31.7.21

Grande Angular - Louvar Otelo

Por António Barreto

A morte de Otelo Saraiva de Carvalho desencadeou uma inesperada controvérsia na sociedade portuguesa. É herói ou não é herói? Merece ou não o “luto nacional”? Deve ou não ser recordado com um monumento?

Mais do que a personagem de Otelo, que é simples e pouco interessante, o que realmente surpreende é a reacção de tantos portugueses que ainda se revêem nesta figura e no percurso. Tristes os que se identificam com tão fracos heróis!

Depois de ter diligentemente participado, com honra e eficácia, em duas frentes da guerra colonial, Otelo insurge-se contra a ditadura. Graças aos seus talentos de organizador, assumiu as funções de “estratego” do golpe, isto é, das operações de Abril. Não foi “estratego” político, para o que não tinha conhecimentos. Mas tratou ao pormenor dos preparativos e da logística. Coordenou a criação do dispositivo militar. Comandou o desenrolar das operações que foram por si lideradas com indiscutível êxito. Sem violência física e sem ter derramado sangue, o que ficará, para sempre, a seu favor e para nosso bem. Se o golpe e a revolução tivessem gerado violência, ainda hoje teríamos um país muito diferente e pior.

Otelo merece consideração profissional. Com capacidade, serviu na guerra colonial em duas frentes, pelo que foi louvado e promovido. Também merece respeito político. Com inegável êxito, liderou as operações que derrubaram a ditadura. Também por isso foi louvado e promovido.

Não são dele a orientação política nem o programa, para o que não tinha sabedoria. Mas colocou o seu talento ao serviço da insurreição política. Merece aplauso, que recebeu em devido tempo. E que ainda hoje recebe, dado que os seus admiradores se contam por milhares. Mesmo altas autoridades, que não optaram pelo “luto nacional”, não deixaram de aparecer no velório.

Depois do 25 de Abril, Otelo desempenhou altas funções políticas e militares, sempre a favor da revolução, raramente a favor da democracia. Pertenceu a todos os órgãos revolucionários militares, liderou o COPCON, um autêntico quartel-general da revolução. Sob seu comando, com mandatos assinados por si e com o seu patrocínio, pessoas foram detidas, capturadas e batidas, contas bancárias foram congeladas, casas e empresas foram ocupadas. Otelo e o COPCON governaram, durante uns meses, Lisboa e grande parte do país, com terror e intimidação.

Otelo opôs-se ao voto nas eleições constituintes e aconselhou o voto em branco, contrariou a Assembleia Constituinte e patrocinou o mais sinistro dos planos políticos, o “Documento Guia da Aliança Povo MFA”, que a Assembleia do MFA aprovou e que se destinava a destruir qualquer hipótese de Estado de direito e de sistema democrático. Lutou contra os partidos democráticos e contra o “Grupo dos Nove”, intimidou o PS, o CDS e o PSD, competiu com o PCP, com o qual teve querelas. Dirigiu várias iniciativas revolucionárias, todas anti-democráticas, como as organizações do Poder Popular, os GDUP, a FUP e as FP-25.

Nunca defendeu eleições livres para a criação de poder legislativo, nunca lutou pelo Estado de direito, sempre atacou o regime parlamentar e o sistema democrático. Foi derrotado no 25 de Novembro pelas forças democráticas. Como foi derrotado por duas vezes que concorreu às eleições presidenciais. Contrariou todas as tentativas de criação de instituições representativas. Sem pensamento político próprio, pastoreou os grupos revolucionários que lhe batiam à porta e que ele alegremente apadrinhou.

Tendo sido derrotado e depois de afastado de qualquer função política ou militar de relevo, Otelo enveredou por uma carreira de conspiração e de organização de acções revolucionárias e terroristas. Apesar de condenado sem hesitações, foi amnistiado.

Se o critério for o da liberdade e da democracia, os portugueses devem-lhe pouco. Apenas lhe devem a organização do 25 de Abril, ponto final. Depois, exagerou nos seus desmandos, nas ameaças e nos atentados. Apesar disso, transformou-se num símbolo de Abril e da liberdade. É pena, pois foi o pior que Abril nos deu. E se Abril nos deu a liberdade e a democracia, foi apesar de Otelo, não graças a Otelo.

É infeliz notar que tantos políticos, intelectuais, académicos e jornalistas consideram Otelo o símbolo da liberdade e cultivam o mito de Otelo como construtor da democracia, quando ele nada fez por isso, bem pelo contrário, foi uma das suas piores ameaças.

Boa parte das esquerdas, sobretudo as esquerdas mais radicais, sempre teve um problema com a violência e o terrorismo. Se forem praticados “contra o capital”, contra o “imperialismo e o colonialismo”, contra “os ricos” e contra as “classes dominantes”, os actos violentos têm desculpa, são erros de passagem ou mesmo glórias inesquecíveis. Há esquerdas que nunca condenaram a violência, toda e qualquer violência. Há esquerdas que só depois de verem o bilhete de identidade é que condenam ou apoiam a violência. A simetria funciona também. As direitas sempre entenderam que a violência era necessária e bem-vinda contra os revolucionários e contra as esquerdas.

A violência e o terrorismo em África, no Próximo Oriente, na América Latina, mesmo nos EUA e em certos países europeus, não só não foram condenados, como foram justificados. As Torres gémeas de Nova Iorque foram festejadas por muitas esquerdas europeias. As Brigadas Vermelhas italianas, o Exercito Vermelho alemão, a ETA espanhola e o IRA irlandês acabaram quase sempre por ser louvados pela esquerda radical ou perdoados por esquerdas mais suaves. Apenas esquerdas mais moderadas souberam condenar sempre a violência e o terrorismo.

Cada vez que as esquerdas são colocadas perante o absurdo dos seus louvores à violência de esquerda, respondem com brutalidade: mas as direitas também! E citam, para justificar os seus desmandos, Marcelino da Mata, Wiriyamu, as tropas portuguesas em Nabuangongo e na Baixa do Cassanje. Para já não falar dos assassinatos e das torturas de que a PIDE foi responsável. A fraqueza deste argumento é absoluta. Não há, como no tempo e nos escritos de Trotsky, uma moral “deles” e uma “nossa”.

A democracia pode desculpar os seus inimigos. Pode perdoar a violência e o terror. É discutível, mas percebe-se. Não pode é louvar os terroristas. O luto nacional não é apenas isso, luto. Nem só recordação. É também louvor. Louvar Otelo seria simplesmente aceitar a violência. Os democratas podem perdoar os seus inimigos. Mas não louvar.

Público, 31.7.2021

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30.7.21

O SAL DA ESCRITA

Por Joaquim Letria

Há, pelo menos, quatro categorias de gralhas. As primeiras são as que se subtraem ao bom critério de quem lê mas que carecem de importância ainda que molestem a vista e a atenção. Outras, as que trocam uma palavra por outra, também correcta em si mesma, que são as mais perigosas porque podem induzir a desorientações e a alguns erros.

As terceiras podem ser aquelas que inventam uma palavra, capazes de desorientar filólogos e outros estudiosos ou curiosos das línguas e, por fim, as que levam o ouvido a confundir duas noções diferentes, muito utilizadas estas últimas nos meios audiovisuais e outros propagadores da cacofonia.

