28.5.22

Grande Angular - Cuidar dos vivos

Por António Barreto

Os últimos anos foram destruidores. Entre as crises financeiras, a pandemia e agora a guerra na Ucrânia, pouco nos foi poupado. Com um resultado sempre previsível: sofre mais quem menos pode. Doentes, desempregados, idosos e pobres são mais atingidos do que os que o não são. Com as crises, as desigualdades aumentam sempre.

As últimas décadas foram devastadoras. Crises económicas, guerras “locais”, muito terrorismo, um crescimento intolerável da corrupção, a crescente predação dos bens públicos e o agravamento acelerado das perturbações do clima. É verdade que, em prazos longos, o melhoramento das nossas vidas foi evidente. Toda a gente (ou quase) está melhor hoje do que há cinquenta anos. Mas também é certo que a desigualdade, depois de ter francamente diminuído, voltou a agravar-se marcadamente.

O último meio século foi fulgurante. A globalização aproximou toda a gente. Os progressos da ciência e da tecnologia foram fenomenais. Os avanços da medicina foram espantosos. O aumento da produção alimentar formidável. Mas a democracia, depois de mostrar avanços significativos, começou a recuar, por força dos seus inimigos e por fraqueza dos seus adeptos. A paz, na Europa e no mundo, afirmou-se claramente, mas depois, com o terrorismo e os governos autoritários, começou a perder e está hoje ameaçada e ferida.

Que podemos fazer? Tudo o que é dramático e decisivo para a mundo, a guerra, a miséria, a doença e a opressão estão fora do nosso alcance, quase nada podemos fazer para resolver. Mas podemos contribuir, tal como temos vindo a fazer, devagar, aos poucos, gradualmente. Na medida dos nossos recursos. Além disso, podemos tratar de nós, da nossa sociedade, dos conterrâneos. Será isto egoísmo, pura e simplesmente? Parece, mas não é. O melhor contributo que podemos dar consiste em tratar da nossa comunidade.

É muito pouco o que podemos fazer pelas vítimas da invasão russa na Ucrânia, contra a pandemia por todo o lado, contra a fome e a sede em África, contra a doença no mundo inteiro, contra as ameaças das alterações do clima…. É pouco, mas pode servir de exemplo. E talvez ajudar. Mas é muito o que podemos fazer cá dentro, na nossa comunidade, contra as desigualdades na economia, na sociedade e na Justiça. É muito o que podemos fazer para diminuir os efeitos desiguais das grandes crises. Sabemos que a pandemia e a pobreza afectam mais os pobres, os desempregados e as classes de rendimentos exíguos. Podemos fazer pouco ou nada contra a pandemia ou contra a guerra. Mas podemos cumprir os nossos deveres, cá dentro, em nossa casa. 

Pode parecer patético comparar os milhares de problemas do nosso dia a dia com as mortes na guerra. Pôr em paralelo as dificuldades no acesso aos serviços públicos e os milhões de mortos da pandemia parece deslocado. Como é delicado confrontar as desigualdades no acesso à justiça, à saúde e à educação com a fome e a seca que se desenham diante dos mais pobres e desafortunados deste mundo. É verdade que há qualquer coisa de paradoxal. Mas o que está ao nosso alcance é tratar com justiça e humanidade os nossos iguais, a nossa comunidade e a nossa cidade.

O tratamento que as empresas dos serviços, dedicadas ao que se designa por serviços públicos (“public utilities”), reservam aos cidadãos portugueses é geralmente desastroso. Mau grado a permanente enxurrada de cartas, “newsletters”, circulares e avisos que recebemos todos os dias na caixa do correio ou no email, a verdade é que os cidadãos em geral são tratados com desprezo e desigualdade. É frequentemente infernal tratar do telefone, da electricidade, das multas e dos reembolsos fiscais. Isto, apesar dos meios técnicos fabulosos que estão ao nosso alcance. Infelizmente, servem para ganhar dinheiro, não para aliviar o cidadão.

As filas de espera nos centros de saúde e nos hospitais e as listas de espera para consultas, cirurgias e internamentos continuam aflitivas, não melhoram, melhoram pouco ou agravam-se ano após ano. Por causa da burocracia, das regras processuais e dos recursos, os tempos de espera na justiça deixam em crise todo o sistema. As empresas dos grandes serviços públicos, como a electricidade, o gás, a água, o esgoto, o correio, as comunicações, a televisão e os transportes públicos esmeram-se na venda e na propaganda, mas são geralmente negligentes no serviço, na assistência e na manutenção. As esperas ao telefone nos “call centers”, nova praga insuportável, podem medir-se por horas, com música evidentemente, tantas vezes sem resultado.

As grandes administrações públicas, a começar pelas dos impostos e a acabar nas da justiça, persistem em tratar desigualmente, por vezes indignamente, os cidadãos em geral, os fracos especialmente. Ou antes, tratam toda a gente mal, mas quem tem meios defende-se, quem tem conhecimentos protege-se e quem tem recursos satisfaz as suas necessidades.

Os atrasos nos reembolsos de impostos, taxas ou pagamentos indevidos penalizam sempre os que menos podem. As grandes administrações de serviços públicos alteram os preços, modificam os contractos, mudam as regras e agravam as condições com majestática indiferença e absoluto desprezo pelos consumidores e pelos seus clientes. Sabem que quase não há concorrência, que o “cambão” (ou entendimento entre agentes económicos) é fácil e tolerado. 

Acesso, resposta, atendimento, consulta, manutenção, reparação e reembolso: eis alguns dos termos que colocam em crise o Estado social moderno e os serviços públicos. São os pecados capitais dos serviços públicos. Estado e serviços estão sempre disponíveis para vender e divulgar o mais moderno e o mais caro. Mas têm absoluto desprezo pela manutenção e a reparação.

A sociedade é fraca. As associações de defesa de consumidores e contribuintes são débeis e tantas vezes dependentes das autoridades. Os municípios e as freguesias pouco se interessam e têm poucos meios. As entidades reguladoras, grande arma do capitalismo de rosto humano e do socialismo democrático, têm-se revelado incapazes de se ocupar destes problemas, os da maneira como são tratados os cidadãos, os consumidores, os eleitores e os contribuintes, para já não falar dos idosos, doentes, crianças e pobres. Se as associações civis quisessem e soubessem, o nosso país seria diferente. Melhor.

Público, 28.5.2022

 

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27.5.22

SÓ O BERARDO É QUE NOS FALTOU AO RESPEITO?

