30.9.22

Humildade

Por Joaquim Letria

Anatole France escreveu que “uma coisa que torna fascinante o pensamento humano é a inquietação”.

Da inquietação à curiosidade vai um pequeno passo. A curiosidade, no dizer de Catalina, é quando se ouve o que se quer saber, mas quando se escuta, chega-se a saber muitas vezes mais do que aquilo que inicialmente se propunha ouvir.

Para se tirar bom proveito daquilo que a curiosidade nos faz saber, a razão é indispensável, desde que se manifeste e utilize de forma viva, dinâmica, inquisidora e meditabunda, de modo a assimilar os conhecimentos de maneira a calar e conservar a sua intimidade cordial.

Inocência e razão, infância e maturidade compõem o binómio de que está formada a maravilha a que chamamos género humano. É curioso, por outro lado, como o homem sempre quis minimizar, ou até apagar, os melhores exemplares de si próprio.

Dizia Boileau que a humildade se verifica quando “o mais sábio é aquele que nem remotamente pensa em vir a sê-lo". Humildade, para os povos latinos, é quando “ninguém é sábio em todas as ocasiões”. Humildade, dizia Séneca, é "quando se pode ser sábio em todas as ocasiões”. Humildade, sentenciava Séneca, é quando “se pode ser sábio sem vanglória nem inveja”. Sócrates também se deu ao trabalho desta reflexão criando uma ideia defensiva mas que nos chega até hoje: ”Só sei que nada sei”!

Em síntese e à luz da nossa cultura judaico-cristã é a sabedoria que garante quem “quem se humilhe será exaltado". E como proferia o livro de Job, “viverá em glória”.

Muita gente não acredita em nenhum sábio até o ouvir dizer três vezes “duvido” e duas “não sei”.

Porque não fazer a vontade a esta gente se a Terra pertencerá aos humildes?! Poderemos ser todos felizes ao guardar o que sabemos de outros na nossa intimidade cordial.

Publicado no Minho Digital

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29.9.22

Alunos do Liceu da Guarda em excursão cultural da Mocidade Portuguesa (MP) – Crónica

Por C. B. Esperança

Quando, neste mês de setembro de 2022, vi o programa da ida a Mangualde, em 28 de maio de 1958 (?), o ano está omisso, que o Alexandre Lourenço Marques conservou, com os nomes dos artistas de Teatro, Variedades e Serenata Monumental, todos então condiscípulos e amigos, provocou-me uma explosão de recordações e sentimentos.

Estávamos a terminar o ano XXXII da Revolução Nacional, eufemismo que a ditadura dava ao golpe militar que nos condenou a 48 anos de fascismo. O liceu só tinha verba para uma semana de aquecimento onde as temperaturas negativas duravam meses, mas havia uns dinheiritos para os meninos da Mocidade viajarem em patriótica propaganda do regime.

Assomam tantas e tão variadas memórias que é difícil dar coerência à narração e deixar escorreita a prosa sobre recordações tantas décadas escondidas. Se o dia 28 de maio foi infausto, em Mangualde, para dezenas de adolescentes, como o fora em 1926 para todo o País, de forma bem mais grave, já o dia anterior não tinha sido auspicioso.

No dia 27 saímos da Guarda, ansiosos por jantar e dormir no Hotel de Gouveia, rapazes que nunca entraram num hotel, até pronunciávamos ‘hotel’ como palavra grave, sob o comando do Luciano Duarte Calheiros, referido no folheto com o sumptuoso cargo de Comandante de Divisão C. B., isto é, Comandante de Bandeira da MP.

Chegámos a Gouveia, de capa e batina, o liceu da Guarda era a Universidade de Coimbra dos pequeninos cujas praxes e traje imitava, não com a farda da MP, que seria tão deslocada na Serenata como viola em enterro. Até o Dr. Ramalho, o comissário da MP, nos tinha autorizado o traje académico que a maioria de nós levava emprestado.

Íamos sob os auspícios da Mocidade Portuguesa, sem passarmos pela vergonha de que não tínhamos consciência. Éramos vanguardistas, talvez o Calheiros já cadete, segundo a terminologia etária da MP. Os lusitos terminavam aos dez anos, e a idade de infantes sumira-se nos primeiros anos de liceu.

O Calheiros, acompanhado de comandantes de Castelo, foi apresentar cumprimentos ao presidente da Câmara, Dr. Alfredo dos Santos Júnior, um futuro ministro do Interior de Salazar. Entraram com a devida vénia e o tradicional cumprimento com as capas, mas o acolhimento deixou-os gelados: “Não vos conheço assim mascarados. Vou desmarcar o Hotel”. O Calheiros ainda tentou arranjar uma desculpa, mas o Miranda Garcia explicou que, não estando fardados da Mocidade, não tínhamos direito às mordomias prometidas. Ficámos conformados. A revolta era luxo que não existia ainda.

Anos mais tarde perceberia que a ausência da saudação nazi e a falta do brilho do ‘S’, a inicial do ditador, que cobria o cinto da farda, tinham amofinado o edil salazarista.

Depois de telefonemas do Calheiros para a Guarda, em contacto com o Dr. Ramalho, lá se arranjou um sítio para jantar e uma pensão onde dormir depois do espetáculo. Este decorreu com normalidade e os artistas, despojados dos adereços, dirigiram-se para a pensão destinada. Ficámos três em cada cama, os mais magros, ou ‘só’ dois. Ainda que algum soubesse o que era um pijama, nenhum levou qualquer muda de roupa interior ou teve necessidade de tomar banho. Eram tempos heroicos!

Recordo-me de dormir com dois colegas em cama de corpo e meio, encostada à parede, tendo-me calhado a parte de fora, o que me enviava para o chão sempre que mudávamos de posição. O do meio era o Fatela, colega de turma, sobrinho do pároco da Meimoa, de onde trazia umas esmolas da caixa das almas, de que beneficiei no início de cada novo período escolar, e que cumpriam a piedosa devoção ao bilhar, no Café Cristal. Mas isso e o encontro com o Fatela na guerra de Moçambique onde há de ter passado um Inferno, alferes na Companhia de Intervenção n.º 1626, são memórias de outra crónica.

Em Gouveia, acordámos sem direito a pequeno almoço e deambulámos em grupos pela vila até à hora da partida. Alguém nos disse que o padre Isidro era homem para nos dar o pequeno almoço e fui eu que não hesitei em bater-lhe à porta e perguntar-lhe se era capaz de oferecer um copo de vinho à rapaziada. Não sei de onde veio tanto pão, queijo e presunto para saciar meia dúzia de adolescentes, que o vinho não faltava na adega de um grande colheiteiro de excelente vinho do Dão.