As primeiras são muito cordatas: escrever, por exemplo,”choclate” em vez de chocolate numa frase em que se fala de pequeno almoço com torradas, manteiga e geleia de laranja. As segundas podem ser incómodas, uma vez que a leitura permanece correcta. Falar do open do pénis da Austrália em vez de ténis, por exemplo…

Das terceiras podemos servir-nos do exemplo de “comer uma maca por dia dá saúde”. Claro que neste caso temos de explicar que onde se lê maca se deve ler maçã. Por fim, as últimas podem ser encontradas em referências a alguém “experiente e responsável” escrevendo antes sobre essa mesma pessoa tratar-se de “alguém “experiente irresponsável”, o que involuntariamente pode ser ofensivo.

As erratas nunca, ou raramente, resolvem os problemas. As gralhas têm de ser lidas com um certo aborrecimento, com muita paciência e, a maior parte das vezes com um sorriso indulgente e divertido.

É bom não esquecer que há quem chame às gralhas o sal da escrita…

Publicado no Minho Digital

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29.7.21

A toponímia, a História e outras histórias – Crónica

 Por C. B. Esperança

Percorria o cronista a Rua Direita, na vila de Almeida, rua que há gerações preserva o nome, quando, numa esquina, encontrou matéria para a crónica que há de surgir.

Tantas vezes, em quase oito décadas de vida, calcorreou o arruamento que os pais, avós e o próprio só conheceram pelo nome de Rua Direita, assim a designam os residentes, que foi surpreendido com o nome em que, durante as últimas décadas, não reparou ou esquecera: “Rua dos combatentes mortos pela Pátria – Rua Direita”.

É interessante que, à semelhança de muitas outras localidades, a Rua Direita, topónimo generalizado, seja sinuosa, as casas não foram construídas ao longo da rua, foi esta que surgiu ziguezagueante no espaço entre as casas. 

O cronista recordou então o autarca que, no rescaldo da guerra colonial, a crismou, sem abolir o nome de batismo, para homenagear, a pretexto dos jovens que aí morreram, o regime que lançou o País na guerra colonial.

Quantas crónicas podiam escrever-se sobre o tema e quantas memórias vieram à mente do escriba!

Em Coimbra, a rua que homenageia um ex-PM autóctone chama-se ‘Avenida Professor Doutor Carlos Alberto da Mota Pinto’, o que certamente terá levado muitos, quando era frequente enviar cartas, a terminar o endereço na mesa, por ser o envelope estreito para escrever tão extenso nome.

A criatividade dos autarcas é espantosa, lembram a imaginação de anónimos poetas que escreviam nas paredes das retretes dos cafés no século passado. Relembrei duas quadras que decoravam a retrete dos homens, no Café Martinho, em Lisboa, cujo último verso seguia a lógica do nome completo da referida avenida:

Quando vires uma mulher perdida 

Não a olhes com desdém

Porque Deus quando castiga

Não tem obrigação absolutamente nenhuma de dar satisfações a ninguém.

e

Corria rija a festa,

Soprava forte o vento

Qu’inté apagava as velas da procissão

Aos irmãos da Sagrada Confraria do Santíssimo e Divino Sacramento.

Uma crónica é uma conversa com os leitores, e as conversas são como as cerejas, queira o adágio significar o que quer que seja, talvez porque a memória vai e vem, foge e volta, em sucessivas associações, por semelhança ou contraste, e foge de novo para regressar ao ponto de partida, no tempo e no espaço.

Eis-me de novo a recordar o edil do CDS que crismou a rua, que se dizia do CDZ e não do CDS, porque o Z estava à direita do S, e, por ironia, em vez de enaltecer o regime e transformar em heróis as vítimas, acabou por referir os ‘combatentes’ que a Pátria (leia-se ditadura) assassinou: “Mortos Pela Pátria”.

Bem podia a Pátria ter evitado matá-los, bastava um governo democrático.

Ridendo castigat mores.

Almeida, 25 de julho de 2021 (e.v.), 

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27.7.21

Na Revista "Nova Costa de Oiro" de Julho de 2021


«
Aqueles que não conseguem lembrar-se do passado estão condenados a repeti-lo» - George Santayana (1863-1952)

 

TUDO começou quando, no dia 7 de Junho do ano passado (já a pandemia estava, havia três meses, a fazer estragos entre nós), umas quantas pessoas se lembraram de organizar, em Odiáxere, uma daquelas festas que toda a gente já sabia serem perigosas para a saúde pública.

Chamada ao local, na sequência de queixas da vizinhança, a GNR interveio, pôs fim àquilo... e ficámos todos à espera das consequências legais e sanitárias.

Quanto a estas (que, como se sabe, não se fizeram esperar), dei-me ao trabalho de, ao longo de algum tempo, anotar os números de infectados divulgados pela Comunicação Social — e havia-os para todos os gostos, pois umas vezes eram contados em função do local onde se faziam os testes, e outras de acordo com as moradas oficiais.

E foi assim que, de 19 para 20 desse mês, tivemos direito a, pelo menos, três números (52, 90 e 119), qualquer deles bem preocupante, tendo em conta que o Verão começava nesse mesmo dia 20, prenunciando consequências graves para quem depende do turismo como nós — problema acrescido pelo facto de a ocorrência já ser notícia por esse mundo fora, com destaque para o “The Times”, jornal de referência na Grã-Bretanha, o maior emissor de turistas para a nossa região.

Talvez por isso Lagos recebeu um dispensável tratamento VIP: sim, foi nada menos do que a Senhora Ministra da Justiça que veio a terreiro anunciar, com o estrondo que a sua função lhe permite, o que em cima se pode ler: queixa formal ao Ministério Público e exigência de indemnizações para o Estado, por ter sido lesado em tudo o que implicava despesas com o SNS — e ainda nessa coisa intangível, mas não menos importante, chamada IMAGEM, do país e da região.
No seguimento disso, e como na canção “Pedro Pedreiro” do Chico Buarque, ficámos “esperando, esperando, esperando”... até hoje. No entanto, e salvo melhor opinião, os lacobrigenses têm o direito de saber em que pé estão (ou em que ficaram) as coisas: ainda está tudo “em estudo”? Ou houve, de facto, consequências, só que não foram divulgadas? Ou ficou tudo em “águas-de-fiel-amigo”, que é o habitual neste país, cuja Justiça raramente merece ser referida com letra maiúscula?

 

À DATA em que escrevo — passado que foi exactamente um ano —, e olhando para os dados que vejo no gráfico, parece que não aprendemos nada. Já sei que os optimistas dirão que “Hoje estamos mal, mas amanhã podemos estar bem”, que “Fazer previsões baseadas no passado é como conduzir um carro olhando pelo retrovisor”, que sou um “Profeta da desgraça”... e por aí fora, como é típico de quem despreza tudo quanto seja previsão ou autocrítica; mas não fui eu o autor da frase que se lê em epígrafe, e, pelo menos à data, tudo indica que estamos (aqui e no país todo) a entrar numa 4ª vaga, de dimensões e consequências ainda imprevisíveis.


