, culpar os Estados Unidos, a Europa e a NATO. São estes os verdadeiros responsáveis e os autores em última instância da agressão russa.

Na Ucrânia, não parece haver lugar para neutralidades. Não tomar partido nem ter opinião por indiferença pelo futuro daqueles povos? É possível. Escolher por simpatia pelo imperialismo russo e antipatia pelo capitalismo americano? Também é possível. Preferir a solidariedade com os Ucranianos? É imaginável. Defender a causa da paz e da liberdade, repudiando a agressão de um poder autocrático? É igualmente possível. E não deveria custar, a cada um, definir os termos de referência e tomar o seu partido. O que não é aceitável é desculpar o agressor, porque outros também agrediram. Ignorar a violência dos russos, porque os americanos também foram. Ser complacente perante os bombardeamentos russos, porque a NATO também os terá feito. Aceitar este acto de agressão porque houve a Líbia e o Iraque é atitude comprometida. São argumentos moralmente débeis e intelectualmente frágeis. Mas funcionam tantas vezes! Os russos têm razão porque os outros fizeram igual ou pior. Os Russos têm razão porque os ocidentais fizeram o colonialismo e são racistas. Tudo serve de argumento. Ora, nada desculpa a agressão russa, nada justifica o não recurso às vias diplomáticas e políticas para resolução dos diferendos e não há violência que ajude a aceitar outra violência. Não há precedentes morais para o horror!

É verdade que a guerra das armas deu lugar à guerra da informação. Como sempre. Não falta a intoxicação. Os Russos contrataram mercenários e ex-presidiários para conquistar as cidades. Os Russos fizeram vir milicianos da Síria e do Afeganistão. Também os Ucranianos contratam nazis e criminosos milicianos do ocidente. Os Russos bombardeiam deliberadamente escolas e maternidades, hospitais e teatros para aterrorizar a população civil. Os Ucranianos mandam explodir e incendiar as suas escolas, os seus hospitais, a fim de inculpar os Russos. Tudo isto é do domínio da mera manipulação. Mas de uma coisa há a certeza: o que tem mais possibilidade de ser verdade, o que é mais verosímil é o que se diz nos países onde há liberdade de imprensa.

Como não podia deixar de ser, em tempos de crise como esta, não faltam os excessos. Do lado ocidental da Europa e do Atlântico, também já começaram a ouvir-se vozes detestáveis e a ver gestos insuportáveis. Proibir Dostoiévsky, Tólstoi, Pushkin, Gogol e Turguêneiev é absolutamente estúpido. Censurar Tchaikovski, Shostakovitch e Prokofiev é ignorante. Proibir as agências de informação e os canais de televisão russos, mesmo os que dependem do governo (todos…), é evidentemente inadmissível. Sanear directores de orquestra, cantores, instrumentistas, solistas e coristas russos é abdicar dos nossos valores e colocar o ocidente no mesmo plano que o Governo russo. Proibir os russos de passear só por serem russos é tão reaccionário e tão antidemocrático quanto fazem os russos dentro do seu país e se preparam para fazer na Ucrânia.

Expulsar artistas, engenheiros, professores e trabalhadores só por serem russos, não por terem feito contrabando de droga e de capitais, não por andarem a ameaçar “dissidentes”, nem por se terem entregue a actividades criminosas, é um gesto xenófobo, persecutório e imbecil.

É sabido que muitos russos, tal como, em seu tempo, muitos italianos, colombianos, irlandeses ou chineses se encontram envolvidos em actividades criminosas com mulheres, droga, armas, minérios raros, tecnologia sofisticada, ouro, derrube de governos e crimes de toda a espécie. Daí a dizer que todos os russos são criminosos e devem ser espiados, perseguidos, eventualmente expulsos, vai um passo fatal que não deve ser dado. Proibir, interditar ou expulsar entidades oficiais russas, sejam organizações políticas, instâncias da Administração, federações desportivas, empresas do Estado e bancos trapaceiros é outra coisa. Pode até ser aceitável e necessário. Mas é por serem criminosas. Não por serem russas.

De qualquer modo, entre mentiras e provocações, desculpas e complacência, covardia e desonestidade, uma coisa é certa: há um país agredido, dezenas de cidades a arder e milhões de pessoas a fugir. 

Público, 19.3.2022

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18.3.22

SAUDADES DO KUNG FU

Por Joaquim Letria

O  Kung Fu teve muitos adeptos em Portugal.

As salas de “reprise”, os piolhos e outros cinemas do género viveram décadas desses festivais de pancadaria que criaram uma galeria de monstros sagrados que vão desde o Bruce Lee ao Jean Claude Van Damme, passando pelo Chuck Norris, todos eles sob o olhar paternal de John Woo, o homem que conferiu dignidade às fitas “made in Hong Kong”.