Por Joaquim Letria

Antes do espectáculo de Joe Berardo no Parlamento já eu tinha falado na garagem do bi-comendador na Madeira, única coisa que se conhece que o homem possui e que terá sido bastante para sacar mil milhões à banca.

Agora toda a gente fala em Berardo e, sobretudo, todos dando mostras de grande indignação.

É verdade que o homem esteve ali a tourear a Assembleia da República e cuspindo para cima de todos nós. Mas a verdade é que já muitos outros fizeram o mesmo ou pior e ninguém se irritou nem quando eles se riem e gabam entre os seus amigos.

Será que a cara de parvo e a falta de memória de Vitor Constâncio não terá sido idêntica à boçalidade de Berardo? Um fulano que é vice-presidente do Banco Central Europeu e não se lembra dos dez anos da sua vida que passou como Governador do Banco de Portugal não está a gozar connosco? É que não se tratou duma ou outra imprecisão, ou duma possível vaga ideia, estamos a falar de amnésia total! É isto algum respeito pelo Parlamento e por todos os cidadãos, acima do desplante de Berardo!?

E o papel de estúpido representado por Zeinal Bava, ex-administrador da PT, que também foi ali garantir que não se recordava das negociatas que fizera com outros em nome daquela que poderia ter sido uma companhia de bandeira, a par da TAP, não terá também sido um desplante, uma falta de vergonha, principalmente quando diz não ter ideia de quando pagou 800 milhões de euros?! E alguém se indignou com esse  papel?!

E quando o ex-ministro da Defesa foi ao Parlamento explicar que não sabia nada do roubo das armas de Tancos e depois também lá vai um general dizer que pensava ter uma ideia como as armas tinham sido entregues por quem as roubou numa palhaçada a que chamaram de achamento não estão a faltar-nos ao respeito?!

Então já não se lembram da Maria Fernanda Barbosa, directora da cadeia de Paços de Ferreira, quando foi explicar aos deputados como na sua prisão os reclusos se divertiam e até chegavam a organizar bailaricos? Não estaria a senhora a gozar com os deputados e a chamar-nos parvalhões!?

O Joe Berardo abusou. Certo. Mas não andaram estas encomendas todas a gozar connosco? E já agora: os fulanos da banca que entraram nestes esquemas a mando de políticos e estes que faziam as jogadas vergonhosas de que nos vamos dando conta tiveram algum respeito por nós? O mal disto tudo é que daqui a uns dias já não se fala nisto. Como se deixou de falar em Pedrógão.

Quando comecei a ser repórter e escrevia sobre casos de crime, havia um velho polícia que me dizia: ”Isto só se resolve metendo todos dentro para averiguações”. Lembro-me muitas vezes dele e hoje acho que ele tinha razão.

Publicado no Minho Digital

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26.5.22

As eleições diretas e o 40.º Congresso do PSD

 Por C. B. Esperança

Nunca umas eleições do líder de um partido tão relevante para o futuro coletivo do país e para a manutenção do regime democrático foram tão ignoradas pelos media, militantes e população em geral.

As eleições diretas para o líder do PSD têm lugar no próximo dia 28 de maio, com raras referências na semana que as precede e com alheamento pela escolha do novo líder.

Sabem os interessados na política que há dois candidatos, e que, por menos inspiradores que sejam, um deles protagonizará a oposição ao Governo e terá de evitar a sombra do inquilino de Belém, que ocupa indevidamente o espaço onde trai as funções para que foi eleito e a neutralidade que o cargo exige.

São ainda menos os que sabem que nenhum dos candidatos é deputado o que dificulta a sua afirmação mediática e o escrutínio das qualidades.

Luís Montenegro e Jorge Moreira da Silva são os que se perfilam para a substituição de Rui Rio enquanto Marcelo procura que Carlos Moedas cresça na Câmara de Lisboa para substituir o que ora sair vencedor.

Surpreendentemente, até por razões de promoção do PSD junto do eleitorado e do País, Luís Montenegro nega-se a discutir o programa, se acaso o tem, com o seu competidor.

Desde a escolha da data, 28 de maio, que remete para o início da mais longa ditadura da Europa, no século passado, até ao silêncio que paira sobre o ato, tudo é preocupante. Se a ausência do CDS na AR faz falta à democracia e deixou espaço a partidos extremistas, é de imaginar o que acontecerá se o PSD for definhando e seguir igual caminho.

Há quem se alegre com o desaparecimento do CDS da AR e não veja qualquer diferença entre Nuno Melo e o líder do partido fascista, mas só por miopia não vê que um partido integrado no PPE é condicionado a respeitar os direitos humanos e regras democráticas. Nem todos os líderes do PSD, mesmo alguns dos que governaram, tinham grande amor à democracia, e esta nunca correu perigo. A União Europeia foi o guarda-chuva.

O PSD exerceu a liderança da direita durante todo o período democrático. Não constitui apenas um pilar fundamental da democracia, arrisca deixar para populistas o espaço que está a perder.

O entusiasmo dos congressos reduziu-se quando a eleição do líder passou a ter lugar em eleições diretas, desvanecendo-se a emoção da surpresa. O modelo atual ainda divide os militantes e preocupa os dirigentes, mas o espetáculo galvanizador de alguns congressos históricos perdeu-se definitivamente. 

A decadência do PSD é uma evidência nefasta para a democracia, e o partido trocou, na AR, as ideias por intrigas, o programa por ruído e a coerência por opções contraditórias.

Com a desmoralização que se nota, com que energia chegará o PSD ao 40.º Congresso, que se realizará cinco semanas depois das eleições diretas, nos dias 1, 2 e 3 de julho, no Coliseu do Porto, sem entusiasmo dos militantes com qualquer dos candidatos?

Não é o futuro do PSD que interessa, é o do regime e do País onde a direita democrática é fundamental para a qualidade e perpetuação da democracia e onde não há alternativas ao PSD.

Ponte EuropaSorumbático

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22.5.22

No "Correio de Lagos" de Abril de 2022

 I — QUALQUER pessoa que lide com crianças sabe como é difícil incutir-lhes hábitos tão básicos como apagar as luzes ou fechar as torneiras da água; e isso sucede porque elas não têm a noção do custo, um problema que o meu amigo Filipe ultrapassou quando, um belo dia, na hora de dar a semanada ao filho, colocou em cima da mesa o valor respectivo, sob a forma de uma fiada de moedas:

— A partir de hoje, vais passar a receber uma parte fixa e outra variável — anunciou ele, ao mesmo tempo que dividia o conjunto em dois.
Aqui chegado, e tendo em conta o que comecei por dizer, não é necessário contar o resto de tão pedagógica história, e dá para perceber que, lá em casa do Filipe, o problema dos desperdícios de água e de electricidade se resolveu de uma vez por todas, pelo menos a crer nas suas palavras.

