29.6.17

A tragédia de Pedrógão e a vertigem necrófaga do PSD

Por C. Barroco Esperança
Hoje já não tenho dúvidas de que o aproveitamento político da tragédia nacional que enlutou o País e levou a morte e a desolação, especialmente ao concelho de Pedrógão Grande, foi urdido na reunião da bancada do PSD onde um deputado lamentou que o PR fosse “o primeiro a lançar a ideia de que foi feito tudo o que era possível”, quando se limitou, como devia, nesse momento, a procurar acalmar as populações.
 Pedro Pimpão e Maurício Marques, respetivamente deputados por Leira e Coimbra, visitaram os locais da tragédia. O primeiro disse logo que “Os deputados do PSD têm o dever de não deixar isto ser silenciado” lançando o mote para o aproveitamento político, até à exaustão, de uma tragédia de dimensões dantescas.
 O deputado Maurício Marques, ex-presidente da Câmara de Penacova afirmou de forma pungente que “…teve de se fazer à estrada para acudir a familiares que não conseguiam o apoio das autoridades”, acrescentando que a sua própria filha “foi encaminhada para a "estrada da morte", e só se salvou porque passou por debaixo dessa estrada e se dirigiu para a A13, em vez de seguir o caminho fatal de outros automobilistas”, uma afirmação a merecer investigação sobre o eventual crime de quem fez o alegado encaminhamento.
 Enquanto as autoridades procuravam os suicídios [plural] atribuídos por Passos Coelho à ausência de apoio psicológico às vítimas do incêndio, e o ainda presidente da Câmara de Pedrógão, Valdemar Alves, um independente eleito pelo PSD, pedia que ‘corressem com os boateiros’, Duarte Marques, deputado eleito por Santarém, insistia no boato em conversa online: “É verdade”. E, antecipando já que PPC não chegará às legislativas, acrescentava: “Eu não o diria em público”.
 A ânsia de aproveitar os cadáveres para efeitos eleitorais levou Passos Coelho a afirmar: “Tenho conhecimento de vítimas indiretas deste processo, pessoas [plural] que puseram termo à vida, que em desespero se suicidaram e que não receberam o apoio psicológico que deviam. Devia haver um mecanismo para isso. Tem havido dificuldades. Ninguém me convence de que não há responsabilidades. O Estado falhou e continua a falhar.”
 Quem lhe deu a informação foi um correligionário que a comunicação social referiu de forma neutra, “Provedor da Santa Casa da Misericórdia”, sem indicar que João Marques é também o líder da comissão política do PSD de Pedrógão, que durante 16 anos foi o presidente da Câmara Municipal”, cargo a que não pôde concorrer no último mandato, por imposição legal, e que é de novo candidato, designado em 4 de janeiro pela referida comissão política, a que ele próprio presidiu, com 9 votos a favor e duas abstenções.
 Enquanto assistimos ao suicídio político de Passos Coelho, João Marques continuará a ser presidente da Santa Casa da Misericórdia, por vontade episcopal, e voltará a ser o Presidente da Câmara de Pedrógão Grande, pelo PSD, se o eleitorado reincidir no voto.
 Passos Coelho não tinha de pedir desculpa pela informação errada que o correligionário lhe deu do suicídio inexistente, tem de se envergonhar do plural que usou, dos motivos que inventou e do carácter que lhe permite explorar uma tragédia tão dramática para fins eleitorais.
 Ponte Europa / Sorumbático

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25.6.17

Sem emenda - Um Parlamento trivial

Por António Barreto
A Agência Europeia do Medicamento poderá vir para Portugal! A saída da Grã-Bretanha da União tem consequências destas. Organismos estabelecidos no Reino Unido serão deslocados. Dezenas de empregos apetecíveis serão criados noutros países. Muitos funcionários sairão de Inglaterra. Centenas de funcionários britânicos deixarão Bruxelas, Estrasburgo, Luxemburgo e outras localidades onde existem representações. Em vários países, por efeitos do despedimento de britânicos, abrirão vagas e empregos. Percebe-se. É uma maneira de castigar os irreverentes e de favorecer os disciplinados. Também é verdade que mal se compreenderia que uma agência não estivesse sediada num país membro. Cargos até hoje ocupados por ingleses ficarão acessíveis à competição: muitos são os técnicos e os cientistas, indivíduos e empresas, que se preparam para colher os despojos. Uns casos serão decididos por mérito e concurso, outros pela família ou o partido.