Uma vez mais foi Hollywood – e não Hong Kong – a meter na cabeça dos jovens de então o sonho das artes marciais do Oriente. Poucos esqueceram os gestos de David Carradine, hermético como uma marmita, a calcorrear desarmado o Oeste americano à procura dum irmão desaparecido.

Carradine não usava os invitáveis revolveres Smith & Weston nem a espingarda de repetição Winchester, não bebia uísque dum trago nem calçava botas com esporas. Nós lá nos íamos inteirando das causas da atitude sofredora, paciente e contida, tudo aprendido e originário de Shao Lin, um templo chinês destinado à formação de jovens guerreiros que um primo do José Sócrates frequentou antes de se naturalizar brasileiro e fugir para Angola.

O pequeno Gafanhoto, como carinhosamente lhe chamava o seu mestre, aprendera ali a partir o pescoço do mais pintado, sempre com o uso exclusivo das mãos e dos pés, apenas em legítima defesa e em casos de força maior. Todos esperávamos aquele momento em que Carradine deixava qualquer rufião zonzo ou inconsciente, tudo isto numa década sem insegurança nas ruas nem guerra colonial e sem que o mestre Koboyashi  tivesse cá chegado para ensinar aos cívicos a arte do judo e do jiujutse. Naquela época quase sem bullying nas escolas, os mais franzinos sentiam-se vingados e deitavam-se a sonhar com aqueles episódios da TV a preto e branco, desejando construir à palmada um mundo mais justo e uma sociedade mais fraterna. O Kung Fu despertava o desdém dos bem pensantes, mas muita criança débil imaginou-se invulnerável, sem precisar dum revólver à Dirty Harry, para dizer àqueles que os brutalizavam no recreio “Bate-me para alegrares o meu dia!”

Aquele foi o tempo em que as crianças mais frágeis deixaram de fazer xixi na cama e tiveram ocasião de sonhar que poderiam enfrentar os brutamontes e todos aqueles que se valiam do físico, do dinheiro, da influência e do poder. Hoje já não é assim. O menino fraco voltou a fazer xixi na cama e caso se arme em esperto leva uma carga de porrada para não ser parvo e pensar que pode contribuir para um mundo com alguma justiça.

Publicado no Minho Digital

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17.3.22

A embaixadora Ana Gomes e a perseguição aos políticos

Por C. B. Esperança

A extrema-direita usou sempre a corrupção como arma política contra as democracias e os democratas, certa de que a corrupção não é escrutinada nos regimes que lhe servem de referência, onde a censura se exerce.

O inevitável “I” é um de muitos papéis impressos onde se formatam os adversários das democracias liberais que estão sob assédio de extremistas políticos. Os esgotos hão de correr para algum lado e cada jornal terá os leitores que merece.

A denúncia do património da embaixadora Ana Gomes, cuja licitude jamais é posta em causa, insinua que a referida cidadã foge aos impostos, por ter um contrato-promessa de venda de um imóvel por valor que a obrigaria ao pagamento de maior IMI, acrescido do adicional que tributa imóveis de valor superior a 500 mil €€ e, mais penalizador, quando ultrapassa 1 milhão de euros. É mentirosa e ignóbil a insinuação.

A venda do imóvel referido no contrato-promessa é penalizadora para a proprietária em termos de mais-valias e não deve haver em Portugal um único contribuinte que requeira à autoridade tributária a avaliação sucessiva de imóveis ao sabor das flutuações do mercado. Nem o pedido seria exequível.

Então por que motivo uma não-notícia se converte em título de caixa-alta e se menciona o valor de outro imóvel, que possivelmente habita, para devassa da vida privada de uma mulher que enveredou pela política? O ‘jornal’ cita um alegado jurista que diz ser uma questão ética. Que ética? A da calúnia e da desinformação gratuita?

Que se combatam as ideias que defende, neste caso de uma política que se situa na ala direita do PS, é o ónus que, em democracia, têm de suportar os que enveredam por uma exposição pública na política.

Que se devasse a vida privada de quem quer que seja, onde não há a menor sombra de ilegalidade, é a atitude cobarde de um jornalismo de sargeta que desagua na leitura de pessoas rudimentarmente informadas onde a inveja e o escândalo alimentam vidas infelizes.

Há, de facto, um escândalo, comum a embaixadores e magistrados judiciais, que atingem remuneração superior à de qualquer membro do Governo, incluindo a do PM, e que são os únicos funcionários do Estado que mantêm na reforma o mesmo vencimento dos colegas no ativo, benefício que não usufrui qualquer outro trabalhador e para o qual não descontaram durante a vida ativa. Mas disso, não quer saber o escriba que se julga jornalista.