Único motivo de ansiedade: os irmãos Caramelo, Teodoro e Fernando, e o Sobral Dias não compareceram à saída do autocarro e foi vã a espera para Mangualde. Apareceram, à boleia, a tempo de participarem no Grande Sarau de Arte, designação do evento. 

Amesendados no Refeitório do Colégio, tudo correu bem até ao início do espetáculo, no Teatro Império de Mangualde, mas fomos vaiados pelos alunos residentes. Não percebi a razão da animosidade e era duvidoso que fosse hostilidade à data que talvez não fosse inocente para quem organizou o périplo. Os distritos da Guarda e de Viseu eram, aliás, reservas do regime e regiões de recrutamento de figurantes para as excursões de apoio a Salazar, em Lisboa, sempre que era precisa uma ação de propaganda do regime.

Não me recordo de situações anómalas durante o espetáculo e penso que o numeroso público ficou rendido aos jovens e promissores artistas.

O pior estava reservado para o regresso à Guarda. Ao entrarmos no autocarro acolheu-nos um fedor insuportável. No corredor alguém defecou abundantemente e a pestilência do odor também vinha dos bancos e vidros onde as fezes foram a tinta dos desenhos que não primaram pela originalidade ou bom gosto.

Esquecido o cheiro e as contrariedades dessa deslocação, mais acidentada do que outras, cabe ao cronista, com os defeitos do homem que é e das circunstâncias que o moldaram, deixar, em letra de forma, estas memórias que o programa, guardado pelo Alexandre, despertou no voluntário escriba.

Deixo um abraço amigo aos que ainda vivem, e recordo com imensa saudade todos os falecidos, alguns bem cedo, como o Teodoro e o Corvas.

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24.9.22

Grande Angular - A democracia à defesa

Por António Barreto

Atrasos no caso BES, graças a mais um mistério só para iniciados. Novos problemas, depois de uma mudança de juiz, cujo significado é um segredo! A rivalidade entre os grandes juízes de instrução continua a alta temperatura. As tropelias e tensões entre corpos, instâncias e instituições persistem e agravam-se, sem que haja sinais de acalmia. E sobretudo sem que se veja um esforço moderador, um gesto de liderança ou uma acção de arbitragem. A grande justiça portuguesa está num grande sarilho e numa enorme crise, é o menos que se pode dizer. A justiça portuguesa, a começar pelas altas instâncias, perdeu a serenidade.

 

Certos nomes pessoais ou códigos operacionais tornaram-se familiares. Entre outros, “Toupeira”, “Marquês”, “Furacão”, “Cavaleiro”, “Negativo”, “Football Leaks”, “Hells Angels”, “Lex” e “Prova limpa” são tão famosos como estâncias de turismo. Com ou sem razão, inocentes ou culpados, Duarte Lima, José Sócrates, Joe Berardo, Manuel Pinho, António Mexia, Luís Filipe Vieira e Rui Rangel, além de muitos outros, são nossos conhecidos como se fossem membros da família. Siglas notáveis fazem parte deste rol de incerteza, de quem se fala, mas de que pouco se sabe realmente: BES/GES, EDP/CMEC, BPP, BPN, PT…

 

Todos os dias, ou quase, há notícias sobre estes casos e aqueles processos. É o reino do inesperado, muitas vezes misterioso, nunca convincente. Muda o Juiz. Outro juiz contradiz. Um recurso trava tudo. Recomeça. Providência cautelar. Instrução. Adiamento. O número de casos, do mesmo processo, pode variar, aumentar ou diminuir, conforme a inclinação do juiz de instrução ou de qualquer outra instância. Percebe-se que juristas e jornalistas acabem por achar graça, se é que compreendem tudo. Mas o público não acha graça. O público desconfia. O público descrê.

 

Será que não se dão conta? Será que os magistrados judiciais, os magistrados do Ministério Público, os membros dos Conselhos Superiores, a Ordem dos Advogados, as associações profissionais e os sindicatos ligados à Justiça, todos os envolvidos, não se dão conta do mal que se está a fazer aos portugueses, à democracia e ao sistema de justiça? Será que não percebem que o que fazem agora, activamente ou por inércia, com cumplicidade ou indiferença, ficará a perdurar na má reputação da justiça em Portugal por décadas e décadas? 

 

E os políticos? Não reparam? Não sentem? Não se apercebem? Estão satisfeitos com o que vêem? Preferem viver e governar num país com justiça deficiente? Os governantes que se ocupam directa e indirectamente da justiça, os deputados que têm o privilégio exclusivo ou reserva de competências na legislação em matéria judicial, os altos funcionários judiciais e policiais não se dão conta dos danos e dos prejuízos que estão a ser infligidos à Justiça e à democracia por muitos e muitos anos? 

 

E os magistrados, os que não são cúmplices nem coniventes, que cumprem os seus deveres, que respeitam o melhor que podem a Constituição e as declarações universal e europeia dos direitos humanos, esses magistrados não se dão conta que, sem culpa nem proveito, sofrem da má reputação e da má fama que o sistema, as autoridades e as ovelhas ranhosas lhes impõem e provocam? Não entendem que o trabalho quotidiano e os esforços para cumprir as suas funções e para servir o povo perdem sentido e são destruídos pelos processos célebres, pelos arguidos famosos, pelos juízes importantes, pelos magistrados poderosos?

 

Como se não bastasse este estado geral, pequenas notícias revelam a dimensão do desastre. Uma avaria geral no sistema informático do Ministério da Justiça, mais uma, com duração e efeitos por vários dias, provocou adiamento de julgamentos e de actividade notarial, suspensão de registos e certidões…. Acaso? Fragilidade? Ataque malicioso? Já não é a primeira vez que o sistema de informação e comunicação da justiça revela a sua decrepitude e a sua vulnerabilidade. Não é possível acreditar sempre no acaso e na incompetência.

 

Inocente ou culpado, com razão ou sem ela, José Sócrates ajuda à festa. Em artigo de jornal, acusa as autoridades, especialmente o Ministério Público, de ilegalidade, enviesamento, compadrio e perseguição pessoal e política. Acusa, instaura processos e recorre de decisões judiciais. Verdades ou mentiras, merecem, por nós e para nosso bem, esclarecimento, decisão judicial, rapidez e clareza. E decisão dos Conselhos Superiores. Assim é que não! Sem resposta, sem esclarecimento, sem decisão transparente, não há justiça que resista.

 

verdade é que, se queremos a democracia, ocupemo-nos da justiça! Mais do que apenas defender, querem realmente os nossos políticos, as autoridades, os magistrados, os jornalistas e a opinião pública em geral, desenvolver e consolidar a democracia? Querem realmente impedir a extrema-direita? Querem limitar o partido Chega? Querem impedir o crescimento de qualquer forma de populismo de direita e de extrema-direita? Querem fazer o mesmo com a extrema-esquerda? Querem impedir a extrema-esquerda, seja a operária do PCP, seja a burguesita do BE, de crescer e regressar às antecâmaras do poder?