Há, na União, dezenas de instituições que desempenham funções importantes e beneficiam de elevados orçamentos e de quantidades de pessoal qualificado. Todos os países querem ter organismos destes dentro das suas fronteiras. Os mais poderosos conseguem os melhores. Uma dúzia de países lançou-se atrás da Agência do Medicamento. A sede fica num prestigiado centro de edifícios modernos, em Canary Wharf, Londres. Trabalham lá 800 funcionários de elevada competência técnica. O organismo tem a tutela, por assim dizer, de umas dezenas de instituições nacionais que tratam dos medicamentos e das indústrias farmacêuticas.

Já há dezoito candidatos, entre os quais Barcelona, Paris, Amesterdão e Milão. Assim foi que o governo e o parlamento decidiram candidatar Lisboa à localização da agência. Tudo corria bem, até que surgiu a polémica. Então e o Porto? A resolução votada no Parlamento era explícita: Lisboa! Os deputados não viram. Ou não se deram conta. Ou não perceberam. Ou foram obrigados a mudar de posição. Algo aconteceu. Os chefes partidários, os deputados de várias cidades e os organismos locais dos partidos acordaram! Pensaram nas autárquicas. Na descentralização. Nas regiões. Uns mudaram de opinião e disseram, outros mudaram e não disseram, outros ainda não mudaram… Dias depois, com o coração apertado pelas autárquicas, o governo decidiu reabrir a hipótese de outras cidades, isto é, do Porto. E até o Primeiro-ministro afirma que foi enganado! Sobra a questão: o que se passou para que uma unanimidade fosse posta em causa em tão poucos dias por tanta gente? Como foi possível?

Pense-se num dia de votações no Parlamento. Veja-se como aquilo funciona e percebe-se que tudo é possível. São listas de votações automáticas, umas seguidas às outras, para que ninguém falte e não haja surpresas. A música é conhecida e vê-se bem no “Canal Parlamento”. Resolução número tal, projecto de lei número tanto, proposta disto e daquilo, quem vota contra, quem aprova, quem se abstém, está aprovado pelos partidos tal e tal, rejeitado pelos partidos assim e assado. Quando o presidente pergunta quem vota a favor e contra, de cada grupo levanta-se um senhor ou senhora, é como se todos se levantassem, não há indivíduos nem pessoas, não há deputados nem representantes, há unidades colectivas, regimentos e claques. Voto sindicado e obediente. Vota um por todos.

O voto sobre a Agência Europeia do Medicamento é a demonstração da falta de liberdade e independência dos deputados, que verdadeiramente o não são, antes parecem funcionários. Um ou outro desses senhores, nomeadamente de Lisboa e arredores, sabia vagamente o que estava a votar, tinha lido na diagonal a resolução em causa, sabia que Lisboa era a cidade candidata do governo. A maioria dos deputados não fazia a mínima ideia do que votava, não lhe interessava o assunto e só despertou quando lhe disseram que assim podiam ganhar ou perder as autárquicas. 


DN, 25 de Junho de 2017

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Sem Emenda - As Minhas Fotografias

São Judas Tadeu: votos, promessas e graças – Fotografia dos anos 1970, na Sé de Braga (ou será no santuário do Sameiro?), com a guerra de África bem presente. É um santo antigo, foi Apóstolo de Cristo, com quem consta ser muito parecido, diz-se mesmo que era seu primo. Não deve ser confundido com Judas Iscariotes, o “Apóstolo traidor”, o do “Beijo de Judas”. Era irmão de Tiago. Mártir, foi assassinado com outro Apóstolo, Simão, por terras da Pérsia. É o “Santo das causas perdidas” ou das “causas impossíveis”. Ao que parece, escrevia muito bem. Tem carta publicada na Bíblia. Pode-se lhe encomendar muita coisa em Portugal, tantas são as causas difíceis. Ou mesmo desesperadas. Talvez a causa das florestas, cujo patrono poderia ser ele. Na sua carta, alude às “nuvens sem água arrastadas pelos ventos” e às “árvores de Outono sem fruto, duas vezes mortas e arrancadas pela raiz”…