Lê-se o artigo, alertado por pessoas que o leram na diagonal e que julgavam ter sentado a embaixadora no pelourinho da opinião pública por indignidade. A afinal, era apenas a opinião publicada por quem tem da ética e do jornalismo uma ideia distante do que são. 

A defesa de Ana Gomes é, neste caso, um dever de todos os que, em qualquer quadrante democrático, não se resignam a assistir à calúnia, insídia e difamação dos políticos para fragilizar as democracias, únicos regimes que permitem, sob a capa de direito à opinião, bolçar alarvidades execráveis como a que ora denunciei. 

Ponte Europa / Sorumbático

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13.3.22

No “Correio de Lagos” de Fevereiro de 2022


QUEM
me conhece sabe da minha paixão por História, e do que, para mim, significa, em termos emocionais, estar (como dizia o Prof. Hermano Saraiva) “exactamente onde as coisas aconteceram”, ou onde alguém, historicamente importante, também esteve.

Ora, no caso do nosso D. Sebastião, sabe-se que veio cá no dia 21 de Janeiro de 1573 (seis dias depois Lagos era elevada a Cidade), voltando mais tarde, em 26 de Junho de 1578, dessa vez a caminho da fatal jornada de África que culminou, em 4 de Agosto (*), no desastre que a ele lhe custou a vida, e a nós a independência nacional. 

E era por saber que o malfadado rei tinha estado “exactamente ali”, que eu me entristecia profundamente ao ver, ano após ano, aquele espaço transformado em WC público (incluindo um regato e um fosso de urina!) — pelo que, naturalmente, comecei a falar disso no Facebook, na página “Lagos, a Minha Cidade” que já nessa altura tinha milhares de membros. 

Porém, entre os vários comentários que surgiram (com destaque para o “Se não gostas, vai para a tua terra!” e “Você só sabe é dizer mal!”) apareceu um em que se dizia: «Porque é que você não vai lá lavar aquilo, em vez de vir para aqui protestar?!». 

Ri-me, com gosto, ao constatar que esses indivíduos apenas confirmavam a versão lacobrigense da divertida “Lei de Godwin” (de que falarei numa próxima oportunidade), pelo que resolvi levar aquilo para a brincadeira, respondendo, nesse caso concreto, que eu precisava de ajuda, sugerindo que, num dia à escolha dele, fôssemos lá os dois: «Eu levo a esfregona, e você o balde da água».

Essa interessante troca de ideias morreu aí, mas vale a pena acrescentar que teve uma sequela quando, algum tempo mais tarde, alertei para o facto de que várias lajes da escadaria de Porto de Mós tinham sido arrancadas pelo mar, estando ali perto à espera de que alguém (da autarquia, presumia eu) as recolocasse ou, pelo menos, guardasse, antes que o mar as destruísse. Pois também dessa vez apanhei com um comentário de alguém questionando-me porque é que não as ia eu apanhar, em vez de estar ali a queixar-me publicamente!
Nada de novo, pois, como muito bem sabe quem frequenta as redes sociais, o que preocupa essas pessoas não é a situação em si (por muito grave que seja), mas sim o facto de alguém expor publicamente o desleixo ou a incompetência de entidades da sua estima, pessoal ou partidária. Mas também nesse caso respondi que eu já era septuagenário, pelo que não tinha físico para andar a alombar com lajes dessas... mas teria muito gosto em ir lá com ele.


E É ASSIM que, agora, nos deparamos com o caso inqualificável do Forte da Ponta da Bandeira onde sucede o que a imagem documenta:

As pedras que o mar tem arrancado já não têm conta; muitas delas foram levadas para longe, não sendo poucas as que já estão enterradas na areia, como este mesmo jornal denunciou por várias vezes. Mas, tendo em conta que há ali umas boas toneladas de pedras a recolocar, acho que devo ficar grato por ainda ninguém me ter intimado, no meio dos habituais insultos soezes, a ir lá eu tratar disso...

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(*) – É impossível não referir, aqui, o documento da CML intitulado “Enjoy Lagos” que, no seu parágrafo 7, informa os leitores (em português e inglês) que D. Sebastião esteve “precisamente ali” em 1579, apesar de ter morrido no ano anterior! A menos que o autor do texto esteja a confundir o monarca com algum dos que, mais tarde, se fizeram passar por ele, trata-se de um erro desnecessário, para o qual este mesmo jornal já alertou em Agosto do ano passado (aquando do aniversário da batalha de Alcácer Quibir), e que bem podia ter sido corrigido. Ou, então, como diriam os “Gatos Fedorentos”: «Poder, podia, mas não era a mesma coisa».