 

Há soluções para isso. Há caminhos para isso. Em vez de gritarem aqui d’el rei vem aí o fascismo, tratem do emprego e da saúde. Em vez de rosnar contra os extremistas populistas de qualquer bordo, ocupem-se da justiça. Em vez de berrar desalmadamente contra os fascismos, na convicção de que assim se trava esse ímpeto, tratem das migrações ilegais. Numa palavra, tratem da democracia e ver-se-á como os extremos mingarão. Tratem da Justiça e, sobretudo, dêem a impressão de que a democracia sabe tratar dos seus e de todos, sabe castigar e punir quem o deve ser, sabe prender e julgar os vigaristas, os ladrões e os corruptos. Tratem de fazer com que a justiça dê o exemplo, se revele mais igualitária, mais justa e mais eficiente. Uma justiça nunca deve ser igual à sociedade em que vive, uma justiça deve ser melhor.

 

Uma democracia à defesa é um regime fraco. Não acredita em si. Ou antes, não acredita o suficiente. Uma democracia forte é um regime político sereno, com poucas proclamações estridentes, mas que sabe crescer e desenvolver-se. É um regime tanto mais sólido quanto as leis são cumpridas e os juízes cumprem os seus deveres. Não é o regime no qual os seus titulares gritam, “não passarão!”, com a voz roufenha dos derrotados e dos medrosos. É o regime que acredita e que zela pelos direitos dos seus cidadãos.

 

Querem a democracia? Ocupem-se da justiça!

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Público, 24.9.2022

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22.9.22

A GUERRA (3) – O suicídio russo

Por C. B. Esperança

A confirmarem-se as sevícias antes da morte dos cadáveres da cidade de Izidium, que os ucranianos recuperaram na contraofensiva, a Rússia legitima a propaganda que a Nato e a UE fizeram para a demonizar.

A Europa e o mundo não ficam mais perto da paz nem evitam, sobretudo a primeira, a tragédia económica que a aguarda, mas a Rússia terá dado um passo decisivo para se tornar um país pária e legitimar o apoio à Ucrânia.

A própria aliança com a China, que coloca sempre a Rússia na situação de inferioridade, não pode resistir ao opróbrio de uma solidariedade que envergonha e compromete.

Agora, com a investigação transparente das torturas, tornar-se-á fácil separar a verdade da propaganda e, naturalmente, são os ucranianos a atraírem a solidariedade com o seu sacrifício enquanto se despreza o martírio dos soldados e civis russos.

Se se confirmarem os atos de horror, Putin pode tornar-se mais perigoso, a Europa mais exposta, a Ucrânia em risco de ainda maior sofrimento, mas a Rússia não mais recupera a compreensão que ainda mantinha pela população russa massacrada na Ucrânia, antes da guerra. 

As guerras perdem-se também na opinião pública.

Apostila: 1 – Quem já tinha perdido a guerra económica, com tendência a piorar, era a UE e, enquanto a população se distrai morbidamente com o cadáver da vetusta rainha inglesa, que tarda a sepultar, não pensa nas alterações climáticas e na crise energética que, em 2024, pode trazer de volta a candeia de azeite da minha infância;

2 – Espero que, em relação à guerra da Rússia com a Nato, na Ucrânia, não se confirme o maior receio, a verificação da Lei de Murphy: ‘Tudo o que poderá correr mal, correrá, e da pior maneira.’

Apostila - Dada a contrainformação e propaganda de que somos vítimas, posso vir a rever a posição aqui expressa. Não há ainda informação independente que confirme o alegado massacre e as valas comuns.

Ponte Europa / Sorumbático 

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21.9.22

No "Correio de Lagos" de Agosto de 2022

I — RECENTEMENTE, e a propósito das sanções à Rússia motivadas pela invasão da Ucrânia, houve um comentador francês que disse o óbvio:

Quando uns quantos países decidem aplicar sanções a outros, esperam, com isso, provocar-lhes dificuldades de tal monta que as suas populações se revoltem e mudem o regime e os seus líderes, ou, pelo menos, a política que estes seguem. Sucede, porém, que quando aqueles são democráticos e estes não, é praticamente nula a possibilidade de êxito pois, nas ditaduras, os poderes legislativo, executivo e judicial estão controlados, a Comunicação Social não o está menos, e as eleições, quando existem, apenas oferecem aos eleitores “a escolha” de um partido único. 

No extremo oposto, as democracias vivem ao sabor do curto prazo, das opiniões públicas voláteis e dos ciclos eleitorais, onde uma subida de uns cêntimos no preço dos combustíveis (ou uma mexida de 2 graus no termostato do emprego) pode fazer cair governos, pois a solidariedade dos “heróis da rectaguarda” esgota-se nos teclados dos iPhones e em bandeirinhas nos perfis do Facebook.

Olhemos para Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, Irão..., e veja-se qual desses países mudou de regime devido às sanções a que têm sido sujeitos ao longo dos últimos anos e décadas. Nenhum, como se sabe. Mas, no caso desses, os “sancionadores” pouco ou nada dependem dos “sancionados”. Ora, no caso da Rússia não é assim, pois o nosso mundo, viciado em energia barata e ilimitada, tem nela o seu “calcanhar de Aquiles”. 

Eu escrevi “ilimitada”? Desculpem, foi uma força-de-expressão. Os combustíveis fósseis, por definição, são finitos, e, uma vez queimados… pfff… Então porque é que ninguém pergunta o que sucederá quando acabarem? Sem querer, e muito antes do tempo, Lawrence Peter deu a resposta: «A Espécie Humana atingiu o seu Nível de Incompetência, pois passou a ser capaz de se autodestruir — e não apenas uma vez, mas muitas» — e de diversas formas, adianto eu; portanto, os que não se preocupam minimamente com essa inevitabilidade até agem logicamente, pois a Humanidade tem todas as condições para acabar muito antes.

 

II — ORA, e ao mesmo tempo que boa parte do mundo está agora a descobrir como são reais e dramáticas as suas fragilidades energéticas, também não falta quem esteja a ser atormentado pela seca, apesar de, ao contrário do que sucede com os combustíveis fósseis, a água no Planeta não desaparecer, mesmo depois de usada: no seu todo, ela é sempre a mesma, apenas muda de estado e se desloca — só que S. Pedro não segue a lei do “sol na eira e chuva no nabal”, provocando inundações catastróficas numas zonas do globo, e secas devastadoras noutras, com a ajuda inestimável de uns quantos pândegos, que procedem como o louco que, tendo caído num buraco onde se depara com uma pá e uma escada, despreza esta e desata a usar aquela.