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II — QUANDO eu vim ao mundo, já a minha madrinha tinha ultrapassado os 50 anos de idade, pelo que sempre a vi como uma simpática velhinha como as dos livros infantis: infatigável leitora e contadora de histórias, solteirona, de óculos de aros dourados e cabelos prateados apanhados em puxo, apoiando-se numa inseparável bengala, e vivendo com uma modesta reforma de professora primária. Como se imagina, uma pessoa assim só podia ter uma vida extremamente regrada, pelo que nunca estranhei os seus muitos caderninhos de capa preta onde anotava, com uma caligrafia impecável e sem uma única rasura, receitas de cozinha, moradas e telefones, datas de aniversário, curiosidades de todo o tipo, anedotas... e também, obviamente, as despesas do dia-a-dia, fossem grandes ou pequenas.

Ora sucede que, como era frequente nessa época, morava com ela uma empregada doméstica, daquelas que começavam “a servir” ainda muito novas, vindas da província, na sua maioria analfabetas e que, com frequência, ficavam na mesma casa até morrer — era a senhora Salomé, de que me lembro perfeitamente: sempre de avental e chinelos, e também ela de cabelos grisalhos enrolados em carrapito, era infatigável e eficiente mesmo quando a idade já lhe pesava — e foi assim durante décadas, porque as duas senhoras, vivendo sozinhas e fazendo companhia uma à outra, se davam como Deus e os anjos.

Porém — e como “não há bela sem senão” — havia um problema que quebrava a harmonia doméstica: é que a senhora Salomé era incapaz de desligar o gás do fogão quando não estava a ser utilizado, de nada valendo pedidos nem ralhos de quem pagava a respectiva conta. Até que um dia, vendo a minha madrinha que as chamas do fogão, de tão altas, até iluminavam tudo em redor, pegou numa nota de 20 escudos e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, disse à outra que a queimasse num dos bicos — pois, no fundo, era isso que estava a suceder.

É fácil de imaginar a perplexidade da boa velhinha, mas o certo é que, mesmo sendo uma pessoa sem instrução, percebeu rapidamente onde a patroa queria chegar — e, também nesse caso, foi remédio-santo: a nota não foi incinerada, e a conta do gás, lá em casa e partir desse dia, baixou sensivelmente.

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A PRIMEIRA história vem-me sempre à mente quando vejo, por esse país fora, que há quem deixe a iluminação — nomeadamente a da via-pública — acesa durante todo o dia, ou desperdice a preciosa água em regas absurdas, quantas vezes com ela a correr directamente para o alcatrão, e daí para as sarjetas, a caminho do mar — até mesmo (acreditem!) em dias de chuva!

A segunda veio-me à memória, por associação de ideias com o problema do gás russo — gás esse que a nossa “sociedade de consumo” trata (à semelhança do que faz com o carvão e o petróleo) como se fosse infinito, e que corre, abundante, de Leste para Oeste, enquanto o respectivo pagamento viaja em sentido contrário; e é assim que estamos na bizarra situação de ver uns quantos países a apoiar, com dinheiro e armas, UM DOS LADOS do actual conflito, ao mesmo tempo que, com o que pagam pelo combustível que não dispensam, apoiam o lado OPOSTO — encenando uma rábula que não destoaria no livrinho onde a minha madrinha anotava os factos absurdos, ou mesmo naqueloutro onde registava as anedotas.


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21.5.22

Grande Angular - Orgulho

Por António Barreto

O “Índice de Liberdade de Imprensa”, publicado pelos “Repórteres sem Fronteiras”, confere a Portugal o sétimo lugar, digo bem, o sétimo lugar, num total de 180 países. Nos últimos tempos, o nosso país tem-se colocado entre os lugares 40 e 12. O progresso tem sido seguro. E é motivo para alegria e algum orgulho.

Esta situação merece tanta mais atenção quanto vivemos tempos difíceis para a liberdade e para a imprensa. Assim como para as liberdades de pensamento e de expressão, conceitos próximos, mas diferentes. Segundo a organização citada, assim como para as instituições que se preocupam com estes problemas, a liberdade de imprensa está a viver períodos de recuo. Já nem se conta o número, que aumenta todos os anos, de profissionais vítimas (feridos, mortos, prisioneiros, detidos…) da luta pelo exercício livre da profissão. Nem se contam os governos, as empresas, os partidos políticos, os grupos económicos, as religiões e as instituições sectárias que, em qualquer parte do mundo, atentam contra a liberdade de expressão e a imprensa livre.

Grupos terroristas, forças armadas de certos países e polícias de vários continentes não esquecem que a liberdade de imprensa vem à cabeça da luta pelas liberdades. Jornais, rádios, revistas, televisões, plataformas de informação… nada nem ninguém escapa. Até as chamadas “redes sociais”, inicialmente festejadas pelo seu contributo para a expansão das liberdades, acabam por ser contaminadas por quem tem ou quer ter poder.

O lugar de Portugal, logo a seguir aos nórdicos, é pouco habitual. Portugal nunca brilhou pela liberdade da imprensa nem pelos direitos de todos à expressão livre. Mas encontra-se finalmente, de acordo com os critérios desta classificação, em lugar honroso. Pode até talvez dizer-se desproporcionado, na medida em que, na maior parte dos indicadores relativos à cultura, à educação, aos direitos humanos e aos tribunais, Portugal faz quase sempre triste figura. Parece não ser o caso este ano. Felizmente.

É verdade que muito depende das organizações que elaboram estas classificações, dos critérios que utilizam e dos métodos de recolha e tratamento da informação. Como é certo que todos esses critérios e métodos são discutíveis. Mas esta organização já deu provas. Podemos confiar no que faz. Discutir sempre tudo, mas confiar. Pode haver outros critérios e outras classificações. Mas esta vale por si.

Conhecemos as inúmeras dificuldades que, em Portugal, tanto nas últimas décadas como no último século, pesam sobre a liberdade de imprensa ou ameaçam o pluralismo. Quase todos os governos e primeiros-ministros tentaram, de uma maneira ou de outra, influenciar a imprensa escrita e as televisões. Houve mesmo quem tentasse comprar, por interpostas pessoas, órgãos de informação. Foram poucos os governos que resistiram à tentação de nomear administradores e directores dos canais públicos de televisão e rádio, assim como das agências e plataformas de informação.