E QUANTO a prevenção individual? Nesse aspecto, a maioria da população do nosso concelho dá mostras de respeitar as normas básicas de segurança sanitária. Mas, infelizmente, vai alguma diferença entre essa MAIORIA e a TOTALIDADE, vendo-se muitas pessoas que, na via-pública (e até à porta de escolas!), parecem apostadas em disseminar a doença, numa atitude antissocial que, pelos danos que nos pode causar a todos, já não se combate com a treta da “pedagogia” — até para que nunca se nos aplique o diálogo da rábula de uma antiga “revista à portuguesa”, e que cito de memória:

 

— Ó Zé, e o que faz a polícia?!

— Olha, filha, como isto é uma terra balnear... nada! 

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25.7.21

A MINHA EXPERIÊNCIA COMO PROFESSOR


Por A. M. Galopim de Carvalho

(40 anos de vida na Faculdade de Ciências, dos quais, 15 na de Letras, em Geografia)


Terminada a licenciatura em Ciências Geológicas, em 1961, e sem qualquer preparação pedagógica, comecei imediatamente a leccionar, como assistente, em aulas práticas, na Faculdade de Ciências de Lisboa. Nos últimos anos de uma cristalografia essencialmente morfológica, baseada nas medidas de ângulos entre as faces dos cristais, e no começo de uma outra, dita estrutural, a penetrar no âmago da matéria cristalina e fundamentada nos arranjos tridimensionais dos respectivos átomos, tive à minha responsabilidade as aulas práticas de Cristalografia e de Mineralogia, sob a orientação do titular da cadeira, então o Doutor Rodrigo Boto, um compêndio vivo nestas matérias. Com ele ganhei um gosto especial pelo estudo dos minerais, uma semente que guardei ao longo dos anos e que, mais tarde, deu os seus frutos nos vinte anos (1983-2003) em que tive a meu cargo o sector de Mineralogia e Geologia do Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa. Só após o doutoramento me iniciei na regência de aulas teóricas. Os tempos eram outros e os jovens docentes eram preparados para prestar serviço na maioria das disciplinas da licenciatura. Da Cristalografia, Mineralogia e Petrologia, passando pela Geologia, Paleontologia e Geomorfologia, à Sedimentologia e Jazigos Minerais, quer em trabalhos práticos no laboratório e no campo, quer em aulas teóricas, em auditórios repletos de alunos, os docentes dos anos 60 e 70 eram conduzidos a uma visão ecléctica da sua área científica. Um tal eclectismo estava bem patente nas modalidades de doutoramento e de agregação de então que, para além das respectivas dissertações, incluíam provas teóricas e práticas incidindo sobre a totalidade das disciplinas da respectiva área. 

Como hoje, a par da investigação científica, o docente da minha geração criava a sua própria pedagogia. Definia os conteúdos das suas cadeiras, regia-as a seu modo e, no final do ano, examinava os seus próprios alunos. A diferença com os tempos presentes está no facto de os actuais docentes, praticamente, só leccionarem as matérias afins do seu domínio de investigação. Desta nova visão do ensino resulta que grande número de docentes dos dias de hoje são, logo de início, conduzidos a especialização, adquirindo muitos conhecimentos num domínio bem delimitado, e muito poucos no restante saber abrangido pelo universo científico do respectivo departamento, incluindo aquele saber que nos habituámos a considerar como cultura geral.

Ao iniciar funções docentes e, como disse, sem qualquer formação pedagógica, era minha convicção, que confirmei ao longo dos anos, que aprender a gostar de saber é uma das chaves que abre o caminho ao sucesso escolar. As outras, que a experiência me ensinou, são, por um lado, inculcar no aluno a consciência do dever cívico de estudar e, por outro, estimular-lhe a auto-estima. 

Quaisquer que sejam as matérias em causa ou o nível de escolaridade ou etário do aluno, estas chaves fazem dele alguém que encara o estudo como uma condição de cidadania e que, além disso, tem gosto em estudar e que frequenta a escola com prazer. Para tal, o professor tem de conseguir estabelecer com o aluno uma aproximação de confiança e afectividade mútuas que lhe permita actuar, com êxito, nestas vertentes.

Em algumas disciplinas da minha responsabilidade, como regente, de entre as mais avançadas e com menor número de alunos, informava-os, logo nas primeiras aulas, da meia dúzia de temas sobre os quais incidiria o essencial da avaliação final e acrescentava que, de entre eles, tirariam dois, à sorte e com quarenta e oito horas de antecedência, sobre os quais dissertariam ao nível da preparação que adquirissem. Durante as aulas sempre fiz questão de prender os alunos ao tema em tratamento, desencorajando-os de, como era seu hábito, tomar apontamentos de tudo, frase a frase, estenograficamente. Convidava-os a acompanharem a exposição, a reflectirem e a atingirem conceitos novos com base em dados adquiridos e ideias já formadas. Relativamente aos temas essenciais, passíveis de avaliação em exame, avisava-os disso e indicava-lhes a bibliografia que deveriam consultar. Face a outros temas, não essenciais, mas que me não dispensava de abordar, acrescentava que não seriam matéria de exame e que bastava que me seguissem com atenção, e que, caso isso os interessasse, podiam sempre retomar o tema, comigo, ou consultar o livro mais adequado. Esta metodologia funcionou sempre bem e com bons frutos.

Por razões diversas, umas conhecidas, outras não, é frequente numa qualquer turma haver um, dois ou mais alunos menos motivados e visivelmente desinteressados das matérias em apresentação. Face a esses alunos, logo identificados nas primeiras aulas, adoptei uma estratégia que quase sempre resultou. Dava-lhes mais atenção, procurando estabelecer com eles um relacionamento de simpatia, que não era difícil transformar em amizade, e lhes tornava agradável a presença e o convívio na sala de aula. Colocava-lhes problemas simples, ajudando-os, se necessário, a resolvê-los, sem que se dessem conta dessa ajuda. Posto isto, elogiava-os na presença dos colegas, dava-lhes consideração e tratamento que acabava por os estimular a estudar e, assim, continuarem a merecer essa consideração. O resultado deste procedimento era, quase sempre, ganharem gosto pelas matérias, pelo seu estudo e, sobretudo, a já referida auto-estima.

- Estuda-se para saber e não para passar no exame. - Dizia-lhes sempre que surgia oportunidade para o lembrar, rematando. - É o saber que nos valoriza como profissionais e como cidadãos. E o saber pressupõe trabalho.

Numa época em que os alunos faltavam muito às aulas teóricas, aulas que, em alguns casos, eram perfeitamente substituíveis pela correspondente e hoje, felizmente, desaparecida sebenta, a grande maioria dos alunos assistia às minhas aulas do primeiro ao último dia. Uma grande aproximação entre alunos e professores foi, aliás, uma característica do nosso departamento de Geologia, e o principal potenciador dessa vivência era o convívio no campo, durante as saídas que fazíamos e cuja frequência tem vindo, infelizmente, a diminuir. Passar dias juntos, em plena natureza, comer a merenda sentados no chão em cordial camaradagem, favorece essa aproximação, com efeitos positivos na vivência académica. Nos exames, o aluno sentia-se na presença de um professor com quem tinha um bom relacionamento e não na de um qualquer examinador desconhecido. Sempre dei grande importância ao exame oral, quanto a mim, o que melhor avalia o aluno. Nunca apreciei, nem enquanto aluno nem, mais tarde, como professor, o estilo de orais, nas quais o examinador fazia uma pergunta e ficava, calado, à espera da resposta que, ou não vinha ou era recitada, estereotipadamente.