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“Correio de Lagos” de Agosto de 2022

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20.9.22

No "Correio de Lagos" de Agosto de 2022

 

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17.9.22

Grande Angular - A culpa e a incompetência

 Por António Barreto

Em Portugal, o início do ano lectivo é um desastre. É normal. Há dezenas de anos que se sabe que as aulas começam mal. Que há horários por preencher. Obras por acabar. Professores precários a mais. Professores obrigados a viajar dezenas de quilómetros ou a mudar de residência. Alunos sem professores ou com programas incompletos. Alunos sem manuais à disposição e sem cantinas capazes de funcionar. E alunos obrigados a percorrer, todos os dias, muitos quilómetros. Este ano, mais uma vez, há milhares de “furos” nos horários e nos programas. É normal.

 

Há dezenas de anos que se sabe que as condições de alojamento dos estudantes universitários são deficientes, caras e pouco confortáveis. Há dezenas de anos que se sabe que a oferta de quartos pelas entidades públicas, as universidades, os institutos, as autarquias ou o ministério, é reduzida e muito insuficiente. Já se sabia isto há trinta anos, quando os estudantes eram 150.000. Continua a saber-se agora, que são mais de 400.000 e com uma situação infinitamente mais grave, de molde a que muitos estudantes deixem de estudar, que muitos candidatos desistam e que muitas famílias renunciem a essa possibilidade.

 

Nas últimas décadas, os progressos do ensino superior foram colossais. Isso pode medir-se em números de estudantes, de professores, de cursos, de licenciaturas e de doutoramentos. E também em acesso das mulheres às carreiras docentes e à investigação. Mas não tenhamos dúvidas que se poderia ter ido muito mais longe, que alguns ensinos poderiam ser de muito mais qualidade e que os cursos poderiam ser muito mais exigentes para a ciência. Que outros ensinos poderiam ser mais virados para a vida prática, a empresa e o emprego. Que a desigualdade social poderia ser menor e que o mérito poderia ser um critério nas regras de acesso e de progressão. Que muitas pessoas poderiam chegar aos estudos superiores se tivessem o benefício de uma acção escolar com meios e mais eficiente. Mais uma vez, as autoridades consideram que o medíocre é aceitável, o mau é passageiro, o suficiente é uma utopia e o bom é impossível. Cada um pensa que o seu ano, este ano, é melhor do que os anos dos outros, os anos anteriores. Todos se contentam com a mediocridade e convidam os cidadãos a fazer o mesmo.

 

É tanto assim que se acha aceitável que ainda haja milhares de situações como as acima descritas. Ano após ano, a situação oscila entre o mau e o péssimo, facilmente se considera o medíocre como razoável. Nunca é bom nem muito bom. Nem sequer suficiente. Ou antes, satisfatório, para as autoridades, é quando se pode demonstrar que “este ano” estamos melhor do que no “ano passado”. A ideia de que a maior parte das deficiências do início de ano escolar se podem tratar ou evitar faz parte das utopias que já nem sequer se desejam.

 

Há anos, talvez dezenas, que o Serviço Nacional de Saúde revela insuficiências notórias. Muitos serviços e centros de saúde acabam por praticar a desigualdade, mesmo sem querer, mesmo sem saber. Faltam médicos e especialistas em numerosos serviços e centros de saúde. Faltam médicos de família para centenas de milhares de cidadãos. Faltam ainda mais enfermeiros. Muitos médicos e enfermeiros deixam o SNS para os hospitais privados. Muitos outros deixam o país para o estrangeiro. A formação de médicos está sempre aquém do necessário. As condições de acesso para pacientes e doentes são muitas vezes, mesmo muitas, deploráveis e inaceitáveis. As filas de espera para consultas e cirurgias, mas também para exames e análises, são enormes, de semanas a meses. A eficiência das urgências é muitas vezes abaixo dos critérios mínimos. As condições de espera nas salas, nas recepções e nos corredores são geralmente miseráveis de desconforto para quem está aflito ou inquieto.

 

Também aqui, na saúde pública, se fizeram melhoramentos enormes! Temos números de médicos muito satisfatórios, entre os mais elevados da Europa. Tanto a despesa pública como a privada não cessam de aumentar. Mesmo assim, as filas de espera são inacreditáveis, sobretudo num país com números elevados de médicos e enfermeiros. Mesmo assim, há serviços que fecham por falta de pessoal. Mesmo assim é possível acontecer o que está agora diante de nós: todas as semanas, todos os meses, maternidades e hospitais anunciam a suspensão de nascimentos e de internamentos de urgência! É esta uma das mais escabrosas situações existentes na saúde em Portugal ou em qualquer sector da vida social, perante a qual dirigentes políticos e sanitários são capazes de alegar com problemas estruturais e causas longínquas, recusando as suas responsabilidades e ficando satisfeitos com qualquer melhoria, mesmo provisória, mesmo temporária, mesmo insignificante.

 

Saúde e educação! Dois bons exemplos, talvez os melhores, do que é a incapacidade de gestão, a deficiência de previsão, a falta de planeamento e a ausência de espírito prático e realista. Os governos sucedem-se na elaboração de estratégias a longo prazo, de planos integrados, de reformas estruturais, de políticas sustentáveis e de programas de recuperação e resiliência, assim como na criação de grupos de acção, de conselhos consultivos e de observatórios, todos de enorme sabedoria, mas sem qualquer noção das responsabilidades, de sentido prático e de espírito realista.

 

Sabe-se que a gestão, boa ou má, é quase sempre também uma questão política. O tratamento das questões de saúde e de educação depende muito das opções políticas, da ideia que se deve ter do público e do privado, do centralismo ou da autonomia, da política ou da tecnocracia, da ciência ou do social. Mas, a partir de ideias esclarecidas, de programas aceites, de leis aprovadas e de enquadramento definido, é a capacidade de gestão responsável que surge no primeiro plano. Na educação e na saúde, sobretudo nos casos referidos, nas filas de espera, na desigualdade social, na ausência de equipamentos, na descoordenação de instituições, na falta de pessoal e na absurda incapacidade de previsão e planeamento, o estado actual é deplorável. Sem desculpas. Não há anteriores governos, nem guerra, nem pandemia que justifiquem o estado de coisas. Nada justifica a incompetência, a falta de visão e a ausência de sentido prático da vida.

Público, 17.9.2022

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16.9.22

Tão frios como os meninos dizimados

Por Joaquim Letria

Mais de 40 mil crianças trabalham em Portugal para sobreviverem ou ajudarem a família.

São números que ninguém consegue disfarçar. Querem estes números dizer que se tivessem fins de semana e se pudessem organizar-se, estas crianças portuguesas encheriam o Estádio José de Alvalade.

Notícias que entretanto nos chegam de África também nos dão conta de milhares e milhares de outras crianças dizimadas pela fome, pela doença, pela guerra e abusadas para renderem com os seus miseráveis corpos descartáveis os lucros confortáveis de quem as explora na venda, no transporte e distribuição metódica da venda de drogas, corpos e armas.