Sabemos que os políticos portugueses no activo (governantes ou deputados) têm uma especial predilecção pela colaboração em jornais, rádios e televisões, privados ou públicos, o que conseguem graças ao seu poder. Sabemos que há políticos, no activo, que aceitam salário para escrever ou falar regularmente, como sabemos que há os que o fazem gratuitamente, na condição de ter um lugar cativo. Sabemos ainda que certos ministros publicam artigos seus quando lhes interessa e convém.

É público e notório que existe um predomínio das esquerdas nos meios de informação (tanto públicos como privados, mas seguramente mais naqueles do que nestes), o que enviesa o pluralismo ou condiciona a isenção. Se, em parte, isso resulta do poder político das esquerdas, também é consequência de vocações culturais e tendências sociais. Todas as espécies de jornalismo e de animação cultural atraíram sempre mais as esquerdas do que as direitas. A “luta cultural” e o “activismo” são um lugar de eleição das esquerdas, o que acontece sem interferência directa dos governos. Bem mais negativas são as concepções do “jornalismo de causas”, do “jornalismo activista” e do “jornalismo empenhado”. Sem falar no jornalismo ao serviço da “luta de classes” e da “hegemonia cultural”. Acrescente-se que os canais de televisão, sobretudo nos debates, concretizam esta hegemonia de esquerdas, que completa o indiscutível poder do governo.

Muito grave é a intervenção invisível do poder político. Esta processa-se de modos variados. Por exemplo, a selecção dos órgãos de informação a quem se dá, em primazia, certas informações. Ou a escolha daqueles a quem se dá de preferência a publicidade oficial (muitíssimo valiosa). Ou o favor que se faz a empresas privadas de grandes anunciantes para que estas, em troca, possam exercer as suas influências junto dos jornais e dos canais de televisão. O governo tem um enorme poder na “marcação da agenda”, de modo a que a imprensa siga as prioridades estabelecidas pelos interesses políticos. Muitas são as vias dos senhores da política que os levam a condicionar a imprensa.

Mesmo assim, ameaçada pela política, limitada pelo poder económico, em crise de publicidade e subjugada pelas redes sociais, mesmo assim, a imprensa portuguesa tem sabido manter defesas, preservar alguma dignidade e conservar uma certa independência. Mesmo com todas as dificuldades, Portugal, entre 180 países, está em sétimo lugar no “Índice de Liberdade de Imprensa”!

Não creio que tal se deva aos políticos, nem às autoridades. O currículo destas, nas últimas décadas, não é particularmente brilhante. Também não se deve ao amor que os cidadãos têm pela imprensa: na verdade, os indicadores de leitura e de audiência dos órgãos de informação colocam Portugal entre os mais deficientes da Europa, talvez mesmo os piores. Não penso que seja possível atribuir à magistratura e aos tribunais um papel muito relevante na defesa da liberdade de expressão: são frequentes as sentenças que a condicionam, como são repetidas as decisões ou sentenças dos tribunais europeus contra o Estado português por causa dos direitos mal defendidos ou violados.

Quer isto dizer que aquele “sétimo lugar”, classificação honrosa entre quase duzentos países, se deve sobretudo aos jornalistas, a uma parte deles, que se esforçam por manter elevados graus de dignidade e de isenção. Bem hajam!

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Apostila: E melhor que tudo, neste Verão difícil, o esplendor dos Jacarandás de Lisboa!

Público, 21.5.2022

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20.5.22

RECÔNDITA HARMONIA

Por Joaquim Letria

Nunca perdi o gosto muito particular pela Rádio, não só o de trabalhar nela, de que tenho muitas saudades, mas também de a ouvir.

Todos os dias, pela manhã cedo, ou à noite antes de dormir tenho o hábito de ouvir Rádio, por muito mal que ela possa ser feita – e é – por as vozes não serem adequadas, pela montagem  ser descuidada e sem gosto, por não haver regularmente a identificação de estação – o que nos leva muitas vezes a estar a escutar não sabemos quem nem o quê, nesta Rádio dos nossos dias.

A Rádio continua a ser para mim, eu que trabalhei em todos os meios de comunicação social, uma grande paixão repartida com o sortilégio do anonimato e velocidade das agências de notícias. Mas se tivermos paciência, soubermos procurar e houver bons profissionais – e há – vele a pena ligarmos o receptor e fecharmos os olhos para escutar.

Tenho uma aparelhagem topo de gama em que podia ouvir Rádio, mas só a utilizo para escutar CDs ou estações mundiais via internet. Prefiro, no entanto escutar a Rádio de que gosto através de pequenos transístores que tenho espalhados pela casa e através dos quais ouço emissões boas e más, quase como dantes em onda curta se ouvia a BBC ou a Rádio Moscovo. Foi num desses pequenos transístores que a Antena 2 (“A Rádio que Toca”, como eles dizem ) me deu a ouvir uma emissão dum programa da saudosa Maria Helena de Freitas, numa actual emissão dum programa de memória. E foi assim que de olhos cerrados ouvi aquela ilustre senhora contar-nos o libreto da Tosca, recordar-nos Puccinni e falar-nos dos intérpretes que eram Montserrá Caballé e José Carreras e explicar-nos o significado da maravilhosa ária Recôndita Harmonia saída do génio de Puccinni.

Verdade que a TV (através do Mezzo e do Intermezzo) nos oferecem jóias musicais. Mas infelizmente, pelo desfasamento dos tempos e dos meios técnicos que havia e há nem sempre podem fazer aquilo que Maria Helena de Freitas fazia e a Antena2 faz e que é animarem a nossa memória e enriquecerem o nosso conhecimento.

A memória rica da Antena2 assenta no espólio da antiga Emissora Nacional que nos punha a ouvir música e teatro radiofónico da maior qualidade. Que saudades eu tenho da beleza e do conhecimento que aqueles programas nos transmitiam. Que bom e que saudades de ouvir representar Cármen Dolores e escutar Raul de Carvalho a contracenar com Eurico Braga, a música de Luis de Freitas Branco, o emocionante concurso internacional de piano Viana da Mota , transmitido em directo ao longo de três dias, a Callas a cantar em São Carlos,  os comentários de Maria Helena de Freitas, de Francine Benoit e de João de Freitas Branco e a vozes únicas e irrepetíveis de D. João da Câmara e de Maria Leonor. Uma saudade tão grande como a sentida por David Mourão Ferreira, Vitorino Nemésio, João Vilarett, Amália Rodrigues, António Pedro e Homem de Melo que nos apareciam na RTP. Tudo isso veio ao de cima com aquela Recôndita Harmonia, sem razão nenhuma para assim acontecer, a não ser pelo sortilégio em que a Rádio é capaz de nos mergulhar. 