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12.3.22

Grande Angular - Fanatismo

Por António Barreto

A Rússia sempre foi assim. Imperial e autocrata. E sempre será. Há para isso razões históricas, geográficas, económicas, étnicas, religiosas e outras. E os dirigentes russos nunca quiseram contrariá-las. Mais do que qualquer outro país europeu, a Rússia sempre viveu com tortura, escravidão, servidão e ditadura. Com este passado, a Rússia sempre foi brutalmente violenta. Tanto nos seus tempos de “esquerda” como nos de “direita”. Internamente opressiva e externamente opressora.

Poder-se-ia pensar que na Europa já não se bombardeavam bairros residenciais, escolas, hospitais, fábricas e teatros. E que já não se cometiam crimes de guerra. Quem assim pensava, desengane-se: esquecia-se da Rússia. O que esta faz na Ucrânia, agressão mais invasão mais destruição, foi o que sempre fez, tanto no estrangeiro como dentro das suas fronteiras.

Depois e apesar do Pacto entre a Alemanha nazi e a União Soviética, de 1939 a 1941, o heroísmo do Exército Vermelho, de 1941 a 1945, ficou para a história, mas só porque também a sua própria vida estava em causa. Mas ainda mais, para a crónica dos anos, ficou um dos seus perenes contributos para a história dos direitos humanos, o Gulag. Comparável ou igual, ao que dizem, ao Katorga czarista, uma rede de prisões e de estabelecimentos de trabalhos forçados que se estendia por toda a Rússia e que tinha os presos políticos como principais clientes.

Com a Rússia, não há entendimentos permanentes, nem cooperação, a não ser por necessidade, como aconteceu nos anos oitenta, quando perdeu influência no mundo, foi economicamente derrotada, foi cientificamente ultrapassada, atrasou-se militarmente e deixou fugir alguns dos seus aliados por esse mundo fora. No essencial, a Rússia tem de ser contida pela força, pela eficácia económica, pela superioridade da ciência, pela cultura e pela política. E pela lei internacional, com certeza, que a Rússia só respeita se a isso for forçada.

Esta é a Rússia que está em guerra e que invadiu a Ucrânia. Esta é a Rússia que suscita a complacência de muitas das esquerdas europeias, até de muitas direitas. E de intelectuais, universitários e jornalistas. Para muitas destas pessoas, a culpa, a responsabilidade e a autoria desta agressão, deste verdadeiro massacre, pertencem por inteiro à NATO, às democracias ocidentais, à União Europeia e sobretudo aos Estados Unidos. Assim como, evidentemente, ao capitalismo.

Os críticos da democracia chegam a afirmar solenemente que a Europa é culpada e não está à altura dos acontecimentos porque não está armada e não tem uma defesa própria! É verdadeiramente obsceno ver os que sempre recusaram que a Europa tivesse uma qualquer força militar proclamarem agora que a Europa deve abandonar a aliança com os americanos e forjar a sua própria força militar! Ou já o devia ter feito há muitos anos!

Culpar os americanos pela guerra da Ucrânia é infame. Sublinhar as responsabilidades europeias na agressão à Ucrânia é desonesto. Garantir que a invasão da Ucrânia pelos russos não é mais do que uma guerra entre os Estados Unidos ou a NATO e a Rússia, provocada pelos primeiros, é do domínio da fantasia fanática.

É extraordinário que haja quem tenha dificuldades em avaliar a acção russa (que é tipicamente a de uma agressão e de uma invasão), mas sinta necessidade de culpar e acusar o ocidente democrático, os países da NATO, a União Europeia e os Estados Unidos da América. É verdade que, para se defender, a Europa tem de se armar, organizar e libertar-se da dependência russa em energia. Mas não foi isso que provocou a agressão à Ucrânia. Só espíritos particularmente perturbados são capazes de formular a tese contrária.

E no entanto a evidência parece simples: a Europa deve ter a sua própria defesa, apoiada em forças comuns e forças nacionais, assim como deve prosseguir e reforçar a sua aliança com os americanos, mas se possível em posição de menor dependência e mais paridade. Isso custa muito caro. Seria bom que os Europeus estivessem dispostos a isso. Talvez a destruição da Ucrânia e talvez os crimes russos cometidos nestes quinze dias sejam bons argumentos para os Europeus finalmente gastarem mais com a sua defesa e a sua segurança. Sempre com uma certeza: por mais forte que seja, a Europa necessitará da sua aliança com a América. Podem rever-se os termos, os custos, os prazos e as orientações. Mas tem de haver aliança.

É estranho que tantas pessoas, que não cessaram de combater no passado qualquer ideia de defesa europeia, surjam agora a culpar a Europa (a UE e a NATO) pela invasão da Ucrânia e pelos massacres de populações civis. Mas também a considerar que uma das culpas da guerra na Ucrânia reside no facto de a Europa não ter defesa própria! Não há maior cinismo! Não há mais grosseiro oportunismo! Impressionada com a solidariedade mundial, essa gente menor procura um bode expiatório para os actos de guerra e a agressão russa. Estava mesmo a ver-se: eram os Estados Unidos e a inexistente defesa militar da Europa.