Em quatro décadas de docência na Universidade de Lisboa, contam-se por milhares os alunos que examinei, ou avaliei, como se passou a dizer a seguir à revolução dos cravos, por repúdio, por parte dos alunos, do substantivo exame e do verbo examinar, (do latim examinare, avaliar, pesar) expressões conotadas com o regime execrável acabado de derrubar. Foi o fim dos exames e o nascimento dos testes, um tema que os sociólogos e os historiadores saberão explicar, e que constitui um capítulo do período conturbado que se seguiu imediatamente ao 25 de Abril, no seio das universidades portuguesas. Nas provas escritas muitos são, entre alunos e professores, os que preferem os testes “à americana”, com respostas imediatas, no estilo de colocar uma cruz numa casinha entre duas, três ou quatro, à escolha. São cómodos e rápidos de classificar, mas estão longe de avaliar, na íntegra, o examinando. Não foi este o meu modo de conceber os pontos de exame. Sempre preferi as questões proporcionando respostas escritas, mais ou menos desenvolvidas. Permitem melhor aproximação ao estado de preparação do aluno, não só na disciplina em avaliação, como na globalidade dos seus conhecimentos, organização das ideias, capacidade expositiva, maturidade intelectual. Esta modalidade de exames representa um esforço maior por parte do professor incumbido de os classificar, mas tem vantagens na justeza dessa classificação. Deste esforço sobressai, muitas vezes, demasiadas vezes, o ter de se confrontar com a má utilização da língua materna, a deficiente ortografia e a péssima caligrafia reveladas por um número preocupante dos nossos alunos, fruto de um ensino vindo de trás, que deixa muito a desejar e que os mesmos sociólogos e historiadores saberão, igualmente, interpretar. Por tudo isto sempre achei mais agradável e repousante o exame oral, até porque, em geral, os nossos alunos ainda falam melhor do que escrevem.

Comigo, na situação de encarregado de uma regência e em determinadas disciplinas, não havia prova escrita. Todo o aluno ia à oral e a oral era uma conversa. Neste tipo de provas e seguindo o exemplo do meu velho Professor Torre de Assunção, iniciava o interrogatório com um qualquer assunto que, certamente, o aluno me inspirava, num diálogo prévio de aproximação. A dada altura começava a introduzir na conversa um tema da disciplina em avaliação, dando ao meu jovem interlocutor a oportunidade de entrar no diálogo que se prolongava, menos ou mais, em função da sua participação. Nas provas de alunos com muito boa preparação, não se dava conta do tempo, que corria veloz. No caso dos alunos mal ou muito mal habilitados, eu não me calava, continuava a dissertar, percorrendo a matéria dada nas aulas, na busca de um tema que permitisse estabelecer diálogo, sem sujeitar o aluno ao desconfortável e embaraçoso silêncio que sempre se segue a uma pergunta para a qual ele não tem resposta. Findo algum tempo, quinze minutos, no máximo, interrompia o monólogo, pondo termo à prova com bom trato e simpatia que, casos houve de alunos que só a palavra Excluído, escrita na pauta, frente ao seu nome, lhes dava a certeza de terem reprovado.

Um certo dia, um aluno, já homem feito e pai de família, um trabalhador-estudante que não frequentava as aulas teóricas porque trabalhava o dia todo no seu emprego, ao levantar-se da cadeira, à minha frente, no final de uma prova oral da qual saía excluído, confessou-me que viera à sorte, “a ver se calhava”, mesmo que fosse um dez. Isto porque lá na sua repartição, a licenciatura permitir-lhe-ia subir de posto. Para ser chefe o que era preciso era ser doutor. Não interessava a licenciatura, fosse ela em História, Filosofia ou Geologia, não interessava. O que era preciso era ter o canudo. E ao despedir-se disse-me, o que muito me agradou ouvir, que nesta prova aprendera a gostar da matéria e que, cá estaria, no próximo ano, bem preparado. E assim aconteceu.

 

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24.7.21

Grande Angular - Para nosso bem

Por António Barreto
Há quem pense que as liberdades e os direitos fundamentais, sobretudo os cívicos e os políticos, assim como os valores morais e culturais, devem depender do dinheiro, do nome e da boa educação. Em geral, essas pessoas situam-se à direita. Mas também há os que acreditam que os direitos e as liberdades dependem do poder, do partido e da classe social. Em geral, essas pessoas situam-se à esquerda. Tanto num caso como noutro, estamos, evidentemente, diante de ditaduras e de sociedades despóticas. Em comum apreciam as suas liberdades, não as de todos. Querer a liberdade para si não é sinal de liberdade.

É verdade que os interesses são muito fortes na formação de opiniões e os seres humanos são egoístas. Assim, é natural que primeiro se queira as liberdades e os direitos para si, depois para os outros. Talvez. Mas também é verdade que a humanidade fez alguns progressos e que os seres humanos, alguns pelo menos, são solidários. O que quer dizer que também há gente que quer a liberdade e os direitos para os outros. Há gente que entende mesmo que a sua liberdade e os seus direitos só fazem sentido se forem também a liberdade e os direitos de todos. A melhor vida em comum, em sociedade, é justamente essa, a que entende que os direitos e a liberdade devem ser entendidos como bem comum. E que a liberdade e os direitos de todos exigem a diferença e a contradição, sem exclusão. E sem a ideia de que a liberdade tem apenas um sentido e que esse sentido deve ser imposto a todos.

As direitas nunca gostaram particularmente das liberdades, nem dos direitos democráticos, excepto quando se sentem ameaçadas. As direitas são ciosas das liberdades dos seus correligionários, dos nomes de famílias ilustres, dos poderosos e dos religiosos conservadores. As esquerdas são atentas às liberdades e aos direitos dos seus camaradas, da sua classe social e dos seus intelectuais orgânicos, nunca das dos seus adversários.

Historicamente, os socialistas ocuparam um lugar singular. Entre todos, foram os que se preocuparam quase sempre com as liberdades de todos. Tentaram encontrar uma ponte entre liberais e jacobinos, entre mercado e Estado, entre maçonaria e Igreja. Até entre republicanos e monárquicos. O seu papel na democracia portuguesa não se define pelos seus contributos para a economia e o desenvolvimento, mas sim por este lugar singular, o de força charneira e de mediador.

Com a lei dos direitos digitais e as novas tentativas de controlar a expressão, as narrativas, o tom e a opinião, os socialistas estão a destruir esse lugar especial. Eles gostam de afirmar, com evidente marialvismo, que “não recebem de ninguém lições de democracia”. Mas é frase para esquecer. Qualquer democrata sério sabe que está sempre a receber lições de democracia e de liberdade. Verdade é que, com essa malfadada lei e com outros fenómenos convergentes, os socialistas estão a abrir um caminho sem regresso.

Já tivemos uma manifestação de dezenas de académicos, ou antes, de universitários que propuseram às autoridades que fossem criados mecanismos de monitorização do pensamento e da expressão. A pretexto de defender a verdade e a correcção das narrativas e dos valores, os autores reclamavam ciência e bondade, mas realmente convocavam a censura.