Tudo isto faz parte do preço inaceitável de sobrevivência. Acabam por ser pagamentos por conta do abate puro, simples e eficaz de quem é capaz de, sistematicamente, exterminar crianças que, de outra forma, seriam uma praga que, de outro modo, não só não daria lucro como criaria despesa e ainda teria de ser alimentada.

Persistem em nos garantir que a criança que existe dentro de nós não morrerá nunca. Talvez assim seja. Mas com o passar dos anos, essas crianças ficarão cada vez mais frias, tão frias e tão duras como os adultos cujas almas habitam, tão mortas, afinal de contas, como os meninos da rua dizimados por quem os explora antes de os abater.

Publicado no Minho Digital

 

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15.9.22

A GUERRA

 Por C. B. Esperança

É preciso ser demasiado ingénuo ou excessivamente cínico para imaginar que o nível de vida dos europeus se manterá durante e depois da guerra que a Rússia trava com a Nato, na Ucrânia, agora com apoio explícito da UE e dificuldades crescentes da Rússia.

Só o delírio de quem duvida das alterações climáticas e ignora as catástrofes que, ano após ano, aumentam a frequência, duração e intensidade, pode levar a acreditar que as economias europeias vão resistir aos aumentos brutais da energia e de bens essenciais de cuja importação dependem.

A exaltação de quem pensou ter encontrado uma causa nobre, por que valia a pena lutar, impediu de prever que as sanções europeias à Rússia e as contrassanções desta à Europa destruiriam as economias de ambas e levariam o caos e o desespero aos seus países, e o colossal sacrifício de vidas aos ucranianos e russos. A inflação galopante, a subida dos juros e a escassez de bens essenciais são o ónus que, independentemente da bondade ou leveza das decisões tomadas, todos pagaremos, com especial sofrimento dos países e das pessoas mais pobres.

Surpreende que os que mais demonizaram a Rússia não tenham ponderado a loucura de quem é capaz de recorrer à chantagem nuclear e, quiçá, à utilização desesperada do seu último recurso. Há quem prefira a guerra à paz, com o risco nuclear a agravar-se. Não se pode ver a supremacia ucraniana na vontade de combater como uma vitória, pois o risco de um ato desesperado da Rússia agrava o perigo para a Humanidade.

Há quem acredite que a Rússia bombardeia as suas próprias tropas na central nuclear de Zaporizhzhia. A censura e a propaganda são armas poderosas de que não prescindem as partes em conflito, seja qual for a guerra, quaisquer que sejam os beligerantes.

Perigoso é ignorar esta verdade, tautologicamente demonstrada ao longo dos tempos e, hoje, com meios nunca antes disponíveis. Perante a incúria coletiva para procurar fontes de informação alternativa, criam-se entusiasmos com as primeiras verdades perfilhadas, que conduzem à divulgação acrítica e, em muitos casos, à negação dos factos e à recusa obstinada dos argumentos que as contrariem.

É este o ambiente propício às verdades únicas, à intolerância e ao maniqueísmo numa deriva que cria o húmus onde medram os totalitarismos, não faltando censores e bufos voluntários para a sua defesa. O medo está a encostar os europeus à extrema-direita.

Julgando defender a liberdade, movidos por entusiasmos solidários, podemos tornar-nos cúmplices da repetição de regimes autoritários que, no passado, combatemos. Em nome do humanismo reabilitamos uns e execramos outros, capazes de escolher, entre crápulas, os heróis e os vilões, os anjos e os demónios, os amigos e os inimigos, exonerando todas as dúvidas e recusando os factos que, por mais evidentes que sejam, nos contrariem.

Imagina-se a felicidade de quem acredita sem ver e a dilaceração de quem se interroga, sabendo-se que é feliz quem tem certezas e se angustia quem carrega dúvidas.

Para defesa das ditaduras bastavam os que sempre as apoiaram, e as ditaduras são mais baratas do que as democracias.

Ponte Europa Sorumbático     

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10.9.22

Grande Angular - Serviço público

Por António Barreto

Alguns casos recentes trouxeram até nós a sempre actual questão do serviço público. É problema complexo, nas suas várias dimensões: justiça, igualdade e humanidade. E também complicado nos aspectos mais práticos: dimensão, custo, pessoal e organização.

Se olharmos com espírito exigente para a sociedade que nos rodeia, rapidamente veremos a miséria do serviço público. Após décadas de melhoramento constante, verificamos, por um lado, que o progresso foi enorme, mas, por outro, que as deficiências, nomeadamente a injustiça e a ineficácia, são as regras.

Em teoria e na generalidade, quase toda a gente está de acordo. O serviço público deve ser a primeira razão de existir e o principal objectivo dos mandatos políticos. Deve ser exigente, justo, eficiente e estar presente nas principais áreas de vida da comunidade: habitação, saúde, educação, justiça, transportes… Em poucas palavras: nas sociedades modernas, onde há pessoas e comunidades deve haver serviço público. Este destina-se não só a melhorar a nossa vida em comum, mas também a cuidar, com humanidade, dos mais vulneráveis e carentes… Não se trata evidentemente de afirmar que os outros não necessitam de tudo isso, justiça e humanidade. Mas há quem necessite mais do que outros. Ou há quem tenha mais dificuldades em aceder ao serviço público. Por isso, este deve ir ter com o cidadão e não o contrário.

Se, na generalidade, reina o consenso, no pormenor e nas escolhas, o desacordo é a regra. Pior ainda: na prática, a realidade é a permanente negação da lei. 

 

A questão dos preços e dos circuitos de comercialização do gás parece um “sketch” de humor. Negro, evidentemente. Não se percebe o que é necessário fazer, quando e onde. Não se entende por que razão, para o mesmo produto e a mesma rede de distribuição, se cobram preços tão medonhamente diferentes. A maior parte das pessoas, está simplesmente desorientada com a situação actual, apenas sabendo que corre sérios riscos de ver a sua factura grosseiramente aumentada.

A distribuição de dinheiro líquido directamente aos cidadãos (os 125€ e mais prestações) é outro bom exemplo do desnorte. A solução é política e socialmente discutível, como todas, felizmente. Mas, tendo em conta que está decidido, falta saber o como. A reduzida literacia financeira e institucional de milhões de cidadãos é a causa de muita perplexidade. As necessidades burocráticas, a exigência de certidões e a obrigação de apresentar números de Segurança Social, de Cartão de Cidadão ou de IBAN eliminam muitas pessoas. Repete-se o habitual: as regras definidas na lei e nos regulamentos estão perfeitas, mas a realidade não cabe nelas. A sociedade tem de se adaptar aos regulamentos, não o contrário. Pessoas sem cartões, sem números ou sem contas bancárias ficam excluídas ou suspensas, a não ser que inventem e contornem. Grande número das situações reais relativamente à paternidade, aos casamentos e aos estatutos familiares, sem falar na situação fiscal e de residência, fica excluído desta distribuição. A não ser que tenha tempo, mobilidade, meios e conhecimentos.