DN, 25 de Junho de 2017

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22.6.17

Um crime é isso mesmo

Por C. Barroco Esperança
A moldura penal de um crime inclui a sua natureza e motivações. O ódio sectário que se verifica em numerosos atentados tem motivações xenófobas, fatalmente agravadoras das penas que cabem aos criminosos.
 Os crimes dos muçulmanos que se explodem e arrastam consigo os infiéis, convencidos de que vão jantar com o Profeta, depois de fazerem a catarse da repressão sexual que os consume em vida, com as 72 virgens que o manual lhes anuncia e um demente pregador lhes confirma, têm sido largamente divulgados na comunicação social.
 A dissimulação com que os arautos do misericordioso profeta falam da religião de paz, como se tivesse havido uma tentativa séria de alterar a interpretação de um conjunto de versículos intoleráveis do manual ou de hadits do beduíno analfabeto, não contribui para conter a insânia de quem não se limita a acreditar e exige a conversão alheia.
 A entrevista dada há dias pelo presidente turco à RTP-1, a Paulo Dentinho, é um manual de descaramento e disfarce da cobra que esconde o veneno, mas não evitou o asco que o réptil provoca. Era a versão contida e fria de um exaltado pregador da jhiad.
 O que não costuma ser notícia são os crimes contra os muçulmanos. O atropelamento de crentes que saíam de uma mesquita de Londres, por um terrorista que veio a confirmar que era seu objetivo “matar muitos muçulmanos” insere-se numa disseminação do ódio sectário contra os que são sempre apresentados como algozes. Dados divulgados, e que passam despercebidos, indicam que os ataques de ódio contra muçulmanos conheceram, no Reino Unido, um aumento de 530% desde o atentado de 22 de maio em Manchester.
 Não devemos tolerar ataques de dementes com gritos selvagens, “Deus é grande”, mas não podemos igualmente condescender com os ataques criminosos aos crentes de uma religião.
 Combatam-se as crenças, defendam-se os crentes.
 Ponte Europa / Sorumbático

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20.6.17

HÁ ÂMBAR E ÂMBAR

Por A. M. Galopim de Carvalho
O âmbar ou resina fóssil é um produto de oxidação de substâncias de origem orgânica. Tem cor amarela-acastanhada ou avermelhada, é transparente e parte com fractura conchoidal, lembrando o pez. O mais antigo âmbar foi encontrado em formações do Triásico, com mais de 200 milhões de anos, mas conhecem-se resinas fósseis ainda mais antigas, no Carbonífero e no Pérmico. As mais divulgadas são as da região do Báltico e resultaram de acumulação de resina de coníferas no Eocénico, com cerca de 40 milhões de anos.
O âmbar, tão do conhecimento geral das pessoas, como matéria-prima em bijuteria e joalharia, tornou-se ainda mais conhecido depois do sucesso cinematográfico que fez história com o nome “Jurassic Park”, a versão mais mediática da obra homónima de Michael Crichton. Toda a gente ficou a saber que há insectos aprisionados no âmbar e que o âmbar é uma resina fóssil. A outra parte da história deste filme é ficção científica, bem condimentada, mas é apenas isso.
O âmbar do Báltico, ou succinito. (do latim succinum, com idêntico significado), foi alvo do interesse dos homens do Neolítico. Temos provas da sua procura e utilização intensiva nos séculos XVI e XVII. Do seu estudo, na região da Península de Sambia, por geólogos alemães, no século XIX, quando se iniciou a sua exploração industrial, ficámos a conhecer tratar-se de um tipo particular de depósito sedimentar com cerca de 40 Ma, associado a uma vasta estrutura deltaica oriunda da Escandinávia, espalhada em leque, na parte sul do actual mar Báltico. O âmbar aqui contido nas “argilas azuis” (blue earth) encontra-se também disperso, por desmantelamento desta unidade, nos depósitos do litoral da Alemanha, Polónia, Lituânia e outros países do sul do Báltico, para onde foi transportado por acção fluvio-glaciária durante o Pleistocénico, sendo hoje também aí explorado.
A transformação diagenética da ou das resinas originais no produto fóssil envolve a perda de substâncias voláteis e processos químicos de polimerização, oxidação e outros, com participação activa e reconhecida de bactérias. Na sua composição elementar participam carbono, hidrogénio, oxigénio e enxofre em muito pequena percentagem (0,5 a 1%), elementos que, sabe-se hoje, fazem parte da macromolécula do âmbar. A dureza, na escala de Mohs, varia entre 2 e 2,5, a densidade oscila à volta de 1 (um) e o índice de refracção está compreendido entre 1,539 e 1,542. Torna-se plástico a 250 ºC e funde a 287–300 ºC. Estudos recentes, com utilização de espectrometria de infravermelhos, revelam grande semelhança entre esta resina fóssil e a resina actual de Cedrus asiatica. Outras investigações apontam uma certa identidade química com a resina de Agathis australis, uma araucária de grande longevidade.
Aprisionadas no succinito do Báltico foram referenciadas mais de duzentas e cinquenta espécies vegetais, como líquenes, fungos, musgos, flores e frutos diversos, sementes, pólens e esporos. Tal diversidade aponta para florestas de montanha numa latitude então subtropical a tropical, como são actualmente as das regiões montanhosas do sudeste asiático, dominadas por coníferas, as responsáveis pela anormal produção de resina que, sedimentada e afundada, evoluiu diageneticamente para âmbar. Várias espécies de árvores devem ter concorrido nesta produção e a elas se deu o nome colectivo de Pinus succinifera. Do reino animal são igualmente muitas as espécies preservadas no âmbar. Variadíssimos artrópodes, formigas, mosquitos, aranhas, etc., etc., e até pequenos vertebrados (lagartos) têm sido encontrados e estudados nos seus mais ínfimos pormenores, anatómicos, histológicos e genéticos.

