Grande Angular - Orgulho
Por António Barreto
O “Índice de Liberdade de Imprensa”, publicado pelos “Repórteres sem Fronteiras”, confere a Portugal o sétimo lugar, digo bem, o sétimo lugar, num total de 180 países. Nos últimos tempos, o nosso país tem-se colocado entre os lugares 40 e 12. O progresso tem sido seguro. E é motivo para alegria e algum orgulho.
Esta situação merece tanta mais atenção quanto vivemos tempos difíceis para a liberdade e para a imprensa. Assim como para as liberdades de pensamento e de expressão, conceitos próximos, mas diferentes. Segundo a organização citada, assim como para as instituições que se preocupam com estes problemas, a liberdade de imprensa está a viver períodos de recuo. Já nem se conta o número, que aumenta todos os anos, de profissionais vítimas (feridos, mortos, prisioneiros, detidos…) da luta pelo exercício livre da profissão. Nem se contam os governos, as empresas, os partidos políticos, os grupos económicos, as religiões e as instituições sectárias que, em qualquer parte do mundo, atentam contra a liberdade de expressão e a imprensa livre.
Grupos terroristas, forças armadas de certos países e polícias de vários continentes não esquecem que a liberdade de imprensa vem à cabeça da luta pelas liberdades. Jornais, rádios, revistas, televisões, plataformas de informação… nada nem ninguém escapa. Até as chamadas “redes sociais”, inicialmente festejadas pelo seu contributo para a expansão das liberdades, acabam por ser contaminadas por quem tem ou quer ter poder.
O lugar de Portugal, logo a seguir aos nórdicos, é pouco habitual. Portugal nunca brilhou pela liberdade da imprensa nem pelos direitos de todos à expressão livre. Mas encontra-se finalmente, de acordo com os critérios desta classificação, em lugar honroso. Pode até talvez dizer-se desproporcionado, na medida em que, na maior parte dos indicadores relativos à cultura, à educação, aos direitos humanos e aos tribunais, Portugal faz quase sempre triste figura. Parece não ser o caso este ano. Felizmente.
É verdade que muito depende das organizações que elaboram estas classificações, dos critérios que utilizam e dos métodos de recolha e tratamento da informação. Como é certo que todos esses critérios e métodos são discutíveis. Mas esta organização já deu provas. Podemos confiar no que faz. Discutir sempre tudo, mas confiar. Pode haver outros critérios e outras classificações. Mas esta vale por si.
Conhecemos as inúmeras dificuldades que, em Portugal, tanto nas últimas décadas como no último século, pesam sobre a liberdade de imprensa ou ameaçam o pluralismo. Quase todos os governos e primeiros-ministros tentaram, de uma maneira ou de outra, influenciar a imprensa escrita e as televisões. Houve mesmo quem tentasse comprar, por interpostas pessoas, órgãos de informação. Foram poucos os governos que resistiram à tentação de nomear administradores e directores dos canais públicos de televisão e rádio, assim como das agências e plataformas de informação.
Sabemos que os políticos portugueses no activo (governantes ou deputados) têm uma especial predilecção pela colaboração em jornais, rádios e televisões, privados ou públicos, o que conseguem graças ao seu poder. Sabemos que há políticos, no activo, que aceitam salário para escrever ou falar regularmente, como sabemos que há os que o fazem gratuitamente, na condição de ter um lugar cativo. Sabemos ainda que certos ministros publicam artigos seus quando lhes interessa e convém.
É público e notório que existe um predomínio das esquerdas nos meios de informação (tanto públicos como privados, mas seguramente mais naqueles do que nestes), o que enviesa o pluralismo ou condiciona a isenção. Se, em parte, isso resulta do poder político das esquerdas, também é consequência de vocações culturais e tendências sociais. Todas as espécies de jornalismo e de animação cultural atraíram sempre mais as esquerdas do que as direitas. A “luta cultural” e o “activismo” são um lugar de eleição das esquerdas, o que acontece sem interferência directa dos governos. Bem mais negativas são as concepções do “jornalismo de causas”, do “jornalismo activista” e do “jornalismo empenhado”. Sem falar no jornalismo ao serviço da “luta de classes” e da “hegemonia cultural”. Acrescente-se que os canais de televisão, sobretudo nos debates, concretizam esta hegemonia de esquerdas, que completa o indiscutível poder do governo.
Muito grave é a intervenção invisível do poder político. Esta processa-se de modos variados. Por exemplo, a selecção dos órgãos de informação a quem se dá, em primazia, certas informações. Ou a escolha daqueles a quem se dá de preferência a publicidade oficial (muitíssimo valiosa). Ou o favor que se faz a empresas privadas de grandes anunciantes para que estas, em troca, possam exercer as suas influências junto dos jornais e dos canais de televisão. O governo tem um enorme poder na “marcação da agenda”, de modo a que a imprensa siga as prioridades estabelecidas pelos interesses políticos. Muitas são as vias dos senhores da política que os levam a condicionar a imprensa.
Mesmo assim, ameaçada pela política, limitada pelo poder económico, em crise de publicidade e subjugada pelas redes sociais, mesmo assim, a imprensa portuguesa tem sabido manter defesas, preservar alguma dignidade e conservar uma certa independência. Mesmo com todas as dificuldades, Portugal, entre 180 países, está em sétimo lugar no “Índice de Liberdade de Imprensa”!
Não creio que tal se deva aos políticos, nem às autoridades. O currículo destas, nas últimas décadas, não é particularmente brilhante. Também não se deve ao amor que os cidadãos têm pela imprensa: na verdade, os indicadores de leitura e de audiência dos órgãos de informação colocam Portugal entre os mais deficientes da Europa, talvez mesmo os piores. Não penso que seja possível atribuir à magistratura e aos tribunais um papel muito relevante na defesa da liberdade de expressão: são frequentes as sentenças que a condicionam, como são repetidas as decisões ou sentenças dos tribunais europeus contra o Estado português por causa dos direitos mal defendidos ou violados.
Quer isto dizer que aquele “sétimo lugar”, classificação honrosa entre quase duzentos países, se deve sobretudo aos jornalistas, a uma parte deles, que se esforçam por manter elevados graus de dignidade e de isenção. Bem hajam!
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Público, 21.5.2022
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