A gratuitidade dos transportes públicos em Lisboa, para jovens com menos de 23 anos e idosos com mais de 65, é outro caso. As dificuldades em aceder, as necessidades de burocracia, a imposição de um cartão renovável todos os meses (mesmo sem custos…)  e o número muito reduzido de locais onde se pode tratar da adesão vão criar mais um pesadelo.

Finalmente, as regras relativas aos cuidados de saúde paliativos ou continuados. As disposições legais, relativas à Segurança Social e ao Serviço Nacional de Saúde, parecem excelentes e cuidadosas. Os cuidados a domicílio também estão disponíveis e acessíveis. Na verdade, tudo é de enorme complicação. Inacessíveis. Inexistentes. Indisponíveis. As leis e as regras parecem feitas para outro planeta. O recurso à NET, solução promissora e miraculosa que tudo tornaria mais fácil, é muitas vezes um novo pesadelo. Teoricamente, tudo se pode resolver através do mundo digital. Na verdade, é tudo mais difícil. A não ser que se tenha experiência, conhecimentos, tempo e paciência.

 

Em todos estes casos e tantos outros semelhantes, as regras essenciais da filosofia e da política do serviço público estão em crise de modo permanente. As dificuldades de acesso são enormes. A burocracia é pesada e exclusiva. Há uma grande desigualdade prática e efectiva. A proximidade, palavrão político de todos os dias, é inexistente. A transparência, outro lugar comum, é uma ilusão.

Certidões, atestados, códigos de acesso…. Só quem nunca passou por estas andanças imagina o que pode ser o martírio, a burocracia e a espera. Os serviços exigem porque desconfiam dos cidadãos.  Os “sites” dos serviços são óptimos exemplos de falta de clareza e de dificuldade. É provável que os mestrados em informática se desenrasquem, mas essa não é a maioria da população. Perdem-se horas e dias. Telefona-se e ninguém atende. O “site” remete para o telefone, o telefone remete para o “site” …

Importa ainda referir os serviços e as empresas privadas que hoje, com a ajuda das autoridades, dominam os cidadãos, os condicionam, tantas vezes os enganam, os convencem a “fidelizar” por uns anos, naquela que é a mais importante receita de aldrabice, o estímulo à vigarice e a autorização para, com protecção legal, enganar os consumidores! Estas empresas, que alteram unilateralmente os contratos, fazem o que querem dos seus clientes, trabalham sobretudo nas áreas das telecomunicações, da electricidade, do gás e da água.

O rol da desumanidade é infinito. Longas filas para as consultas médicas, análises, cirurgias e serviços de enfermagem, além da Segurança Social e do fisco. As horas passadas ao telefone, com música estridente, à espera que nos atendam. A permanente invocação da transparência e da proximidade, lugares-comuns de quase todos os políticos, mas evidentemente uma mentira colectiva. As alterações contratuais sem aquiescência dos cidadãos. A criação ou imposição de taxas de toda a espécie. A falcatrua da “fidelização”, verdadeira armadilha para os incautos.

Já se pensou que de tudo isto quem mais sofre são os menos competentes informaticamente, os que têm menos conhecimentos e menos “contactos”? Será que as autoridades já gastaram uns minutos a ouvir quem procura e não consegue, quem espera e não alcança?

O maior teste do governo e das instituições democráticas é o do serviço público. Da sua humanidade.

Público, 10.9.2022

 

 

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9.9.22

Corrida sem parar

Por Joaquim Letria

Antigamente, quando as pessoas eram criteriosas em vez de serem só espertas, as coisas eram medidas de maneira diferente.

Hoje, tudo se mede pelo padrão do êxito.

O melhor programa é o que tem maior audiência, as pessoas são melhores à medida dos likes e do número de seguidores. A pessoa a deitar abaixo é aquela que atinge quotas elevadas de popularidade e o que importa, seja no que for, é chegar primeiro, e não interessa donde e é irrelevante como. Há muito tempo que a sociedade classificou de corridas de ratos esta atitude hoje glorificada e que com desempregados a espreitarem a cada esquina persiste sem alterações nem mudanças de sentimentos.

Dantes, as coisas mediam-se de maneira diferente. As pessoas compreendiam que o livro de maior sucesso não era necessariamente o melhor, o programa com mais audiência era invariavelmente o mais detestável, entendiam que o futebol, mau grado despertando grandes paixões e arrastando multidões pelo mundo era um jogo muito interessante embora o xadrez não deixar de ser um jogo inteligente e também apaixonante. Também não era preciso explicar que a opinião dum comentador, por muito popular e profissional que este fosse, não era mais acertada do que a dum especialista em matérias levianamente abordadas.

Tudo isto é uma questão de medida. Estabeleceu-se o êxito como metro-padrão, pois então se tratava da tradução mais correcta para dinheiro, partindo-se do princípio de que o melhor filme, melhor livro, melhor programa, melhor personalidade seriam sempre aqueles que mais lucros gerassem.

Não vale a pena ser nostálgico, recordar o antigamente, ter saudades do antes, pensar que dantes era melhor. Era só diferente. Por isso, nesta corrida para que muitos se deixam arrastar, depressa se descobre que não podem mais parar. Se abrandam, pisam-nos, se perguntam para onde vão ninguém lhes sabe responder. Só uma coisa se lhes afigura certa – a pressa de todos é muito grande, a vontade de perceber o labirinto que percorrem muito pouca ou nenhuma. Que alguém tenha pena deles quando não tiverem outro remédio senão parar sem ser por vontade própria nem esclarecimento pessoal.

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8.9.22

O neoliberalismo anda aí a contaminar partidos e a alvoroçar oportunistas

 Por C. B. Esperança

Da IL ao defunto CDS, do PSD ao interior do PS, das televisões aos jornais, surgem as vozes inconformadas com a solidariedade social, ansiosas das liberdades que permitem reduzir o Estado ao mínimo e desregular a iniciativa privada ao máximo.

Não surpreendem os fascistas ou a IL. A IL defende o mais radical neoliberalismo, com uma taxa única do IRS para quem ganhe mil ou um milhão, a fazer corar de vergonha os que defendem um capitalismo de rosto humano.

No CDS já tinham desaparecido os democrata-cristãos, restando os neoliberais, antes do óbito do partido. Agora, na defunção, aparece Nuno Melo a caminho do partido fascista se não conseguir a ressurreição do partido que afastou os fundadores.