 Na região báltica, além da variedade succinito, a mais conhecida, identificaram-se outras como gedanito (de Gedanu ou Gdansk), amarelo e translúcido, beckerito, castanho, stantienito, preto, glessito, alaranjado, e gedano-succinito, também conhecido na Ucrânia. Há ainda o goitschito, branco e opaco, e o zygburgito. Fala-se ainda da variedade colophony, de que se conhece um bloco com 230 kg dragado no mar Báltico. Uma moderna via de classificação do âmbar baseia-se nas características dos principais constituintes orgânicos, num grau de especialização que transcende o carácter geral que aqui se apresenta.
Há outras ocorrências de âmbar na Europa, fora da chamada “Bacia Eocénica do Noroeste da Europa”. Entre as mais importantes contam-se as eocénicas da Ucrânia (Delta do Klesov), as do centro da Alemanha, de idade miocénica, cujo succinito é amplamente utilizado como gema e conhecido por “ouro da Alemanha Central”, em Bitterfeed. Também do Miocénico, existe succinito nos Cárpatos da Polónia e da Ucrânia e no sedimento silto-argoloso (limon) do Miocénico superior da mina de enxofre de Machow (Polónia). Ao contrário do âmbar do Báltico, o do Miocénico carpatiano é mais rico de enxofre, ultrapassado os 3%, contra os 0,5% daqueles. O âmbar dominicano (da República Dominicana, que inspirou a ficção de “Jurassic Park”) é uma resina incompletamente fossilizada que invadiu o mercado mundial, sob o nome genérico de copal.
Copal
 O copalito é a resina fóssil das argilas azuis dos arredores de Londres. O simetito ou âmbar siciliano e o rumanito, resina fóssil encontrada na Roménia e nas Sacalinas, são conhecidos na joalharia antiga. O burmito, da Birmânia, muito semelhante ao glessito, teve grande procura na China. Mais recentemente, o âmbar de Bornéu, encontrado em Sarawak, revelou-se com reservas superiores às do Báltico. Há, ainda o ambrito, resina fóssil da Nova Zelândia, semelhante ao âmbar. São, ainda, conhecidas ocorrências de âmbar nas Américas do Norte e do Sul e em África.
            Além dos restos orgânicos, as resinas aprisionaram bolhas do ar atmosférico seu contemporâneo, ar que podemos libertar e estudar no que respeita a composição gasosa. Este estudo deu a conhecer que o teor de oxigénio do ar no Cretácico superior era de 30%, passando para 21% durante o Paleogénico, valor a que voltou, no presente, depois de uma pequena descida durante o Miocénico inferior.
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Nota: Copal – termo do nauatle (língua da América do Sul), que significa resina. Assim se chamavam as resinas que se queimavam nos templos.

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18.6.17

Sem emenda - A liturgia democrática

Por António Barreto
Todos merecem parabéns! Os Portugueses em geral, António Costa, Mário Centeno, o governo e os partidos que o apoiam e os sindicatos: pelo que fizeram e pelo sentido de equilíbrio. Mas também a Troika, os exportadores e o governo anterior que preparou parte do caminho feito. São dias de congratulação e de lugares-comuns.