Já existem instituições europeias, financiadas pela UE, que zelam pela verdade e pela virtude, que se ocupam dos factos e dos discursos. Felizes de nós, europeus, que temos uma grande instituição, uma mãe zelosa, uma União que financia organismos que se ocupam da verdade, das narrativas, da desinformação e das falsas notícias. O Estado português colabora. O Governo e o Parlamento acrescentam mesmo mecanismos de controlo, com que criam um quadro de honra do comportamento.

Já temos uma lei aprovada por grande maioria com a qual as autoridades patrocinam instituições privadas e corporativas a fim de fazer com que tais aberrações monitorizem a expressão e o discurso público. Esta lei encontra-se agora em fase de improvável correcção, mas não de pura e simples revogação, que era o único método decente. Já há ideias absurdas que propõem instituições que distribuam selos de garantia e certificados de verdade, correcção e competência para avaliar os outros. O Governo e a maioria parlamentar não querem ser eles próprios a controlar: querem associar a esta tarefa execrável de delação e censura as instituições e organizações da sociedade civil. Partindo da ideia de que cada português é, como noutros tempos, um polícia e um inquisidor.

A completar este dispositivo de controlo, temos a pressão insuportável para o desenvolvimento, nas escolas, das disciplinas de formação moral. A ideia é, mais uma vez, a da criação de bons cidadãos, isto é, de difundir bons valores. Esta deriva não democrática e manipuladora é uma tentativa de regular a filosofia, o pensamento, a cultura, a moral e os valores das populações escolares. Entendem os seus autores que a escola é o instrumento de formação de espíritos, de aprendizagem e de convencimento dos valores nas artes, na cultura, na sexualidade, na religião, no civismo. O Santo Ofício, em seu tempo, também olhava com atenção para a blasfémia e a heresia. Também se ocupava das crenças indevidas e dos cismas.

Como é possível que os socialistas, em todo o caso a maioria dos dirigentes e deputados, se tenham deixado atrair pela volúpia da censura, da intoxicação e do controlo da expressão e do pensamento? Em toda esta história, à volta destes tristes acontecimentos, este é o facto mais surpreendente: o papel desempenhado pelos socialistas. Estes querem dar continuidade a uma frase atribuída ao rei liberal D. Pedro IV. Ao chegar ao largo de Mindelo, horas antes do desembarque, o monarca, dirigindo-se a Mouzinho da Silveira, terá dito: “Vamos lá dar a liberdade a estes Portugueses, quer eles queiram, quer não!”. É possível que seja verdade. É provável que seja uma invenção dos jacobinos que se ocupam da liberdade dos portugueses. Como pode ser uma anedota miguelista ou salazarista para aludir a um pretenso afecto dos portugueses pela autoridade.

Mas é, em todo o caso, o melhor retrato dos socialistas actualmente. Querem dar aos Portugueses a liberdade, o bom comportamento e a virtude. E querem ser o instrumento de luta contra a desinformação e a mentira. Ora, convém não esquecer: uma autoridade que se ocupa da mentira acaba por se ocupar da verdade. Uma entidade pública que vigia a desinformação acaba por criar a informação. Pela verdade e para nosso bem: o despotismo começa sempre aí.

Público, 24.7.2021

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23.7.21

TÃO FRIOS COMO OS MENINOS DIZIMADOS

Por Joaquim Letria

Mais de 40 mil crianças trabalham em Portugal para sobreviverem ou ajudarem a família. São números que ninguém consegue disfarçar. Querem estes números dizer que se tivessem fins de semana e se pudessem organizar-se, estas crianças portuguesas encheriam o Estádio José de Alvalade.

Notícias que entretanto nos chegam de África também nos dão conta de milhares e milhares de outras crianças dizimadas pela fome, pela doença, pela guerra e abusadas para renderem com os seus miseráveis corpos descartáveis os lucros confortáveis de quem as explora na venda, no transporte e distribuição metódica da venda de drogas, corpos e armas.

Tudo isto faz parte do preço inaceitável de sobrevivência. Acabam por ser pagamentos por conta do abate puro, simples e eficaz de quem é capaz de, sistematicamente, exterminar crianças que, de outra forma, seriam uma praga que, de outro modo, não só não daria lucro como criaria despesa e ainda teria de ser alimentada.

Persistem em nos garantir que a criança que existe dentro de nós não morrerá nunca. Talvez assim seja. Mas com o passar dos anos, essas crianças ficarão cada vez mais frias, tão frias e tão duras como os adultos cujas almas habitam, tão mortas, afinal de contas, como os meninos da rua dizimados por quem os explora antes de os abater.

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22.7.21

Paulo Rangel – O algoz tornou-se vítima


Por C. B. Esperança

Muitos portugueses souberam do vídeo divulgado sobre o eurodeputado Paulo Rangel através do próprio. É uma cena de um homem bêbedo em sucessivos ziguezagues numa rua deserta, demasiado estreita, para cambalear à vontade.

Não me merece qualquer reprovação. Quem nunca se embebedou que atire o primeiro copo. Duvido mais dos que nunca cometeram um exagero ou transgressão do que dos santos, e não restem dúvidas de que foi cobarde e pusilânime quem o filmou e, alguns anos depois, o expôs à execração pública.

O argumento mais canalha para justificar a divulgação de cenas privadas é a justificação de que tem interesse público tudo o que se relaciona com figuras públicas. É falso, e diz mais sobre o bufo do que sobre a vítima.

Este caso é, aliás, inócuo para a reputação do político e não me parece que lhe retire votos em eleições. Pode provocar sorrisos, e não é mais ridículo do que tirar as catotas do nariz nas sessões do Parlamento Europeu. 

Dito isto, e subscrevendo o desabafo de Paulo Rangel, num tweet do próprio, não posso deixar de recordar ao arruaceiro das terças-feiras, no jornal Público, os assassínios de carácter que semanalmente faz a adversários políticos.

A razão que ora lhe assiste como vítima perde-a semanalmente como algoz, na aptidão para a chicana e nos ataques ad hominem, contra adversários.

Não se conhece a Paulo Rangel o pudor republicano que o iniba de ampliar campanhas onde os casos pessoais servem, à míngua de argumentos, para denegrir figuras públicas dos partidos concorrentes, nem qualquer ato de solidariedade para com vítimas políticas de campanhas orquestradas para as destruir.

Exige-se a Paulo Rangel, não tanto a Nuno Melo, mais próximo do fascismo, que não se envolva em campanhas negras, e que, de vez em quando, se indigne com a imprensa ao serviço da pior direita, quando divulga conversas íntimas de arguidos, que o STJ manda destruir, por ausência de interesse processual, e que algum magistrado venal se esquece de cumprir, para acabarem na primeira página de um qualquer pasquim.

A razão que ora tem é a que perde no sectarismo que o acompanha e no silêncio a que se remete quando as vítimas são outras.

Paulo Rangel não precisa de solidariedade pelas cenas vulgares que não são infamantes, precisa de se solidarizar com os adversários vítimas da devassa da intimidade através da exposição pública da intimidade e que, ao contrário de uma simples bebedeira, destroem a família, a reputação e a carreira política do visado.