O que surpreende, ou talvez não, é o regresso mediático dos neoliberais do PS, desde Francisco Assis que, depois de se ter oferecido e sido recusado para presidente da AR, já elogiou Passos Coelho de modo a que o PSD deixe de o considerar ativo tóxico. Sérgio Sousa Pinto é um caso de oportunismo, a degradação de quem defendeu na JS e na AR as posições mais avançadas para apanhar agora o comboio do neoliberalismo que julga estar a chegar, rebocado pelo PR.

O caso mais surrealista do PS é o de um médico autointitulado “líder da ala socialista-liberal”, um oxímoro tão delirante como fascista-democrático ou vegetariano-carnívoro. Em representação da SEDES leu o manifesto neoliberal que alguém lhe escreveu como militante do PS. Perante os ataques concertados à social-democracia, para não referir a hostilidade carregada de ódio a qualquer forma de socialismo, não admira que a direita lhes dê amplo espaço mediático nos órgãos que domina.

São estes os ‘socialistas’ que o PSD convida e exibe na Festa do Pontal. Nada é melhor para o contrabando de ideias do que ter quem as divulgue a partir do espetro partidário concorrente.

O pessoal de António José Seguro, o que criou a risível candidatura de Maria de Belém a PR, está de volta. A defesa do neoliberalismo chega ao interior do PS.

Cabe aos militantes do PS a defesa da matriz partidária e afastarem-se de camaradas que pretendem empurrar o partido para a direita. 

Ponte EuropaSorumbático

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3.9.22

Grande Angular - Euros caídos do Céu

Por António Barreto

Basta ler jornais, ouvir rádio e ver televisão. O PRR está aí para gastar. Apesar da guerra na Ucrânia, da persistente pandemia, do rescaldo dos fogos florestais e da balburdia inédita do SNS, mau grado estas e outras grandes dificuldades, um sinal está já visível no firmamento: euros para distribuir. Benefícios a administrar. Subsídios a espalhar. Não obstante a inflação, talvez até por isso mesmo, toda a gente se prepara para gastar. O que não é mau, nem defeito. Só que… para gastar, é preciso criar riqueza!

É um dos grandes mitos da história e da política nacionais: os portugueses são incapazes de criar riqueza! Trabalham (e muito) com o dinheiro dos outros, mas os lucros vão-se. Trabalham (ainda mais) no estrangeiro ou sob as ordens dos outros, mas os rendimentos desaparecem. Trabalham (com gosto) graças aos dinheiros que os outros (a União Europeia) nos enviam, mas gastam muito e investem pouco. Se, finalmente, há momentos de prosperidade, é sempre graças ao estrangeiro. Foram os recursos e as matérias primas de África, da Ásia e da América Latina. Ou os empréstimos ingleses e franceses. Ou ainda os investimentos alemães, ingleses e americanos. Foi a emigração para o Brasil, a América do Norte e agora a Europa. Assim como tivemos a Europa em todas as suas versões: a EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio), a CEE (Comunidade Económica Europeia), agora a UE (União Europeia). São, finalmente, oligarcas chineses, russos e angolanos. Verdade é que os rendimentos e as riquezas que vêm do estrangeiro ficam nas mãos de poucos ou ao estrangeiro regressam.

Os mitos não ficam por aqui. As grandes empresas portuguesas (indústria, bancos e serviços) são estrangeiras na origem ou à chegada. A maior parte das grandes empresas e dos grandes serviços privatizados e reprivatizados, depois da revolução de Abril, ficou nas mãos de estrangeiros, tendo as empresas sido desvalorizadas e descapitalizadas. Estas empresas são submetidas aos interesses das multinacionais. Os estrangeiros só investem em Portugal em condições leoninas, exigem benefícios excepcionais, condições especiais e facilidades fora do normal.

Mas há mais. Os grandes empresários portugueses são podres de ricos, têm o dinheiro lá fora, pagam poucos impostos, são iletrados e egoístas, situam-se sempre à direita e sobretudo dependentes do Estado e dos favores políticos. Os trabalhadores portugueses são analfabetos e mandriões, só mandados à força e dirigidos por estrangeiros, têm inveja dos ricos e não defendem as suas empresas. As classes médias, as mais prejudicadas de todas, são miseráveis, detestam os ricos e os pobres, não sabem poupar, querem fugir para o estrangeiro. Todos eles, empresários, trabalhadores e classes médias, só pensam em si, não têm consciência do bem comum e acham sempre que tudo o que é estrangeiro, vive no estrangeiro ou vem do estrangeiro é sempre melhor.

Finalmente, o Estado cobra impostos a mais, gasta tudo consigo próprio e com os seus funcionários, que aliás são mal pagos. É incapaz de bem gerir e bem administrar. É vítima permanente da corrupção, está nas mãos dos interesses, das corporações, dos sindicatos e das empresas privadas. Não é capaz de bem administrar a saúde, a educação, a segurança social e a justiça, sectores onde reina a desigualdade social e nos quais o Estado português gasta mais do que a maior parte dos Estados europeus. Mas é nesses mesmos sectores, onde se revela um permanente caos, que os mais desfavorecidos são sistematicamente preteridos.

Portugal nunca soube criar riqueza de modo durável e estável. Nunca investiu com o sentido do tempo e das gerações futuras. Os Portugueses quiseram sempre ganhar depressa, muito e rapidamente, explorando e roubando se fosse necessário, desde que fosse no estrangeiro e fácil. Especiarias, escravos, açúcar, ouro, pedras preciosas, café, diamantes, petróleo e outras matérias primas fizeram riquezas fáceis e rápidas, mas frágeis e inconstantes. 


Muito do que precede é mentira. Ou enganador. E muito é verdade. Ou factual. Mas o problema é real: há incapacidade para criar riqueza em Portugal. Pelo menos em proporção do que se gasta, do que se necessita ou do que se espera. A legislação de atracção de investimentos estrangeiros é tosca, insuficiente, parola e venal. A actuação dos governantes e dos empresários junto dos meios financeiros mundiais dedicadas ao investimento é medíocre e pedinte. As condições legais e fiscais de desenvolvimento de uma actividade lucrativa em Portugal são difíceis, pouco atraentes e até repelentes. Os parceiros portugueses para grandes empresas e grandes investimentos estrangeiros são pouco experientes, muitas vezes tacanhos e quase sempre débeis. O Estado português, que cresce pouco, mas engorda muito, não tem agilidade para atrair investimento, ser flexível, garantir estabilidade e segurança. O Estado refugia-se no que sabe fazer, a burocracia, a corrupção e o favoritismo.