Imaginemos as várias ideias de defesa europeia. Primeira, a de exércitos europeus internacionais e transnacionais. Segunda, a coexistência de vários exércitos nacionais devidamente articulados. Terceira, uma combinação das duas anteriores. Imaginemos também que qualquer destas hipóteses pode ou não incluir os Estados Unidos. E que a aliança com os Estados Unidos, como actualmente na NATO, pode ou não coexistir com uma defesa mais europeia ou mais autónoma. De toda a maneira, estas hipóteses podem sempre entender-se com mais ou menos dependência dos Estados Unidos. Uma coisa é certa: quanto menos a Europa fizer, maior será a sua dependência americana. E a sua vulnerabilidade perante a Rússia.

Qualquer destas hipóteses, com os seus méritos e defeitos, custa muito dinheiro, exige esforços, implica constância e persistência. Qualquer destas soluções deve ser compatível com a democracia e as liberdades. Ora muito bem: os críticos da defesa militar europeia sempre condenaram estas hipóteses, sobretudo as que implicam alianças com os Estados Unidos. Já se viu o essencial: estas opiniões só parecem absurdas a quem não percebe que o que está em causa é a democracia liberal, o Estado social europeu, a União Europeia, os Estados Unidos da América, o capitalismo e a economia de mercado.

A agressão à Ucrânia é violenta e destruidora. Mas também está a refundar uma nação e a acordar um continente solidário. E a exibir os charlatães do pensamento.

Público, 12.3.2022

 

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11.3.22

A BURRA DO BURRO DAS BERLENGAS

Por Joaquim Letria

Sou o único jornalista do mundo a ter entrevistado o rei das Berlengas, incarnado pelo meu amigo Mário Viegas no filme escrito, realizado e inventado pelo meu querido Artur Semedow.

Numa tentativa de arrumações, topei hoje com uma velha “cassette” BetaCam em que esse filme -- onde eu desempenhava o papel dum intrépido e jovem repórter do Canal 6 da Zona Centro -- foi distribuído pelos clubes de vídeo que Deus tem.

A evolução tecnológica impede-me de momento de rever o filme, pois agora só tenho computadores e leitores de CDroms. Mas o interessante foi ter recordado algumas divertidas peripécias da rodagem desse filme, enquanto relia a capa ilustrada do VHS, e o meu espírito se ter fixado na memória dum episódio histórico que não tem nada a ver com aquilo que tinha em mãos.

Fiquei a pensar – a ponto de vo-la narrar  agora – na história da burra do faroleiro das Berlengas que chegou a constituir um quebra-cabeças para as nossas gloriosas Forças Armadas, fundadoras da Aliança Atlântica, intervenientes  na Bósnia Herzegovina, Kosovo, Mediterrâneo, Mar Egeu, Afeganistão, Mali, Líbano,  Norte de Itália e Sul de Espanha.

Contou-me o saudoso almirante Souto Cruz, que fez o favor de ser meu amigo, com o humor contido, elegante e inteligente que o caracterizava, aquele que terá sido o mais embaraçoso momento para ele, enquanto Chefe do Estado Maior da Armada, ele que viria a tornar-se Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, superintendendo ao Comando Conjunto dos Três Ramos e que temíveis assembleias da NATO enfrentara.

Aconteceu que à vasta secretária que o almirante ocupava no espaçoso gabinete da Avenida das Naus, no então Ministério da Marinha, chegara,  acompanhada pelo devido despacho, uma petição do faroleiro das Berlengas e Farilhões solicitando que o respectivo comando procedesse à aquisição duma burra que fizesse companhia ao asno que assegurava  o transporte do homem e víveres (com a mulher, em isolamento pelo período dum ano) e que a par de desbastar a erva com que se alimentava, em redor da casa e do farol, garantia as ligações  através das escarpas e alcantarilhas que separavam o farol do embarcadouro. Bom de ver que se tratava dum burro estratégico…  

A Marinha, que ainda hoje superintende a esse território da orla marítima, não pensara que um burro não é de pau… e vai daí, o pobre quadrúpede, era frequentemente assaltado pelo desejo carnal  e não havia  brida, cabeção, rédea ou arreata que o contivesse e o faroleiro via-se grego para o apanhar nas suas fugas galopantes, desesperadas e solitárias, a zurrar pelas escarpas.

-- Agora imagine você se eu despachasse “compre-se uma burra para o burro do faroleiro das Berlengas”, contava-me a rir Souto Cruz que, diplomata como era, lá arranjou maneira de satisfazer os apetites do burro sem se comprometer para sempre com um despacho ridículo.