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19.5.22

A câmara de Coimbra entrou no ramo dos veículos usados

 Por C. B. Esperança

O atual autarca de Coimbra, presença permanente nos jornais locais, iniciou o mandato com o pseudónimo partidário “Nós, Coimbra”, mas sob o emblema do PSD, de que foi militante, e contra o qual, rejeitado, tinha concorrido nas anteriores eleições autárquicas.

Roma não pagava a traidores, mas o PSD atrai-os. Assim, o líder dos sócios que restam na agremiação “Nós, Coimbra”, começou o mandato de presidente da Câmara a mudar o nome da capela do Convento S. Francisco para capela D. Afonso Henriques, e a gritar contra o Governo PS na esperança de que o PSD pudesse ganhar as eleições legislativas.

Por demagogia, o novo edil procedeu ao ruinoso negócio de vender em hasta pública, por 41.800 €, o Audi A 8, da anterior vereação, cujo custo tinha sido, em 2018, de 83 mil euros. Obteve metade do preço da compra e ficou sem a viatura que transportaria condignamente, além dos autarcas, personalidades nacionais e estrangeiras que visitam a Câmara de Coimbra.

A notícia encheu duas colunas do DC (pág.2), de 2 de fevereiro, onde se afirmava que a verba ia ser canalizada para a compra de dois autocarros da frota dos SMTUC, como se houvesse autocarros a 21.400 euros. O péssimo negócio do luxuoso Audi foi o início da autarquia no ramo dos carros usados, para propaganda à modéstia do edil. A relevância conferida pelo jornal foi o frete que a publicidade institucional justifica.

Depois desse ato de populismo os munícipes nem deram conta do enorme aumento que sofreu a fatura da água, nem das decisões erráticas do novo edil, quiçá, boas e originais, sem serem originais as boas nem boas as originais, e quase sempre surpreendentes.

Tendo como número 2 outro Prof. Dr., nomeou para o SMASC novo Prof. Dr., dando a impressão de que a Câmara passou a sucursal da Universidade. E foi a demissão da Dr.ª Celeste Amaro de diretora do convento de S. Francisco que causou perplexidade, não por tê-la nomeado, é esposa do Dr. Álvaro Amaro, mas por demiti-la seis dias depois. 

Agora foi de novo o SMTUC, alegado beneficiário da venda do Audi, que veio causar danos à imagem já debilitada do atual executivo e confirmar que o negócio de veículos usados está para continuar. O Audi foi a estreia no ramo, sob a égide do presidente.

Segundo o Diário de Coimbra, que entusiasticamente defende o executivo camarário e, sobretudo, o presidente, os SMTUC compraram oito autocarros usados aos Transportes do Barreiro. A vereadora que prometera só comprar autocarros usados com número limitado de quilómetros percorridos, afirmação registada em ata, defende agora que «os referidos autocarros estão “em excelentes condições” e o negócio com a empresa do Barreiro foi igualmente “excelente”» [D. C. de 17 ct., pág. 5), apesar de o presidente da União de Freguesias de Souselas e Botão, Rui Soares, ter referido a compra de três autocarros Mercedes e cinco de marca Volvo, estes ‘com cerca de 600 mil quilómetros’. 

Quando se sabe que os SMTUC têm 40 autocarros parados, 15 dos quais com “motores rebentados”, é legítimo temer que, a curto prazo, o número de autocarros parados, com os oito ora comprados, passe a quatro dúzias.

Surpreendeu ver o presidente da Câmara de Coimbra a vender um Audi para comprar autocarros sem fazer ideia do custo destes e ver agora os SMTUC a imitá-lo no negócio dos usados, e a passar a cliente, com a compra de oito vetustos autocarros.

Ponte Europa / Sorumbático


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14.5.22

Grande Angular - O espectáculo da guerra

Por António Barreto

A guerra é fotogénica. Tal como a dor. Para já não falar da miséria e da fome. É mesmo provável que o sofrimento e a guerra tenham mais capacidade de atracção do que a felicidade e a paz. Muitos autores, com especial menção de Susan Sontag, têm pensado e escrito sobre este tema. E muitas e diversas são as opiniões, a tal ponto que podem ser várias as verdades.

A imagem, tanto fotográfica como televisiva, é actualmente um poderoso meio de informação, talvez o mais eficaz. Com imagens, as palavras adquirem valor. Mesmo sem texto, as imagens têm força própria. Sem imagens, os textos e as palavras perdem influência. Sobre as relações entre as imagens, a verdade, a razão e os sentimentos, diz-se tudo e o seu contrário. E em quase tudo há verdade. E falsidade.

O excesso de imagens e de reportagens satura a opinião e as consciências. Pior ainda, torna as pessoas habituadas e insensíveis. O excesso de informação faz com que  a guerra e a violência sejam quotidianas e usuais.

A profusão de imagens, de vídeos e de reportagens em directo alimenta os sentimentos, mantém as pessoas alerta, é uma permanente mobilização de solidariedade ou mesmo de protesto. A fotogenia pode influenciar os sentimentos e a razão.

Pela emoção e pelos sentimentos, as imagens são os melhores incentivos à formação de opinião. Sem imagens, as informações frias e as narrativas racionais não são mais do que isso, informações, incapazes de desencadear o afecto.

Pelo recurso às emoções, as imagens são obstáculo à compreensão, ao pensamento e à reflexão, mas são propícias à mobilização, à intoxicação e à manipulação de consciências.

Pelo excesso de filmes e de televisão, as imagens são incentivos à indignação momentânea e passageira, o que faz com que sejam também estímulos à passividade.

Pela atracção sentimental e pelo seu capital emocional, as imagens são os melhores incentivos à solidariedade e à disposição de cada um para se empenhar em causas humanas.

As imagens não incluem nova informação e novo raciocínio, limitam-se a assegurar a nossa predisposição e as nossas crenças. Olha-se para as imagens à procura de confirmação, não de informação. Quem simpatiza com os Ucranianos, vê as imagens de televisão a essa luz. Quem prefere os Russos, vê nessas imagens o que quer ver. O mesmo bombardeamento pode ser visto como um gesto bárbaro da aviação russa ou como uma encenação dos Ucranianos para comover a opinião. Já se disse que os bombardeamentos russos eram os mais bárbaros actos de agressão cometidos nas últimas décadas. Já se disse que os misseis russos eram desviados pelos Ucranianos, a fim causar mais vítimas e impressionar a opinião pública.