Quase todos merecem também condenação. Muitos dos que acima são referidos, mais José Sócrates e seu governo, banqueiros e ex-banqueiros, assim como ministros, uns empresários das rendas e das PPP e os autarcas dos SWAPS. Todos merecem um julgamento impiedoso por terem contribuído para a ruína de Portugal.

É falsa a percepção de que só um governo, este ou anterior, fez o que tinha a fazer. É errada a noção de que a austeridade não era necessária. E é finalmente perigosa a ideia de que o essencial está feito e já temos uma folga. Muito falta fazer, como todos sabem, mesmo os que não querem dizer.

Nas televisões, ouvimos Schäuble sobre as pretensões do governo português: “Já remeti ao Parlamento alemão o pedido de Portugal para sair do défice excessivo da UE e para adiantar o pagamento ao FMI. Estou convencido de que o Parlamento aceitará e não haverá problemas. Portugal é um caso de sucesso”! O homem estava visivelmente satisfeito. Depois, também disse umas tolices sobre Centeno e Ronaldo.

Uma pequena nota passou desapercebida: “Já remeti ao Parlamento federal…”. Pois é. O poderoso governo alemão, a potente Angela Merkel e o irascível Wolfgang Schäuble têm de fazer o caminho do calvário, ir a Berlim pedir aprovação ao Parlamento. Sabemos que será coisa fácil, neste caso. Sabemos que pode ser mera liturgia. Mas terá de ser feito. O que funciona de duas maneiras. Obriga à aprovação posterior, tal como exige negociações anteriores.

Mesmo para questões europeias, a Alemanha nunca renunciou totalmente às instituições nacionais. O Parlamento federal alemão é, por vezes, a última instituição a pronunciar-se em toda a Europa e a demonstrar que a palavra final é sempre alemã! Também o Tribunal Constitucional se ocupa de inúmeras casos de decisões constitucionais europeias e toda a gente espera pelos seus acórdãos. E não esqueçamos que frequentemente compete aos parlamentos estaduais alemães aprovar decisões europeias!

Destes factos há lições a retirar. E experiências sobre as quais meditar. É chocante verificar o facto de o Parlamento alemão ter mais poder do que o Europeu! Atrás da Comissão e do Conselho, a verdadeira estrutura parlamentar é o Bundestag! Mas o essencial desta história não é a hegemonia alemã, contra a qual podemos rosnar. O essencial deste episódio reside na ligação entre União e Estado, entre as instituições europeias e as nacionais. Os alemães não abdicaram desta relação. 

Como se sabe, em Portugal, o povo, o eleitorado e o Parlamento foram deixados à margem dos processos de integração. Não houve aprovação parlamentar de muitas etapas da integração e do desenvolvimento. Como não houve referendo sobre as grandes questões europeias. Os próprios Chefes de Estado foram sendo deixados na berma, cada vez que um governo cioso e ciumento, do PS ou do PSD, dava passos em frente. Também o Tribunal Constitucional, que poderia ter funções especiais nesta área, foi deliberadamente mantido fora de tudo.

Assim se consumou o divórcio entre Nação, Povo e Estado, por um lado, Europa e União por outro. Foi erro grave. Também cometido por outros países europeus. Agora que há crise, que há populismos e nacionalismos que ameaçam a União e a democracia, agora se percebe que o cosmopolitismo federalista foi um caminho errado. Não se sabe se ainda vamos a tempo de recriar uma liturgia democrática que implique o povo e a nação. Mas sabe-se que vale a pena perceber que a democracia tem sempre um território. Uma história. E uma cultura. Coisas que faltam na União. Mas que sobram nos seus vinte e sete membros. Ela que as saiba aproveitar e não as espezinhe. 

DN, 18 de Junho de 2017

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Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Sala de leitura da Biblioteca pública de Boston – É uma das maiores e melhores bibliotecas públicas do mundo. Tem mais de 20 milhões de obras, incluindo livros, manuscritos, partituras, obras-primas de pintura, mapas e gravuras. Sem esquecer CD, DVD, jornais e revistas Foi fundada há quase duzentos anos. É uma biblioteca municipal aberta a toda a gente, estudantes e donas de casa, ricos e pobres, profissionais e sem abrigo. Qualquer pessoa, sem controlo nem registo, pode entrar e frequentar a maior parte das salas. Como também é possível levar livros para ler em casa. É um exemplo perfeito do que pode ser uma biblioteca, eficiente, culta e acolhedora, onde se encontra um ambiente de quase felicidade, feito de silêncio e trabalho, onde se aprende e pensa. Há certamente outros sítios, como uma sala de música, um jardim ou um templo, onde o espírito está de acordo com os sentidos. Mas a serenidade de uma biblioteca é insuperável.