Embora este seja um assunto da mais alta esfera da Defesa Nacional, muito gostaria eu de saber o que fazem hoje os almirantes e como vai hoje a vida sexual do burro das Berlengas . É mais importante do que parece! Perguntem ao faroleiro…

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10.3.22

Rússia / Ucrânia - 5 – “Devem ouvir-se igualmente ambas as partes” – (Demóstones, in Oração da Coroa, 330 a.c.)

 Por C. B. Esperança

Eu sei que não se pode destoar da visão radicalizada, convertida em dogma, sem que se afirme, “condeno veementemente a invasão russa da Ucrânia”, o que faço, uma vez mais, sem constrangimento, mas surpreende-me que a UE não a tivesse previsto, depois dos antecedentes da Geórgia, da Crimeia e dos reiterados avisos de Putin.

Eu sei que Zelensky, PR da Ucrânia, tem mostrado uma coragem heroica, mas preferia que tivesse tido bom-senso, antes de sugerir, agora, estar disposto a deixar cair a adesão à NATO e a discutir o estatuto da Crimeia, Donetsk e Luhansk.

Eu sei que o PR ucraniano tem procurado estender a guerra a nível mundial para não ser derrotado sozinho, apelando à declaração de interdição do espaço aéreo ucraniano, o que a Nato tem recusado por saber que, se abater aí o primeiro avião russo, pode iniciar a retaliação de Putin com a guerra nuclear e a destruição do Planeta.

Eu sei que nunca se deve encurralar uma fera ferida, e que é politicamente incorreto não me empolgar com o sofrimento do povo russo e, de forma egoísta, pensar que também a minha UE, que, sobretudo agora, desejo federalizada, fará sofrer a sua população.  

Não sei se será crime perguntar como pôde a União Europeia exultar com as sanções a Putin, sabendo que se voltariam contra si própria, perderia a capacidade de mediação e não podia alterar a dependência da energia e dos cereais russos. Aumentou o sofrimento dos seus países e debilitou a capacidade de proteger milhões de refugiados ucranianos.

Não sei como a UE foi tão rápida a defender os interesses dos EUA que, desta vez, não coincidem com os seus; os de Boris Johnson, que mantém o poder no RU com a guerra que fez esquecer as suas traquinices lúdicas durante a pandemia; e assistiu a uma súbita aproximação de Washington a Maduro, a quem não reconhecia sequer como Presidente da Venezuela, sem renunciar à condição de satélite dos EUA e cuidar dos seus interesses.

Não sei se a russofobia, acicatada na UE, se tornou obrigatória, como se o povo russo, incluindo os adversários de Putin, devesse ser punido pela invasão da Ucrânia.

Não sei como países democráticos da UE se conformaram com a decisão do Conselho Europeu, ao banir as cadeias de informação russas do espaço mediático ocidental, numa atitude simétrica à censura na ditadura russa.

Não sei um número interminável de coisas, só sei que a Humanidade está ameaçada, a pandemia esquecida, os refugiados não caucasianos abandonados, o aquecimento global desprezado, a água potável, os alimentos e a qualidade do ar ameaçados e os ucranianos a viverem mais uma sangrenta tragédia, talvez a maior da sua História e a maior da Europa depois da guerra de 1939/45.

Nunca vi tantos entusiastas da guerra, a atirarem mísseis do sofá, depois da euforia com que inicialmente os portugueses despolitizados acolheram, em 1961, as palavras do ditador, “Para Angola, rapidamente e em força”.

Então, como agora, o arrependimento virá tarde, se lá chegarmos.

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5.3.22

Grande Angular - Se…

Por António Barreto

Há males que vêm por bem… Há quem diga. Mas não é verdade. Ou quase nunca é verdade. Os males vêm por mal. E mesmo que haja remédios ulteriores, mesmo que possa haver reparação e recuperações, os males feitos são males feitos. Os mortos e a destruição continuam a ser mortos e destruição. Os medos e a insegurança persistem. A dor e o sofrimento são irreversíveis. O ódio e a desconfiança dificilmente desaparecem. Das guerras de agressão e das guerras civis, para só falar das mais recentes, em Angola, Jugoslávia, Síria, Afeganistão, Chechénia, Ruanda e Serra Leoa nada veio de bom. Desta guerra na Ucrânia, deste ataque premeditado e intencional, nada virá de bom para a Europa. Mesmo se deste autêntico assalto resultaram uma impressionante manifestação de solidariedade e um sentido acrescido da necessidade de um esforço colectivo, mesmo assim, as consequências imediatas são nefastas e trágicas.