O PRR, Programa de Recuperação e Resiliência (designação europeia estúpida e saloia), é sinal exacto de que vêm aí Euros. Como se sabe e viu, não é a primeira vez que tal acontece. O governo faz propaganda todos os dias e anuncia medidas que são um verdadeiro bodo aos pobres. A oposição de centro e direita tenta antecipar-se e já propôs gastar, ainda mais do que o governo pretende, com a saúde, a educação, a segurança social, os idosos, os pobres, os sem abrigo, os imigrantes, os grupos do rendimento mínimo, os desempregados… A esquerda quer gastar ainda mais, evidentemente, liquidando, de passagem e preferência, a economia privada. Todos, aliás, governo, direita e esquerda, exigem uma acção imediata para contrariar a inflação, minimizar os efeitos dos aumentos do custo de vida e apoiar os aumentos das rendas de casa. Mas poucos, muito poucos, propõem ou exigem que se crie riqueza.


A pergunta é simples: quem vai pagar? Aonde há recursos financeiros para distribuir, para pagar as benesses e os benefícios, para sustentar aumentos de salários, subsídios e pensões, assim como para custear o aumento das despesas com a saúde, a educação e a segurança social? É tão estranho vivermos num país onde a principal preocupação é a de gastar dinheiro, mas nunca ou quase nunca de fazer dinheiro, criar negócios, desenvolver actividades e, numa só palavra, criar riqueza! 

Uma coisa sabemos: gastar sem criar pagar-se-á muito caro dentro de pouco tempo.

Público, 3.9.2022

 

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2.9.22

“Oh filho! Para chatices já basta a vida!”

Por Joaquim Letria

Se o meu avô Joaquim me tem criado hoje, eu era um pequeno monstro do politicamente incorrecto, porque ele ensinou-me que um homem, para ser homem, tem de:

1.- Gostar de mulheres;

2.- Conhecer e apreciar pelo menos duas óperas italianas, uma francesa e uma alemã;

3. - Ir ao Teatro vestido a preceito pelo menos uma vez por mês e chegar sempre a horas;

4.- Saber de cor uma tirada de Gil Vicente e uma fala de Garrett, mesmo que seja aquela do “Romeiro, quem és tu?”;

5.- Distinguir meia verónica duma  chicuelina e não se impressionar por dispensáveis adornos e desplantes;

6.- Não querer mais do que lhe pertence e defender o bom nome na praça pública.

Foi por mor destas regras antiquadas e duma esmerada educação que vi Palmira Bastos morrer de pé diversas vezes, Erico Braga faiscar o monóculo para as frisas da boca de cena, Amélia Rey-Colaço sucumbir ao vozeirão de Raul de Carvalho, Humberto Madeira tocar trompete sem instrumento, João Villaret parolar o fado falado, Irene Isidro pôr discípulas no seu lugar, a Callas render-se a Alfredo Kraus em São Carlos, Renata Scotto calar o Di Stefano no Coliseu, Carlos Arruza e Conchita Citron, Ordoñez e Dominguin disputarem voltas ao ruedo e cravos da barreira, Ribeirinho no Trindade à espera de Godot, João Guedes e Carmen Dolores a encherem o palco do Império muito antes da Igreja ser Universal e ainda estávamos todos nós horrivelmente longe do Reino de Deus.

Claro que Tony de Matos no Maxim e Mari Carmen no Nina também me ajudaram na difícil carreira de me tornar um homem aos olhos do meu avô Joaquim que me espreitava orgulhoso, apenas não escondendo o seu desagrado por eu não o acompanhar aos filmes da Esther Williams para antes ir ver um De Sicca ou um Rosselini, não porque ele se opusesse ao neo-realismo, mas porque “oh filho! Para chatices já basta a vida!”

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1.9.22

A demissão de Marta Temido e o SNS

 

Por C. B. Esperança
Estão de parabéns os bastonários da saúde, os hospitais privados, o PR que, segundo a RTP, já tinha puxado as orelhas ao Governo, como se tivesse legitimidade para tal ou a função lhe permitisse a reincidente perturbação do Governo, e os partidos da oposição, os únicos com legitimidade política no combate partidário.

Feriram o Governo e derrubaram a talvez mais bem preparada ministra que tutelou o SNS. Muitos hão de sentir remorsos de terem embarcado no coro de críticas, mas será tarde. 

Quem, como eu, foi funcionário público efetivo, com vínculo definitivo, sem usufruir de qualquer apoio médico ou medicamentoso, e que hoje recebe do SNS um serviço de excelência, com inexcedível dedicação, desde os técnicos de análises, aos enfermeiros e médicos que o têm assistido, não pode deixar de execrar os bastonários da Saúde e os comentadores ideologicamente comprometidos na obstinação dos ataques e na procura de eventuais insuficiências do SNS para o derrubar e a quem o tutela. Seja quem for!

Recordo, desde o tempo do salazarismo, quando a insensibilidade perante a saúde dos portugueses era regra, os esforços de Miller Guerra, Pinto Correia e outros médicos para dotar o País de carreiras médicas que reduzissem drasticamente os níveis de mortalidade infantil, materno fetal e de tuberculose, entre outras doenças que, com o analfabetismo, colocavam Portugal ao nível do 3.º Mundo.

Assisti com apreensão aos debates que criaram o SNS, à força com que se lhe opunham o PSD e o CDS, além dos tubarões da medicina que incluíam muitos médicos do PS.

Hoje, com o êxito notável e a popularidade adquirida pelo SNS, são os adversários de sempre que dizem defendê-lo e procuram boicotá-lo. Esquecem-se, por exemplo, que os médicos são pagos na sua formação, durante longos anos, sem que o Estado exija, como devia, igual número de anos de dedicação exclusiva. É evidente que os profissionais de saúde devem ver revalorizadas as suas carreiras, como Marta Temido procurava fazer.

O ministro António Arnaut, o Secretário de Estado Mário Mendes e o chefe de gabinete do ministro, Manuel Sá Correia, médicos distintos os dois últimos, ergueram, contra os interesses privados e os caritativos, os partidos de direita e os médicos privilegiados, o SNS que agora, dizendo defendê-lo, tentam aniquilar.

Quando as coisas correm mal aos doentes nos hospitais privados são os públicos que os recebem e são estes que ficam habitualmente com os tratamentos mais dispendiosos.

Há, na cidade onde ora me encontro, um hospital privado que, há vários anos, exala um cheiro nauseabundo, insuportável para quem entra ou sai, vindo dos esgotos, e que não resolveu. Se fosse público, abriria telejornais, o/a ministro/a da Saúde seria perseguido por jornalistas diariamente e os comentadores preencheriam os intervalos da guerra, da pandemia, das declarações dos bastonários da Saúde e do PR português com o assunto.

Na saída de Marta Temido do Governo, deixo-lhe aqui o testemunho da minha gratidão pela sua competência, dedicação e coragem com que dirigiu o ministério. A resistência aos ataques, tantas vezes injustos e de mera animosidade partidária, não apagam o seu apego ao serviço público e o que lhe devemos na forma como enfrentou a pandemia e procurou servir todos os portugueses.

Obrigado, Marta Temido.

Ponte Europa Sorumbático

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