Os canais de televisão (portugueses, europeus, americanos e outros…) dedicam à guerra da Ucrânia tempo infinito, recursos inéditos e meios significativos. É provável que esta seja a guerra mais fotografada, mais filmada, mais transmitida em directo e mais acompanhada hora a hora. Claro está que o facto de ser a última conta: os mais sofisticados meios tecnológicos que estão ao dispor da informação permitem acompanhamento inimaginável no passado recente. Aliás, os meios de informação utilizam processos de captação de imagens, de retransmissão de divulgação impensáveis há poucos anos. Os órgãos de informação usam instrumentos tão sofisticados quanto a própria guerra: os drones são apenas os mais visíveis e que permitem as imagens mais espectaculares. Mas há muitas mais “armas” que tanto servem a guerra e a espionagem como a informação. Sem falar na utilização intensa de telemóveis que transformou todas as pessoas em fontes de informação pela imagem.

Quem pode, usa todos os meios possíveis para informar, defender, atacar, justificar e denunciar. Ou para manipular, intoxicar, enganar e acusar. É infelizmente “normal” que os Estados, os Governos, as Forças Armadas e os partidos manipulem os meios de informação para defender as suas causas e para criar dificuldades ao inimigo. É infeliz, mas é assim. Sempre foi assim. Tanto em tempo de paz como na guerra.

Já é menos “normal” que os jornais, as televisões, as plataformas de informação, as rádios e outros meios de comunicação, sobretudo os que se pretendem isentos e profissionais, naveguem nas mesmas águas que a informação orientada. Uns por simpatia política e outros por sensacionalismo, é frequente estarmos diante de quem engane deliberadamente, quem distorça os factos, quem oculte, quem encene e quem invente.

E também não é “normal”, pelo menos segundo os critérios e os valores vigentes em democracia, que se proíbam informações que não concordam com as verdades mais estabelecidas ou com os interesses dominantes. É por exemplo condenável que alguns países ocidentais tenham proibido o acesso a certos órgãos de informação do governo russo. Podem e devem ser desmentidos e contrariados com a verdade e com a liberdade de discussão, mas não devem é ser proibidos. A proibição ou a censura são armas de quem ataca a liberdade, não de quem defende a liberdade.

A única arma eficaz e que nos dá algumas garantias é o pluralismo e o confronto de opiniões. País que defenda e pratique o pluralismo na informação ajuda a que se acredite no que lá se diz. País onde as fontes e os meios de informação pertencem ao poder ou são dominados pelo governo é país para ignorar ou desconfiar. Nesta perspectiva, parece não haver dúvidas: nos países ocidentais há a possibilidade de ter acesso a muitas verdades e opiniões, na Rússia não há. Naqueles países, toda a gente pode exprimir e defender as suas opiniões, na Rússia não.

Mesmo admitindo que nos países ocidentais também há manipulação da informação, mesmo tendo a certeza de que os poderes estabelecidos no Ocidente exibem ou ocultam o que lhes interessa, mesmo sabendo que as autoridades dos países democráticos prezam a verdade mas nem sempre a cultivam, mesmo nestas condições, há uma verdade que não é relativa: a Rússia, o seu governo e as suas Forças Armadas agrediram e invadiram um país sem motivos que justifiquem tal acto, sem razões que fundamentem tal gesto, sem provocação e sem justa causa de autodefesa.

Mesmo sabendo que há mentiras de todos os lados, sei que no Ocidente há infinitamente mais liberdade, mais democracia, mais confronto de opiniões, mais possibilidades de apuramento dos factos, mais liberdade de expressão e mais independência dos órgãos de informação. Sobre isto, não há dúvidas.

Público, 14.5.2022

  

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13.5.22

LER BEM E LER MAL

Por Joaquim Letria

Na minha modesta opinião existem dois modos distintos de ler os autores. Um deles é muito bom e útil, o outro é inútil e chega mesmo a ser prejudicial.

É muito útil e agradável ler quando se medita sobre aquilo que lemos, quando se procura, pelo esforço da mente, resolver questões que os títulos dos capítulos enunciam e propõem, mesmo antes de se começar a lê-los , quando se ordenam e comparam as ideias, confrontando umas com as outras. Em síntese, quando se usa a razão.

Ao contrário é inútil ler quando não entendemos aquilo que lemos, chegando a ser perigoso ler e formar conceitos daquilo que lemos quando não analisamos suficientemente aquilo que foi lido, para julgar com cuidado, sobretudo se temos memória bastante para reter os conceitos firmados e imprudência bastante para concordar com eles.

O primeiro modo de ler ilumina e fortifica a mente, aumentando a sua capacidade de entendimento. O segundo diminui o entendimento e enfraquece-o gradualmente tornando-o obscuro e confuso.

Acontece que a grande maioria daqueles que se vangloriam de conhecer a opinião dos outros estuda somente o segundo modo. Estes, quanto mais lêem, mais confusas tornam as suas mentes.

Publicado no Minho Digital

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12.5.22

A liberdade e os seus limites

 Por C. B. Esperança

Há muitos anos que reflito sobre a liberdade e, há muitos mais, que me empenhei na sua defesa. São mais de seis décadas, com obstáculos no percurso, de uma obsessão que me acompanhará até ao fim.

Hoje, depois de quarenta e oito anos de democracia liberal, ultrapassado o tempo que os esbirros da ditadura levaram a espiar, perseguir e ostracizar os democratas, e a acossar a liberdade, é o espírito censório que regressa por intermédio de quem se julga detentor da verdade e deixa quebrar o verniz de democrata.

Engana-se quem pensa que a democracia é um regime benquisto, que a liberdade é uma conquista irreversível, que a censura está obsoleta, que à livre expressão de ideias basta a consagração constitucional. É uma perigosa ilusão.

Quando vemos a opinião publica a constranger a liberdade e assistimos a uma aliança de forças contraditórias concertada na defesa das mesmas posições, sentimos o fascismo a regressar de mansinho. O unanimismo é o caminho para o pensamento único, a desculpa para a ‘união nacional’, o pretexto para o combate à diferença e a ilegalização do erro.

Quando velhos democratas acossam os adversários políticos, revelam a sua fragilidade democrática. A democracia não adoece, mas os democratas tornaram-se enfermos. 

Há um adágio que sempre me irritou pela pusilanimidade que encerra, pelas portas que abre à repressão: «A minha liberdade acaba onde começa a dos outros». 