Ainda só lá vai pouco mais de uma semana, mas o inventário já é aterrador. Uma agressão não provocada e um massacre indiscriminado. Uma catástrofe económica com terríveis efeitos imediatos nos preços, no abastecimento, no emprego, na despesa social e na quebra de produção. Um pesadelo humano e social, num continente que ainda não tinha conseguido superar as consequências sociais da pandemia e que se depara agora com a mais aterradora crise económica. A destruição de um possível clima de segurança construído pacientemente, há décadas, depois dos efeitos devastadores dos fascismos, da segunda guerra e do comunismo, assim como depois de enormes e perigosos esforços de reconstrução de um mapa europeu herdeiro do fim da “cortina de ferro”, da “guerra fria” e do “muro de Berlim”. A aniquilação, por muitos anos, da esperança de paz arduamente alimentada durante décadas. Qualquer que seja a evolução próxima, uma coisa é já certa: está marcada a próxima geração de Europeus.

O pessimismo ou o cepticismo impõem-se como as atitudes mais razoáveis e mais racionais. Mas é também lícito ter alguma esperança. Ou fazer votos para que seja possível superar os efeitos desta maldita guerra. É possível sonhar com uma nova Europa. Mas só em condições de um esforço sobre-humano, de uma formidável e constante determinação.

São muitas as condições que permitirão, talvez, salvar os Europeus. Se a Europa souber tratar da sua autonomia e dos preços que há a pagar por tal, sem a crença ilusória de que, confiando noutros que cuidam de nós, nos mantemos independentes e livres.

Se a Europa e os Europeus souberem defender-se com eficácia e tratar finalmente, como raramente fizeram no passado, da sua defesa militar.

Se a Europa souber recuperar um dos seus mais valiosos trunfos, a Grã-Bretanha e se esta souber retomar o lugar que é seu, na Europa.

Se os Europeus souberem repensar as suas instituições e as suas políticas federais, combinando-as com as suas tradições nacionais, poderão talvez contrariar grande parte dos impulsos e das erupções nacionalistas que cada vez mais ameaçam uma Europa descarnada, burocrática, uniformizada e centralizada, sem valor humano e de reduzida cultura.

Se a Europa souber repensar e refazer as suas estruturas produtivas, nomeadamente industriais, investindo na ciência, na tecnologia e na produtividade e libertando-se da miragem da deslocalização do trabalho e da utilização intensiva da “fábrica China”.

Se os Europeus souberem libertar-se, embora respeitando plenamente os seus direitos à existência e à expressão, dos complexos de culpa e dos remorsos perante os comunistas de Gulag e os marxistas de boulevard.

Se a Europa e os Europeus souberem e conseguirem forjar novas politicas de imigração e demografia e novas atitudes perante os fluxos populacionais incontrolados, designadamente através do controlo dos movimentos, deslocações e de estabelecimento.

Se a Europa souber lutar eficazmente contra a corrupção, contra os políticos predadores e contra os bandidos bilionários, indígenas ou estrangeiros, que têm estado na vanguarda da pior Europa que se imagina, a que facilmente troca a moral e a lei pelo ouro.

Se a Europa e os Europeus conseguirem por uma vez libertar-se dos seus sentimentos de culpa, submissão, tentação e sedução perante o dinheiro e os poderosos.

Se a Europa e os Europeus souberem organizar-se mental e politicamente para se defender dos grandes poderes que os cercam e se podem transformar em ameaças, o poder americano, os exércitos russos, o terrorismo islâmico, a indústria chinesa e a imigração africana.

Se a Europa e os Europeus conseguirem, mau grado a renovação e a fundação da sua nova autonomia, conjugar e articular o futuro com o seu mais conhecido, mais cioso de liberdade e melhor aliado, os Estados Unidos da América.

Se os Europeus conseguirem dar corpo e solidez, realidade e instituições, às suas tradições de liberdade e de cultura assim contrariando os populismos nacionalistas de pacotilha que vivem, com oportunismo, a parasitar as debilidades da democracia.

Se os Europeus conseguirem dar novo sentido às suas tradições de cosmopolitismo, mas que não dispensa o orgulho da afirmação da sua cultura própria.

Se a Europa souber tratar de uma sua chaga indelével e crescente, a desigualdade social, que impede e enfraquece a coesão social.

Se a Europa souber respeitar o melhor da sua história, a sua cultura, e a sua melhor história, a da liberdade.

Se os Europeus souberem e quiserem, farão uma Europa. Livre e em paz.

Público, 5.3.2022

 

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4.3.22

IMERSOS PENSAMENTOS

Por Joaquim Letria

Eu diria que as ideias e sentimentos mais profundos me assaltam durante um banho de imersão. Durante boa parte da minha vida não me apartava da imersão nocturna nem prescindia do duche matinal.