Quanto a quem é capaz de expor cenas privadas de quem quer que seja, que não lesam o país nem têm relevância penal, apenas denigrem os autores, herdeiros dos que nos espiavam nos cafés, escutavam telefonemas ou violavam a correspondência durante a ditadura.

Ponte Europa Sorumbático

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21.7.21

No “Correio de Lagos” de Junho de 2021


QUANDO
 comecei a alinhavar esta crónica, andavam as gentes de Lisboa e arredores a pensar na Covid que lhes iria cair em cima por conta da bagunça em que descambaram os festejos do Sporting; e ainda o pó não tinha assentado, já estávamos a apanhar com outra, desta feita no Porto, a crédito de uns quantos súbditos de Sua Majestade que, viajando numa fantasiosa “bolha”, desembarcaram num país onde o futebol é quem manda, e as leis-da-treta são “fruta de todo o ano”. 

Tendo-nos “posto a jeito”, seguiu-se aquilo que se sabe (a saída de Portugal da lista verde da Grã-Bretanha — a coberto de motivos ou pretextos), e agora aqui estamos nós (portugueses em geral e algarvios em particular) a deitar contas à vida, em busca de bodes expiatórios, mas sem grande vontade de pensar a LONGO prazo, e muito menos de escutar avisos como os de Andrew Grove que, no seu livro «Só os Paranóicos Sobrevivem», alertou, já em 1996, para os sérios riscos que corre quem aposta demasiadamente num determinado produto — e, naquilo que nos toca, não é preciso dizer mais nada.

 

ENTRETANTO, e devido a uma daquelas coincidências que dão que pensar, dei por mim a ler a crónica «Cima do Douro», em que Ramalho Ortigão, em 1885, nos dava conta da arrogância insultuosa com que os ingleses do Porto tratavam os portugueses quando chegava a época de comprar as uvas para as suas caves de Gaia.

Aliás, e duas décadas antes, já Júlio Dinis, em «Uma Família Inglesa», nos falava (embora nos termos suaves que caracterizam toda a sua obra) da sobranceria com que os ingleses da mesma cidade olhavam para nós.

De notar que ambos os autores eram portuenses de gema, pelo que sabiam bem do que falavam.

E perdoe-se-me aqui um apontamento pessoal, pois foi com um sorriso que fiquei a saber que Carlos, o herói da tal “Família Inglesa”, além de meu homónimo, nasceu e cresceu na mesma freguesia que eu, sendo boa parte da história passada onde dei os primeiros passos neste mundo.

 

NOTA FINAL: Um saudoso primo meu costumava dizer que “O Homem só aprende por catástrofes” — mas o certo é que, por cá, só raramente isso sucede. Da mesma forma, já houve quem garantisse, meio a brincar, meio a sério, que “Os portugueses são muito bons a resolver os problemas que eles próprios criam”, numa conclusão à margem do Relatório Porter, no qual, em 1994, se analisavam as nossas vantagens competitivas num mundo globalizado. No entanto, como não li o documento todo, não sei se, entre essas duvidosas vantagens competitivas, constava a nossa proverbial subserviência para com o turista estrangeiro. De qualquer forma, não preciso de andar muito para constatar que não falta quem ache que sim... e aja em conformidade.


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19.7.21

No "Correio de Lagos" de Junho de 2021

 

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16.7.21

O ARCANJO MAL EDUCADO

Por Joaquim Letria

Sempre ouvi dizer que nos devíamos dar bem uns com os outros, como Deus com os anjos. Por isso gosto muito daquele quadro.

Naturalmente que o quadro põe igualmente em causa os métodos pedagógicos do Paraíso ou os processos educativos da Sagrada Família.

O sorriso da Virgem é tolerante, sem nunca deixar de ser claramente firme. Uma outra hipótese  - que o arco e as flechas sugerem – é a do arcanjo ali representado ser o Cupido, e  que uma flechada daquele irrequieto personagem não tenha levado o melhor caminho, espetando-se contra a moral vigente.

Enfim, o mistério deste quadro que contemplo intrigado mas com prazer é de difícil dissipação. Por isto e mais aquilo não restam dúvidas que o arcanjo está a chorar e a ter de se dar um título àquele quadro de anónimo espanhol do Século XVIII se poderia sempre optar por “Madona Sorri a Birra do Arcanjo”.

Ou será que no céu não pode haver, também, anjos mal-educados?!

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15.7.21

No "Correio de Lagos" de Junho de 2021

 

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A deriva autoritária da Europa

Por C. B. Esperança

Quem assistiu ao 25 de Abril de 1974, fim do regime fascista, arrastando consigo mais duas anacrónicas ditaduras, Espanha e Grécia, há de ter pensado que o futuro da Europa seria irreversivelmente democrático.

Há poucos anos, ainda se registava uma crescente vaga democrática que, um pouco por todo o mundo, substituía velhas ditaduras, mesmo em países que nunca tinham vivido em democracia. 

Agora assiste-se ao aumento do número de países que ameaçam os direitos humanos, a liberdade de imprensa e a autonomia dos Tribunais, características liberais dos regimes democráticos. 

A deriva autoritária que regressou progressivamente ao Grupo de Visegrado (Hungria, Polónia, Chéquia e Eslováquia), veio mostrar quão frágeis são as democracias e fortes os apelos nacionalistas, onde se misturam tradições religiosas e velhos ódios em países cujas fronteiras tiveram ao longo da História geometria varável.

A Eslovénia, depois da eleição de Janez Janša, admirador de Trump, tornou-se mais um país eurocético e antidemocrático, que não se revê nos valores civilizacionais europeus, e está mais longe dos valores fundadores da UE, a que ora preside, do que dos países do Grupo de Visegrado. 

Acrescentem-se os partidos abertamente fascistas de países ainda democráticos, em vias de ascenderem ao poder, numa inquietante similitude com o que sucedeu na década de 30 do século passado e, tal como então, ajudados pela propaganda contra os políticos e a corrupção, sendo a democracia o único regime que se submete ao escrutínio e permite a denúncia e julgamento dos corruptos.

Durante décadas as democracias conseguiram sempre assegurar mais bem-estar do que as ditaduras o que as ajudou a sobreviver permitindo aos seus inimigos que as derrubem através de eleições.

Não é líquido que as democracias continuem a assegurar maior crescimento económico, as árvores não crescem até ao céu, do que as ditaduras. 

Os êxitos da China são um motivo de preocupação para todos os que amam a liberdade e repudiam as conceções totalitárias que regressam.

A pandemia veio agravar o fosso entre ricos e pobres, entre países e dentro de cada um deles, e a explosão demográfica, o aquecimento global, a progressiva falta de alimentos e de água potável, de oxigénio e de ozono, e o exacerbamento da xenofobia, do racismo e dos conflitos religiosos, criam o ambiente propício para fragilizar as democracias.

Se os democratas esmorecerem na defesa das democracias liberais, acabarão trocadas por regimes autoritários que farão novos os velhos paradigmas.