Era o que faltava! Até ponho a coisa ao contrário. Só faltava que, para não ferir os meus sentimentos e as minhas convicções, não se pudesse dizer mal da República, do ateísmo e da social-democracia, v.g., ou recorrer à caricatura, à troça e ao sarcasmo! 

Quando alguém apela ao respeito por determinada crença ou ideologia apenas pretende limitar a liberdade de expressão, dos outros, em relação ao que defende. Posso ofender alguém sempre que manifesto pontos de vista que divergem dos seus, mas não admito o silêncio para não desagradar, e não deixo de ser amigo de quem quer que seja por divergências religiosas, políticas, filosóficas ou outras.

A exigência de respeito por convicções alheias não passa de um apelo à censura e de um incómodo com a liberdade. Uma peregrinação, um desfile militar ou sindical, ou um ato litúrgico, são tão passíveis de escárnio quanto um comício partidário ou uma cerimónia fúnebre. Uma Igreja é tão passível de troça quanto um clube de futebol ou um partido político, embora seja imprudência gritar vivas a um clube próximo da claque adversária, oferecer febras de porco à porta de uma mesquita ou acusar a inutilidade dos sacrifícios pios através dos altifalantes de um santuário.

E, sobretudo, são provocações gratuitas e idiotas.

Em 13 de maio de 2008 a maratona pia a Fátima, presidida por um português, o cardeal   Saraiva Martins, foi realizada sob o lema “contra o ateísmo”. Podia ser “pela fé”, mas o desvario místico preferiu uma proposição belicista. Os patrocinadores do evento tinham o direito de rezar contra a ideologia que condenam? Claro que tinham. Não recorreram a armas, não lapidaram infiéis, não degolaram incréus nem molestaram os céticos. Dezenas de milhares de terços disparados contra o ateísmo, o desfile belicista com velas acesas e cantorias, tudo de resultados duvidosos, foi o exercício de um direito.

Já devíamos estar curados de sensibilidades doentias que a ditadura legou, mas parecem ter chegado as recidivas. O único limite à liberdade de expressão é o que o código penal da democracia considere crime. O resto é vocação e devoção censória.

Ponte Europa Sorumbático

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7.5.22

Grande Angular- Ladainha

Por António Barreto

Luís Valente de Oliveira e Miguel Cadilhe, notáveis políticos, técnicos reputados e humanistas de primeira água defendem com veemência a regionalização. Há anos que a ela deram parte da sua vida pública, da sua inteligência e das suas crenças. A ponto de as suas arengas regionalistas serem consideradas palavra sagrada por todos quantos comungam da mesma fé. Há duas semanas, nestas páginas, chamaram-me à pedra com particular falta de propriedade. Apesar de terem a obrigação de saber o que é a “vulgata”, não se coibiram de utilizar indevidamente o termo, como se de vulgaridade se tratasse, atribuindo às minhas palavras esse epíteto destruidor. Na verdade, preferem a ladainha regionalista.

Escrevi então que a regionalização era um embuste maior. Ou negam ou não percebem. Vários artigos da Constituição, uns aprovados por unanimidade, outros por larguíssimas maiorias, consagram e criam as regiões desde 1976. Nunca foram cumpridos. Fizeram-se leis: umas não foram aprovadas, outras não foram aplicadas. Leis aprovadas por unanimidade tiveram o mesmo triste destino. Decretos do governo não tiveram qualquer efeito. Programas de reforma intensamente regionalistas foram aprovados e comissões constituídas, sem consequências. Programas eleitorais de quase todos os partidos prometeram a regionalização: nunca tiveram qualquer espécie de concretização, a não ser no palavreado. Artigos da Constituição foram revistos, mas nem assim foram observados. Apesar do consenso, não obstante, a quase unanimidade, mau grado os exemplos europeus, nunca, em quase cinquenta anos, se deu um tímido passo. É este talvez o único capítulo da Constituição jamais cumprido. Se isto não é um embuste, como lhe chamei e que tanto incómodo causou a Valente de Oliveira e Miguel Cadilhe, então não sei o que é um embuste. Se eles, defensores e pregadores, não se sentem vítimas de um embuste, então é forçoso concluir que não perceberam o que o país quer nem o que os seus políticos fizeram. Nunca entenderão a razão pela qual tão importante projecto e tão essencial reforma, apesar de quase unanimemente aprovados, nunca foram cumpridos.

Com excepção dos Açores e da Madeira, Portugal não conhece exemplos de tradições de poder, de reivindicação ou de identidade regionais. As experiências açoriana e madeirense são de êxito reconhecido, mesmo se implicaram, como era previsível, aumentos de despesa e de funcionários, competição de legitimidades, conflitos com os órgãos de soberania e ameaças. Muitos destes aspectos poderiam ter sido evitados, mas a verdade é que os resultados foram bons para a República, a nação, a região e a população.

De qualquer maneira, convém sublinhar que essas duas regiões têm singularidades irrepetíveis em Portugal. Além da história, assinale-se a especificidade geográfica, questão maior numa definição regional. Assim como se deve olhar para a certeza dos limites regionais e geográficos ou a segurança quanto ao desenho ou mapa. Na definição de uma região, convenhamos que é útil saber onde começa e onde acaba. Também contam a singularidade, um fortíssimo sentimento de presença e a identidade. Até o isolamento geográfico aumenta o espírito de comunidade regional. Considere-se ainda a ambição autonómica que atravessa todas as classes sociais e quase todas as correntes políticas. E também se pode referir uma singular afirmação económica, social e cultural.

Não fossem muitos os argumentos que contrariam a regionalização, um só bastaria: não há praticamente acordo quanto ao número, ao limite e à designação das regiões portuguesas! Cinco? Seis? Sete? Oito? Esse simples facto é significativo: é a prova de que essas regiões não existem. Oliveira e Cadilhe menosprezam o facto. Garantem que o referendo reprovou o mapa, não a ideia. Escapam-lhes a contradição e o absurdo de tal afirmação.

As propostas conhecidas para a regionalização partem de umas vagas tradições nominais, que correspondem evidentemente a qualquer coisa, mas que têm pouco significado político, cultural e geográfico. Insuficientes, aliás, para fundamentar uma entidade estatal e autárquica ou uma comunidade administrativa. Sublinham os regionalistas o facto de o referendo “apenas” ter recusado os limites das regiões! Extraordinário! “Apenas” visava o facto de não existirem!