Quando entrei na adolescência a minha santa avó passava a vida a dizer-me “lava o corpo mas não te entretenhas com nenhuma parte dele”, ao que o meu avô acrescentava, como se fosse um ámen, “de outro modo podes ficar ceguinho”. E ria-se, sem eu perceber porquê.

Certamente que para eu me entreter sem ser com as minhas partes, os meus avós substituíram na banheira os patinhos de  baquelite da minha infância por dois garbosos navios de madeira mais apropriados a um adolescente, um navio almirante e um couraçado, com os quais travei temerosas batalhas contra inimigos que me atacavam por entre “icebergs” de espuma Badedas.

Hoje, sem idade nem partes sensíveis, brinco com a esponja, fugindo nela de perigosos e letais submarinos que me perseguem como loucos. Não os vejo, mas sei que estão lá… por isso me desvio dos seus torpedos. Dantes, não desanimava até a água ficar fria de mais para uma última de mão engelhada com o sabonete Lux, aquele que era usado por nove em cada dez estrelas de cinema.

Depois dum banho destes não há melhor do que um velho malte da Escócia a acompanhar um chá bem quente, bebidos com um a entrecortar o outro, como os alemães fazem, alternando a cerveja com um “schnaps”.

Com a idade fui perdendo o prazer do banho de imersão e, pior ainda, ganhei-lhe medo. Antes de mais, porque posso escorregar na banheira e partir-me todo com o trambolhão, se por acaso não bater com a nuca no rebordo, indo desta para melhor. Depois, porque algum ente querido pode erradicar-me, ou seja eliminar-me de vez, jogando o secador ligado para a água de murcha espuma, onde entre pétalas bem cheirosas flutuam estes desencantados pensamentos.

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3.3.22

Rússia / Ucrânia - 3 – “Devem ouvir-se igualmente ambas as partes” – (Demóstones, in Oração da Coroa, 330 a.c.)


Por C. B. Esperança

Não, não estou com os invasores contra os invadidos, no Iraque ou na Ucrânia, onde os mais fracos foram invadidos pelos mais fortes, e lutarei contra o unanimismo vesgo que nos conduziu à censura e ao histerismo belicista.

Os media parecem-se, cada vez mais, com os da ditadura salazarista, o Sr. Milhazes é o Ferreira da Costa, «Aqui, Luanda, rádio Moscovo não fala verdade», e JRS, o Artur Agostinho a anunciar eufórico a voz do dono «Portugueses, temos o Santa Maria entre nós».

Depois de termos esquecido que «os sinos da velha Goa e as bombardas de Diu serão sempre portugueses», assistimos à propaganda que esmaga as vozes discordantes. É o maior ataque à liberdade de expressão depois do derrube da ditadura fascista.

A invasão da Ucrânia foi uma condenável e condenada tragédia, e o unanimismo da UE uma desgraça. Do R.U., Boris Johnson comanda a histeria belicista que fez esquecer as traquinices lúdicas, que o afastariam do cargo. Da União Europeia, onde sou federalista convicto, ainda agora, esperava a moderação do não alinhamento acéfalo com interesses do complexo militar-industrial dos EUA. Esperança baldada.

A Ucrânia nasceu onde a História a condena a fronteiras de geografia variável, com um governo que, à semelhança de todos os países que sofreram a violência soviética, Rússia incluída, exacerba o nacionalismo, com o racismo, homofobia e russofobia a porem em causa os direitos humanos.

Quando a liberdade de expressão é seriamente condicionada, a verdade única imposta, e a defesa da guerra passa a opção legítima, urge defender a Paz, e dizer Não.

Defenderei o aprofundamento económico, social e político da UE, sem o qual se esvazia a democracia, sem trocar a liberdade de expressão e o pluralismo por qualquer amanhã, por mais musical que se apresente, ou pela liberdade de esmagar os mais fracos.

Combater o pensamento único é uma manifestação de cidadania, uma questão de honra, a exigência democrática que obriga à defesa dos adversários. A ditadura devia ter sido uma vacina eficaz e sem prazo de validade. E não foi, como se vê.

Fiel aos valores da democracia representativa e ao seu aprofundamento, recuso modelos caducados e as utopias que inspiram. O século XX deu-nos as democracias e as tiranias, e produziu os mais obscuros sistemas e as mais tenebrosas abjeções.

Não avalizo aventuras totalitárias, seja qual for o pretexto, venham de onde vierem. Num momento de comoção seletiva, ao serviço da agenda belicista da Nato, gritarei «Sim à Paz, Não à Guerra», sem esquecer o povo mártir da Ucrânia. 

Deixo, para reflexão, a advertência de Mário Soares, em 11 de setembro de 2008.

Ponte Europa / Sorumbático

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