DN, 18 de Junho de 2017

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15.6.17

O DN e o embaixador Martins da Cruz

Por C. Barroco Esperança
No dia 10 de junho, o DN ocupou as páginas 12 e 13 com uma entrevista ao embaixador Martins da Cruz cujo interesse e conteúdo cabem ao jornal definir.
 A razão da minha estupefação resulta da reincidência do DN em apresentar, no perfil do diplomata, a insólita afirmação, a negrito, «António Martins da Cruz, com menos de 30 anos, foi abrir a embaixada de Portugal em Maputo», afirmação que repete da anterior entrevista do DN (11-02-2017).
 Não surpreende a omissão biográfica da demissão de MNE de Durão Barroso, de quem é compadre, na sequência do escândalo da portaria feita à medida da filha, Diana, para a entrada em Medicina, escândalo que tornou insustentável a sua permanência no governo e a do ministro do Ensino Superior, Pedro Lynce, autor da Portaria.
 Admito que, para as duas entrevistas, fosse irrelevante ter sido administrador da Afinsa (numismática e filatelia), a terceira maior empresa mundial de ativos não financeiros, logo a seguir à Sotheby's e à Christie's, falida após a mega fraude dos selos vendidos.
 Sobre a personalidade que mereceu duas entrevistas ao DN, no espaço de quatro meses, talvez fosse aliciante saber que, depois de demitido de MNE, foi ele, com Mário David, que negociou, nos bastidores, a ida para presidente da CE de Durão Barroso, enquanto este, dissimulado, insistia estar empenhado na candidatura do ex-comissário europeu António Vitorino.
 (O eurodeputado do PSD, Mário David, notabilizou-se ao ter manifestado vergonha por Saramago ser seu compatriota, e viria a ser o mandatário da candidatura de última hora, para desesperadamente tentar impedir Guterres de ascender o secretário-geral da ONU).
 Esqueçamos o homem de negócios, bem relacionado nos serviços secretos europeus e defensor entusiasta da adesão da Guiné Equatorial à CPLP, e voltemos ao jovem que “com menos de 30 anos, foi abrir a embaixada de Portugal em Maputo”. A embaixada, sob o ponto de vista físico, pode ser aberta pelo porteiro, mas em termos diplomáticos só por um embaixador ou, no mínimo, um ministro plenipotenciário.
 Reincidir em que Martins da Cruz abriu a embaixada de Maputo ofende o embaixador Albertino de Almeida, impoluto e corajoso magistrado que Melo Antunes convidou para primeiro embaixador de Portugal em Moçambique.
 Martins da Cruz não o refere no currículo, mas Samora Machel expulsou-o de Maputo. A estima e consideração pelo embaixador Albertino de Almeida mantiveram-se intensas e recíprocas até à morte do primeiro, por acidente aéreo, em território sul-africano. 
 Ponte Europa / Sorumbático