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14.7.21

No "Correio de Lagos" de Junho de 2021

 

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12.7.21

No "Correio de Lagos" de Junho de 2021

 

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11.7.21

No "Correio de Lagos" de Junho de 2021

 

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10.7.21

Grande Angular - A ilusão educativa

Por António Barreto

É uma das mais antigas e perenes ilusões: a escola tem o poder de formar as pessoas e transformar o mundo. Pelo que seria indispensável formar os jovens de hoje para serem os homens de amanhã. Com estes lugares-comuns na cabeça, há décadas que muita gente, políticos, educadores e outros profissionais querem reformar a escola para formar cidadãos. Dos Republicanos aos comunistas, passando por tecnocratas, anti-racistas, LGBTI, ambientalistas e outras variedades, todos partilham esta ilusão. Todos querem uma escola programática, que forme as elites, que garanta a igualdade entre todos, que seja a base da democracia e que ensine as pessoas a comportar-se como bons cidadãos. Todos ou quase todos querem que a escola substitua a família, os pais e os padres. Espera-se que a escola ensine as técnicas rudimentares de ler, escrever e contar, mas também as disciplinas de todas as ciências, artes e culturas, assim como, finalmente, as regras morais e políticas de vida.

Na verdade, quase todos querem uma escola programática que dê sentido à vida, uma escola com ideias e ideologia, uma escola feita para formar cidadãos, uma escola vocacionada para a formação integral do indivíduo, uma escola nacional e patriótica, uma escola que dê muito mais do que a instrução, uma escola que vá mais longe do que ler, escrever e contar. Querem uma escola que forme cidadãos virtuosos, solidários, bondosos, honestos e democratas.

Do mesmo modo, são muitos os que até hoje se exprimiram concretamente contra a escola neutra, a escola sem valores e a escola sem conteúdos de formação moral e política. É uma polémica conhecida. Curiosamente, os autoritários e os intolerantes exprimem-se contra a escola neutra. Desde sempre, as grandes correntes de pensamento, os movimentos políticos e os agrupamentos ideológicos se esforçam por propor uma escola que satisfaça os seus interesses particulares, disfarçados de interesses gerais e de bem comum. Os republicanos quiseram uma escola laica, pois claro, que afastasse a Igreja da educação. Os salazaristas lutaram contra a escola ateia e laica, defendiam a escola empenhada, nacionalista e católica. Salazar proibia a escola neutra e considerava que era ali, na escola com programa e causas, que se criavam os espíritos pátrios. Os democratas querem absolutamente que a escola ensine a democracia e forme cidadãos exemplares. Os socialistas combatem por uma escola para a cidadania e para a solidariedade. Os fascistas querem uma escola para a grei e para a nação, valores eternos. Os comunistas querem uma escola que seja um viveiro de valores proletários. Os verdes querem uma escola ecológica e amiga do ambiente. Outros esquerdistas querem uma escola empenhada em valores, no multiculturalismo e no combate ao racismo. Outros finalmente, nas esquerdas e por outras bandas, vêem hoje na escola a grande arma para a igualdade e o livre arbítrio na escolha do género.

Todos querem legitimar, através da escola, a sua ideologia, os seus interesses e os seus programas. Pretendem assim que a construção curricular siga os seus valores ideológicos. Tentam transformar a escola em fábricas do “homem novo”. Entendem que a escola seja o veículo para as suas ideologias e os seus programas. Assim é que identidade nacional, nação, religião, valores morais e espírito de classe estão frequentemente ligados aos projectos de políticas educativas.

Como é sabido, cada vez que surge problema importante para o qual é difícil encontrar respostas e soluções, há sempre alguém que, no canto da página, ao fundo da sala ou na primeira bancada se exprime com sabedoria secular e banal: “o importante é a educação”. E acrescenta o lugar comum: “tudo começa na escola, a escola desempenha um papel muito importante”.

Todos os regimes autoritários e partidos políticos intolerantes procuram criar uma escola com valores, com programas políticos e com ideologia. Até há democratas que esperam o mesmo. No passado, a religião e moral cristã, a nação, a pátria, a república laica e o socialismo libertador ocuparam sucessivamente as primeiras páginas dos programas e dos currículos. Recentemente, com o mesmo afinco obsessivo e a mesma esperança, outros valores surgiram: a cidadania, a democracia, a solidariedade, a tolerância, a ética republicana e a Europa. Actualmente, à luz das modas, novos valores se impõem: o anti-racismo, o género como construção e escolha, a ecologia, o ambiente e os direitos dos animais. Sem esquecer outras tarefas mais tecnocráticas que preenchem o caderno de encargos da escola contemporânea: a literacia financeira, a aptidão digital e o consumo.

A disciplina de cidadania, outra vez em debate público, serve para tudo, da Constituição ao sexo, passando pelas regras de trânsito. Ou ainda para, segundo o palavreado oficial, saúde, sexualidade, segurança rodoviária, empreendedorismo, voluntariado, igualdade de género, risco, direitos humanos, defesa, segurança, paz, educação financeira, educação intercultural, ambiente, Europa e consumidor… Ora, a escola contemporânea, com este programa, corre o risco de falhar todas as suas missões. As clássicas: escrever, ler e contar. As menos clássicas: desenvolver as artes e a cultura. As mais modernas: a competência profissional. E as moderníssimas: formar cidadãos exemplares.

A escola como berço da virtude é um velho mito totalitário. A escola não é nem deve ser considerada uma incubadora de cidadãos bem comportados. Verdade é que na escola se aprende tudo. Da regra de três ao imperativo categórico. Mas também o sexo, o tabaco, o álcool e o cannabis. Sem falar no surf e nos jogos de computador. Assim como cinema e poesia. Além de violência, futebol e trafulhice. Ou finalmente solidariedade e bondade. Na verdade, a escola é vida. Ponto final.

Como tal, a escola dá o que de melhor pode dar: ferramentas, informação, instrumentos e conhecimento. Com a colaboração das artes, das técnicas e da cultura. O resto pertence à família, à sociedade, às profissões, à televisão, às redes sociais, aos livros, aos partidos políticos, às associações, às igrejas, aos clubes, aos jornais, aos vizinhos e às autarquias. À escola o que é da escola. À vida o que é da vida.

Público, 10.7.2021

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9.7.21

VIVA O HÓQUEI EM PATINS

Por Joaquim Letria

No futebol já fomos. Vamos agora ver o que conseguimos nas Olimpíadas no Japão nas modalidades a que a gente se sujeite. Uma, em que fomos campeões do Mundo, da Europa e tudo o mais que havia para ganhar é que a gente se não sujeita porque mais uma vez o COI (Comité Olímpico Internacional) não a reconhece e não nos deixa mostrar o que valemos, apesar de já termos valido muito mais. Mas deixam o hóquei no gelo pertencer aos Jogos Olímpicos de Inverno e ser jogado à paulada.

Mas quero referir-me ao Hóquei em patins. Eu ainda sou do tempo do Jesus Correia e Correia dos Santos, Raio, Edgar e outros mais modernos como Adrião, mas hoje em dia temos uma equipa cujos nomes podemos não reconhecer mas é gente capaz de dar cartas. Nos Jogos Olímpicos, apesar de aceitarem quase tudo desde jogos de praia e dança de rua é que não aceitam o hóquei em patins.

Nós somos muito bons em algumas coisas, como a Telma Monteiro demonstra, mas bons de verdade, com a bandeira a tremelicar, o hino a tocar e as lágrimas nos olhos e o mundo a ver fomos com a Rosa Mota e o Carlos Lopes que correram na estrada num desporto de africano que nem precisa de dirigentes. Eu compreendo que o hóquei em patins é muito complexo: exige mecânicos, preparação física, direcção técnica, directores, células foto-eléctricas que não deixem que existam erros quando as bolas passam ou não passam as linhas de golo.