Oliveira e Cadilhe fundamentam os seus argumentos com crença e confiança. Só lhes fica bem. Mas tais trunfos não chegam para condenar asperamente quem pensa de outra maneira. Nem os dispensa de fundamentar de maneira mais sólida do que com gráficos do Eurostat e similares. Não lhes basta dizer que acreditam, nem pedir confiança para que acreditemos neles. Por exemplo, não conseguem garantir que não haverá enormes aumentos de despesa e de funcionários. Dizem que não e basta. Pobre argumento, sobretudo contra os que se limitam a afirmar que existem sérios receios de que tal venha a acontecer.

Mas há mais. Os regionalistas crentes defendem calorosamente as vantagens das suas soluções, sempre com termos conhecidos e geralmente não demonstrados: entre outros, eficácia, democraticidade, proximidade e subsidiariedade. Mas fogem à reflexão sobre reais problemas num país onde é total a ausência de experiência. Por exemplo, nada dizem quanto aos inescapáveis conflitos de legitimidade e de representatividade entre o nacional, o regional e o local, num país onde apenas existem, com força e tradição, o nacional e o municipal. Como nada dizem sobre os previsíveis conflitos entre legitimidades directa e indirecta, entre sufrágio e designação, entre eleição e nomeação, entre representatividades democrática e institucional. Na verdade, todas as propostas conhecidas para criação de regiões no continente sugerem organismos mistos com a presença de membros eleitos directamente e de representantes eleitos indirectamente ou institucionalmente designados. Os regionalistas consideram uma riqueza admirável o que mais não é do que uma fonte de vendavais e um turbilhão de colisões.

A inexistência de forças, de afirmações, de tradições e de experiências regionais é talvez a principal razão que leva os regionalistas, predominantemente tecnocratas, a favorecer as regiões. Na verdade, aquela evidente fraqueza é a melhor garantia de que a regionalização seria sobretudo o prolongamento do poder central e não uma emanação de forças regionais. O problema é que o que consideram ser a grande riqueza é certamente o grande obstáculo.

Público, 6.5.2022

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6.5.22

A DESGRAÇA DE VOLTAIRE

Por Joaquim Letria

Foi Voltaire quem disse que, para o escritor, a maior desgraça era ter de se confrontar com o julgamento dos imbecis.

Escreveu ele que isso o afectava mais do que ser invejado pelos colegas, ser vítima das intrigas, ser desprezado pelos poderosos.

Pior ainda o fazia sentir esse julgamento quando partia de alguém em que o fanatismo se unia à estupidez.

Creio que este juízo se deve ao facto de no tempo de Voltaire nem todos os estúpidos eram fanáticos nem todos os fanáticos eram estúpidos.

Hoje, ambos os predicados são indissociáveis: não há fanático que não seja estúpido nem estúpido que não seja fanático.

No que eu não acredito é na infelicidade de Voltaire diante das opiniões dos imbecis, dos fanáticos e dos fanáticos imbecis.

É evidente que seria preferível não existirem semelhantes seres. Mas já que existem penso que Voltaire não seria excepção à regra que se aplica a todos que se expõem ao público.

Custa-me acreditar que ele resistisse ao prazer de extorquir aos imbecis fanáticos e aos fanáticos imbecis o prazer libertado pela raiva destes e pelas frustrações daqueles que faziam o doce favor de o detestarem.

Oh Voltaire, meu amigo, não me digas que isso não te dava um gozo especial. Tenho a certeza que dava! Pelo menos eu por mim falo.

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5.5.22

A União Europeia (UE) está a repetir os anos trinta do século XX?

Por C. B. Esperança

Quando Jörg Haider, governador da Caríntia, foi indicado para chanceler, em 2000, a UE impôs o cancelamento da nomeação do líder do Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), de extrema-direita. Era então António Guterres presidente do Conselho da União Europeia.

O político que elogiou a política de emprego do Terceiro Reich, nacionalista, xenófobo e homofóbico, morreria com uma taxa de alcoolemia de 1,8 gramas por litro de sangue (a conduzir a 142 km/h o carro oficial, onde o limite máximo era de 70 km), no regresso de um bar gay, deixando inconsolável o sucessor, como líder da Aliança para o Futuro da Áustria (BZÖ), com quem mantinha uma oculta e tórrida relação amorosa.

Vinte e dois anos depois, a Hungria e a Polónia têm líderes de extrema-direita e apenas têm de conformar-se com as eleições nos prazos previstos. Na Hungria, há um mês, o partido nacionalista de Viktor Orbán renovou a maioria, pela quarta vez consecutiva, de forma esmagadora, para mais um mandato autoritário e antieuropeu. A UE perde força, para se indignar e impedi-los de governar.

Em 2002, quando Jean-Marie le Pen chegou à segunda volta das eleições presidenciais, a revolta desceu às ruas, em protestos, na França e em toda a Europa, contra o perigo do “fascismo”, que menos de 20% dos eleitores sufragaram. Quinze anos depois, a filha duplica o eleitorado e aproximou-se de 40% para agora, há uma semana ter obtido mais de 41% dos votos, igualmente contra o mesmo adversário, em eleições onde a extrema-direita enfrentou o resto do espetro partidário, com votos da extrema-esquerda a caírem diretamente na extrema-direita. 

Em vinte e dois anos o intolerável tornou-se banal e o escândalo respeitável. Os países com regimes autoritários superaram o número das democracias mundiais. Sete décadas depois da derrota do nazismo, esquecido o horror, o neoliberalismo conduziu os países para um beco onde a direita e a extrema-direita ameaçam ser as escolhas únicas.

Pior do que a pobreza das opções dos franceses são as advertências que chegam. O nazi / fascismo parece ser uma questão apenas adiada na sua dramática ressurreição.

Os países que viveram sob o regime soviético são hoje um alfobre da extrema-direita, Rússia incluída, onde os nacionalismos medram, as liberdades regridem e os direitos humanos são postos em causa.

Os países mais populosos do mudo, a China e a Índia, têm respetivamente uma ditadura violenta e um nacionalismo musculado e agressivo. 

Do Reino Unido aos EUA, da Turquia à Arábia Saudita, da Síria à Líbia, das teocracias islâmicas e dos nacionalismos étnicos e religiosos, que recrudescem em todo o mundo, já eram enormes as ameaças que perturbavam a UE. Faltava a invasão da Ucrânia para a arrastar para um conflito cujas consequências ameaçam dividi-la e envolver na guerra o resto do Mundo numa orgia de horror e sofrimento sem paralelo nas nossas vidas.

É a própria sobrevivência da vida na Terra que está em perigo enquanto os pregadores da guerra e os vendedores de armamento não deixam ouvir apelos à paz. 

O grito mais subversivo e incómodo passou a ser Viva a Paz!

Malditas guerras!

Ponte Europa Sorumbático

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