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14.6.17

ÉVORA, anos 30 e 40. A ESCOLA PRIMÁRIA

Por A. M. Galopim de Carvalho
Visando banir os projectos educacionais da Primeira República, a orientação política estampada na Constituição de 1933, alterara a formação de professores, substituíra os programas, adaptando-os à nova ideologia, separara os sexos, além de que reduzira a escolaridade obrigatória para 3 anos.
Em 1936, com Carneiro Pacheco no Ministério da Educação Nacional (anteriormente chamava-se da Instrução Pública), reforçara-se o papel da Escola no controlo ideológico e orientação política dos alunos, na prevalência do livro único, no culto das virtudes nacionalistas e no elogio da vida modesta e rural. Nesse ano assistiu-se à criação da Obra das Mães pela Educação Nacional, organização no âmbito da mesma ideologia, tendo por objetivo estimular a acção educativa da família, assegurar a cooperação entre esta e a escola e contribuir, por todos os meios, para a plena realização da educação nacionalista da juventude portuguesa de então. O fervor patriótico e o cunho religioso enquadrados na ideologia oficial do Estado Novo estavam diluídos nas matérias curriculares, nomeadamente, na Leitura, na História e na Geografia, no propósito de, a partir dos bancos da escola, então com início aos sete anos de idade, estimular estas virtudes nos homens e mulheres do futuro.
No meu tempo de escola o ensino obrigatório terminava com o exame da 3ª classe (3º ano, como agora se diz), certificado por um diploma exigível, por exemplo, para ingresso nos lugares mais humildes da função pública, no comércio, como caixeiro, nos correios, como carteiro ou boletineiro e, até, para ser eleitor. Ler, escrever e contar era tudo o que o cidadão comum necessitava para fugir à vida do campo, ao aprendizado artesanal ou oficinal e a outros trabalhos que apenas fizessem uso da força braçal. Esta habilitação mínima, o Primeiro Grau, como era chamado, vigorou durante anos. Só mais tarde, em 1960, ainda sob o mesmo regime, a escolaridade obrigatória para os dois sexos, aumentou para 4 anos.
No discurso de Salazar proferido em 12 de maio de 1935, na sede da Liga 28 de Maio, Salazar disse “Oiço muitas vezes dizer aos homens da minha aldeia :«Gostava que os pequenos soubessem ler para os tirar da enxada». E eu gostaria bem mais que eles dissessem: «Gostaria que os pequenos soubessem ler, para poderem tirar melhor rendimento da enxada».

Colada à Igreja de S. Mamede (séculos XIII-XIV e século XVI), classificada como Monumento Nacional (2001), a Escola Primária, que frequentei, entre 1939 e 1943, ocupando um edifício antigo mal adaptado e sem o mínimo de requisitos pedagógicos, era sombria, triste e gélida no inverno. Os professores, quase todos homens, eram severos, chegando nalguns casos a serem cruéis, criminosos, mesmo, à face da lei actual. A pedagogia estava na ponta da régua, versão escolar da tradicional palmatória ou menina de cinco olhos. As reguadas, às meias dúzias e às dúzias, estalavam nas mãos das crianças “por dá cá aquela palha”, quer por motivos de disciplina, quer por erros nos ditados, nas contas e em quaisquer outras matérias. Dei entrada nesta escola, na 3ª classe, aos 9 anos de idade e pude constatar, nas palmas das mãos, essa realidade. Certamente que havia excepções, mas ficaram-me na memória alguns nomes que, então, só de pensar neles tremia.
A ideologia do Estado Novo era-nos veiculada através do textos leitura da 1ª à 4ª classes, nas capas de cadernos e livros e, até, nos impressos oficiais dos diplomas. Na História de Portugal dava-se ênfase às nossas vitórias sobre os sarracenos, numa cruzada contra os infiéis, e contra os castelhanos, na defesa da independência nacional, e exaltavam-se os nossos feitos e os nossos heróis. Na Geografia, o mapa do Império Colonial Português, pendurado na parede, realçava toda a extensão territorial do Portugal do Minho a Timor. E, para além de um crucifixo e dos retratos do Dr. Oliveira Salazar e do Presidente da República, o então General Óscar Carmona, pendurados na parede, frente aos alunos, havia em todas as salas de aula os quadros murais com “A Lição de Salazar”, focando as grandes transformações da vida nacional e a grande virtude da família de condição popular, humilde, mas feliz, amante da Pátria e abençoada por Deus. A mesma ideologia penetrava, ainda, na escola através das actividades da Mocidade Portuguesa que, com excepção das marchas do “um, dois, três, esquerdo, direito” e das paradas ao estilo da tropa, tinham aspectos que iam ao encontro dos gostos dos rapazes.

Ao contrário de hoje, em que, estupidamente, os programas escolares menorizaram o grau de aprendizagem das crianças, a escolaridade primária desses anos tinha um nível de exigência incomparavelmente superior, com notável estimulação da memória e exercitação do raciocínio matemático, como se demonstra pelo tipo de problemas que éramos levado a fazer, na 4ª classe e no exame de admissão ao Liceu: «Um tanque com oito metros de comprimento, por cinco de largura e dois e meio de fundo, recebe água de uma torneira que debita sessenta e dois litros por minuto. A meia altura tem uma bica que descarrega a terça parte ... Quanto tempo...?»…

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