Não percebo a razão de não aceitarem o hóquei em patins e o vólei de praia ser aceite como desporto olímpico, apesar de ser um passatempo para entreter tuaregues a descansar no oásis e a treinar os pobres dos camelos antes de partirem para nova etapa da caravana.

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8.7.21

Foram-se as indulgências

Por C. B. Esperança

Jerónimo Felizardo estava a aliviar o luto a que a perda da amantíssima esposa, Deolinda, o obrigara. Não se pode dizer que lhe fora muito dedicado em vida nem excessivamente fiel. Mas habituara-se a ela como um rafeiro ao dono que o acolhe.

Sentia-lhe agora a falta. Deolinda de Jesus dera-lhe tudo. Mesmo tudo. Até o que é obrigação e nela nunca foi devoção e, muito menos, entusiasmo. Deu-lhe independência económica, boa mesa, respeito e uma filha. Deixou-lhe uma pensão de professora, metade do ordenado do 10.º escalão, que acrescentava a outros proventos e o punham ao abrigo de sobressaltos.

Com a filha não podia contar. Fora para Lisboa frequentar a Universidade Católica, a cujo curso e influência deve hoje o desafogo em que vive e o lugar importante no Ministério. Metera-se no Opus Dei e enjeitou a família. Mesmo a mãe, a quem fora muito chegada, só lhe merecera duas breves visitas nos três anos de doença prolongada com que Deus quis redimi-la do pecado original.

Era natural substituir as visitas por orações, que não exigiam deslocações, nem hora certa, e haviam de prolongar a vida e o sofrimento, assim Deus a ouvisse. E ouvi-la-ia certamente porque, além de omnipotente e omnisciente, vinham de uma devota fiel à instituição que o Papa amava quase tanto como à bem-aventurada Virgem Maria.

A poucos meses de fazer meio século Jerónimo empanturrava-se de comida que Carolina, afilhada do crisma de D. Deolinda, se esmerava a cozinhar com um desvelo que a filha nunca revelara. Bem sabia que a gula era um pecado capital, mas a prática e o exemplo eclesiástico tinham despenalizado. Nem mesmo o Prefeito para a Sagrada Congregação da Fé, tão cioso guardião da moral e dos bons costumes, o valorizava demasiado. A gula não é propriamente a luxúria, que é das maiores ofensas a Deus, pecado dos maiores e, de todos, o que mais contribui para a perdição da alma.

Em tudo o mais era Jerónimo um viúvo exemplar. Dera-se à tristeza e à oração. Arrependia-se das vezes em que não cumpriu o dever da desobriga, da frequência escassa à eucaristia, das missas a que faltou, em suma, das obrigações de cristão, que não cumpriu com a intensidade, duração e frequência recomendadas pela Santa Madre Igreja. Mas, de tudo, o objeto maior de arrependimento era o adultério que cometera e em que, sempre confessado, reincidiu.

No entanto, isso terminara há muitos anos. A infeliz que seduzira casara e virara fiel ao marido a quem agradecia tê-la recebido canonicamente apesar de saber que já não ia como devia. Conformado, não se importando de ficar com mulher que já não ia inteira, nunca suspeitou de ornamentos de homem casado, sempre julgou ser o autor um antigo namorado que a morte, por acidente, impediu de reparar a desonra.

Desse pecado se redimira já, pela confissão, penitência e promessa de nunca mais pecar. Agora, à castidade que se impunha, ao cumprimento dos mandamentos a que se devotara, juntava uma vontade forte de conquistar indulgências nesse ano 2000 do Grande Jubileu.

Bem sabia que as indulgências requerem sempre a confissão sacramental, a comunhão eucarística e a oração pelas intenções do Papa, condições sine qua non para a sua obtenção. Quanto às disposições para a sua aquisição não era difícil cumpri-las. Bastava peregrinar a uma Basílica, Igreja ou Santuário designados para o efeito, e eram várias as opções na diocese, e rezar o Pai-nosso, recitar o Credo em profissão de fé e orar à bem-aventurada Virgem Maria, tarefas de que se desobrigava com prazer e entusiasmo. Mesmo a recomendável contribuição significativa para obras de carácter religioso ou social estava ao seu alcance e não deixaria de fazê-lo.

Embora gozando de excelente saúde e de razoáveis análises nunca é demasiado cedo para um sincero arrependimento e tratamento da alma. Veio a calhar o ano do Grande Jubileu que Sua Santidade avisadamente instituiu nesse Ano da Graça de 2000.

Jerónimo tomou como bênção do Céu ter ficado Carolina a cuidar dele. Antes de se recolher ao quarto rezavam os dois, todos os dias, por D. Deolinda, Esposa e Madrinha, respetivamente, para que a sua alma mais célere entrasse no Paraíso, aliviada das penas do Purgatório.

Passava os meses dedicado à oração, à penitência e à agricultura, outra forma de penitência que alguns teólogos interpretaram como a mensagem do anjo do 3.º segredo de Fátima. Disse-me um crente praticante, e não incréu militante, que a penitência que o anjo três vezes pediu era uma forma de exigir dedicação à agricultura, modo de empobrecer e salvar a alma, vacina contra os sectores secundário e terciário onde os homens perdem a fé e a Igreja os fiéis.

No primeiro dia de maio, a seguir ao jantar, horas depois dos comunistas ateus se terem manifestado nas ruas de Lisboa e Porto, enquanto Carolina ficou a arrumar a cozinha, foi Jerónimo ao mês de Maria, ato litúrgico que na sua cidade de província sobreviveu à conversão da Rússia e à consagração do Mundo ao Imaculado Coração de Maria.

À saída da igreja entrou no carro, dirigiu-se à quinta, que distava duas léguas da cidade, deu um bocado de conversa ao caseiro e uma olhadela às vitelas, distribuiu-lhes ele próprio um pouco de ração, mandou verificar a pedra que tapava o buraco das galinhas para protegê-las da raposa, deu a bênção aos afilhados, filhos do caseiro, e regressou à cidade onde viveu em vida de D. Deolinda, por vontade dela, que detestava a lavoura e o campo, e vivia agora por hábito e fidelidade à memória da falecida.

Ao regressar a casa admirou-se de ver todas as luzes acesas, exceção para o seu quarto que a luz do corredor iluminava discretamente.

Ia entrar em busca da santa Bíblia quando, sobre uma colcha de seda, na cama, deparou com o corpo esbelto de Carolina, esplendorosa escultura de 20 anos à espera de ser percorrida, vestida apenas de penumbra e longos cabelos castanhos esparsos sobre o peito, de onde brotavam túmidos mamilos à espera de afago.

O quarto parecia iluminar-se progressivamente. Já uns lábios carnudos se ofereciam sequiosos e um corpo arfava em pulsações rápidas, num incontido furor de ser possuído, numa ânsia insuportável de ser saciado, primícias ávidas em busca de serem saboreadas.

Jerónimo sentiu sobrar-lhe roupa e minguar-lhe a resistência.

Foram-se as indulgências…

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6.7.21

No "Correio de Lagos" de Junho de 2021

 

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