Grande Angular - O espectáculo da guerra
Por António Barreto
A guerra é fotogénica. Tal como a dor. Para já não falar da miséria e da fome. É mesmo provável que o sofrimento e a guerra tenham mais capacidade de atracção do que a felicidade e a paz. Muitos autores, com especial menção de Susan Sontag, têm pensado e escrito sobre este tema. E muitas e diversas são as opiniões, a tal ponto que podem ser várias as verdades.
A imagem, tanto fotográfica como televisiva, é actualmente um poderoso meio de informação, talvez o mais eficaz. Com imagens, as palavras adquirem valor. Mesmo sem texto, as imagens têm força própria. Sem imagens, os textos e as palavras perdem influência. Sobre as relações entre as imagens, a verdade, a razão e os sentimentos, diz-se tudo e o seu contrário. E em quase tudo há verdade. E falsidade.
O excesso de imagens e de reportagens satura a opinião e as consciências. Pior ainda, torna as pessoas habituadas e insensíveis. O excesso de informação faz com que a guerra e a violência sejam quotidianas e usuais.
A profusão de imagens, de vídeos e de reportagens em directo alimenta os sentimentos, mantém as pessoas alerta, é uma permanente mobilização de solidariedade ou mesmo de protesto. A fotogenia pode influenciar os sentimentos e a razão.
Pela emoção e pelos sentimentos, as imagens são os melhores incentivos à formação de opinião. Sem imagens, as informações frias e as narrativas racionais não são mais do que isso, informações, incapazes de desencadear o afecto.
Pelo recurso às emoções, as imagens são obstáculo à compreensão, ao pensamento e à reflexão, mas são propícias à mobilização, à intoxicação e à manipulação de consciências.
Pelo excesso de filmes e de televisão, as imagens são incentivos à indignação momentânea e passageira, o que faz com que sejam também estímulos à passividade.
Pela atracção sentimental e pelo seu capital emocional, as imagens são os melhores incentivos à solidariedade e à disposição de cada um para se empenhar em causas humanas.
As imagens não incluem nova informação e novo raciocínio, limitam-se a assegurar a nossa predisposição e as nossas crenças. Olha-se para as imagens à procura de confirmação, não de informação. Quem simpatiza com os Ucranianos, vê as imagens de televisão a essa luz. Quem prefere os Russos, vê nessas imagens o que quer ver. O mesmo bombardeamento pode ser visto como um gesto bárbaro da aviação russa ou como uma encenação dos Ucranianos para comover a opinião. Já se disse que os bombardeamentos russos eram os mais bárbaros actos de agressão cometidos nas últimas décadas. Já se disse que os misseis russos eram desviados pelos Ucranianos, a fim causar mais vítimas e impressionar a opinião pública.
Os canais de televisão (portugueses, europeus, americanos e outros…) dedicam à guerra da Ucrânia tempo infinito, recursos inéditos e meios significativos. É provável que esta seja a guerra mais fotografada, mais filmada, mais transmitida em directo e mais acompanhada hora a hora. Claro está que o facto de ser a última conta: os mais sofisticados meios tecnológicos que estão ao dispor da informação permitem acompanhamento inimaginável no passado recente. Aliás, os meios de informação utilizam processos de captação de imagens, de retransmissão de divulgação impensáveis há poucos anos. Os órgãos de informação usam instrumentos tão sofisticados quanto a própria guerra: os drones são apenas os mais visíveis e que permitem as imagens mais espectaculares. Mas há muitas mais “armas” que tanto servem a guerra e a espionagem como a informação. Sem falar na utilização intensa de telemóveis que transformou todas as pessoas em fontes de informação pela imagem.
Quem pode, usa todos os meios possíveis para informar, defender, atacar, justificar e denunciar. Ou para manipular, intoxicar, enganar e acusar. É infelizmente “normal” que os Estados, os Governos, as Forças Armadas e os partidos manipulem os meios de informação para defender as suas causas e para criar dificuldades ao inimigo. É infeliz, mas é assim. Sempre foi assim. Tanto em tempo de paz como na guerra.
Já é menos “normal” que os jornais, as televisões, as plataformas de informação, as rádios e outros meios de comunicação, sobretudo os que se pretendem isentos e profissionais, naveguem nas mesmas águas que a informação orientada. Uns por simpatia política e outros por sensacionalismo, é frequente estarmos diante de quem engane deliberadamente, quem distorça os factos, quem oculte, quem encene e quem invente.
E também não é “normal”, pelo menos segundo os critérios e os valores vigentes em democracia, que se proíbam informações que não concordam com as verdades mais estabelecidas ou com os interesses dominantes. É por exemplo condenável que alguns países ocidentais tenham proibido o acesso a certos órgãos de informação do governo russo. Podem e devem ser desmentidos e contrariados com a verdade e com a liberdade de discussão, mas não devem é ser proibidos. A proibição ou a censura são armas de quem ataca a liberdade, não de quem defende a liberdade.
A única arma eficaz e que nos dá algumas garantias é o pluralismo e o confronto de opiniões. País que defenda e pratique o pluralismo na informação ajuda a que se acredite no que lá se diz. País onde as fontes e os meios de informação pertencem ao poder ou são dominados pelo governo é país para ignorar ou desconfiar. Nesta perspectiva, parece não haver dúvidas: nos países ocidentais há a possibilidade de ter acesso a muitas verdades e opiniões, na Rússia não há. Naqueles países, toda a gente pode exprimir e defender as suas opiniões, na Rússia não.
Mesmo admitindo que nos países ocidentais também há manipulação da informação, mesmo tendo a certeza de que os poderes estabelecidos no Ocidente exibem ou ocultam o que lhes interessa, mesmo sabendo que as autoridades dos países democráticos prezam a verdade mas nem sempre a cultivam, mesmo nestas condições, há uma verdade que não é relativa: a Rússia, o seu governo e as suas Forças Armadas agrediram e invadiram um país sem motivos que justifiquem tal acto, sem razões que fundamentem tal gesto, sem provocação e sem justa causa de autodefesa.
Mesmo sabendo que há mentiras de todos os lados, sei que no Ocidente há infinitamente mais liberdade, mais democracia, mais confronto de opiniões, mais possibilidades de apuramento dos factos, mais liberdade de expressão e mais independência dos órgãos de informação. Sobre isto, não há dúvidas.
Público, 14.5.2022
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