30.10.22

Dedicado aos que garantem que Gago Coutinho era algarvio... porque "Se não foste tu, foi o teu pai".


Certidão de Baptismo

Aos vinte e um dias do mês de Junho de mil oitocentos e sessenta e nove, nesta igreja paroquial de Santa Maria de Belém, diocese de Lisboa, baptizei, solenemente, um indivíduo do sexo masculino, a quem dei o nome de CARLOS, e que nasceu nesta freguesia às três e meia horas da manhã do dia dezassete do mês de Fevereiro de mil oitocentos e sessenta e nove, filho legítimo primeiro de geração e de nome José Viegas Gago Coutinho, marítimo, natural de Faro,  e de Fortunata Maria Coutinho, natural de Faro, recebidos na Sé de Faro, e  paroquianos nesta de Santa Maria de Belém, moradores na Calçada da Ajuda, número cinco; neto paterno de Manuel Viegas Gago Coutinho e de Maria do Carmo Cruz, e materno de Pedro da Cruz Cabeleira e de Fortunata Maria. Foi padrinho Ângelo Joaquim José da Silva, casado, cabo de Lanceiros da Rainha, número dois, morador na Calçada da Ajuda, número cinco, os quais sei serem os próprios. E para constar, lavrei em duplicado em assento, que, depois de lido e conferido perante os padrinhos, o assino. Os padrinhos Ângelo Joaquim José da Silva. A rogo de Joaquina da Ressurreição, Frutuoso António dos Santos Júnior. 

O coadjutor, Barnabé Torres Canhão.

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Consta mais da certidão que «faleceu na freguesia de Santa Engrácia [Hospital da Marinha], de Lisboa, pelas dezoito horas e cinco minutos do dia dezoito do corrente mês. Assento número oitenta e oito, da primeira Conservatória de Lisboa. 

Em vinte e um de Fevereiro de mil novecentos e cinquenta e nove. 

O conservador, C. Saraiva.»

Transcrito da biografia de GC, da autoria do piloto-aviador Pinheiro Corrêa, 1965

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29.10.22

Grande Angular - O génio de António Costa

Por António Barreto


É um raro percurso político o de António Costa. Foi, até hoje, um caminho difícil, no país e no partido, entre Soares e Sampaio, entre Guterres e Sócrates. Foi uma jornada muito difícil, com Soares e Sampaio, com Guterres e Sócrates. O que pareceu ser uma eterna assessoria, foi finalmente uma obra de arte a desbravar um caminho e a subir a montanha.

 

Inteligente, um grande prático do poder, entre a esquerda e a direita, entre o mercado e o Estado, este empírico das artes públicas nunca governa pela ideologia ou pela doutrina, mas sim para a galeria e o eleitorado. Vive com a mesma sinceridade as dificuldades das empresas e a má sorte dos trabalhadores. Sabe, como poucos, que a democracia se faz com os ricos e os pobres. E ele tenta governar para os dois, ora para uns, ora para os outros.

 

Libertou-se do seu negro passado que lhe adveio da experiência com o governo de Sócrates. Resgatou os seus amigos que também ajudaram este último e agora o ajudam a si, com o mesmo animo de áulicos dedicados. A todos soube mostrar que o seu futuro político dependia dele e só dele. Já meteu na ordem vários candidatos a Delfim e outros putativos sucessores.

 

Entre Lisboa e Berlim, entre Bruxelas e Frankfurt, construiu o seu caminho e modelou um raro perfil de talento na galeria europeia. Agrada à esquerda e à direita, com rara bonomia.

 

Na primeira fase dos seus governos, soube ser colaborador e apoiante do Presidente da República, para, na segunda fase, inverter os papéis e mudar o acento tónico. E assim soube resolver, melhor do que os antecessores, os defeitos do regime semipresidencialista.

 

Formou governo sem maioria e conquistou o poder apesar de ter perdido as eleições. Soube servir-se de quem o queria matar e rejeitar quem o queria ajudar.

 

Deu um contributo eficaz para o crescimento moderado do Chega, mas suficiente para liquidar o CDS e arrumar o PSD por um tempo considerável.

 

Conseguiu destroçar, quem sabe se definitivamente, as esquerdas radicais do PCP e do Bloco, seduzindo-os o suficiente para o ajudarem a contragosto, sabendo eles, como sabiam e verificaram, que era um episódio inevitável, é certo, mas provavelmente letal. Com o mesmo sorriso, chamou-os e desbaratou-os.

 

Graças a Costa, nunca a extrema-direita esteve tão forte nos resultados eleitorais, mas também se lhe deve o facto de o Chega se ter deixado, talvez irremediavelmente, seduzir pela liturgia democrática. É ainda sua obra a circunstância de as esquerdas revolucionárias nunca terem sido tão minoritárias e insignificantes como agora.

 

Com o mesmo discernimento empírico e pragmático, soube e tem sabido governar, ora à esquerda, ora à direita, com proclamações, certamente, mas sem compromissos políticos, económicos ou sociais.

 

Teve a má sorte da pandemia e da guerra na Ucrânia. Mas tem sabido utilizar uma e outra a seu favor, mostrando aos eleitores que é o melhor a tratar dessas duas calamidades.

 

Os êxitos políticos deste homem, indiscutíveis, são apenas comparáveis aos seus desastres ou, noutras palavras, à sua incapacidade.

 

Consigo, diante de si, o Serviço Nacional de Saúde, sempre com mais dinheiro, sempre com mais médicos e enfermeiros, não consegue dar conta do recado: as filas de espera, os adiamentos e a desigualdade social ameaçam o que de melhor se fez. O definhamento de SNS, ameaça real, tem apenas um responsável: a autoridade.

 

Durante o seu tempo, a Justiça portuguesa, promotora da desigualdade social, não consegue encontrar o caminho da reforma e da eficácia, nem consegue pelo menos modernizar-se o suficiente para escapar à corrupção, para reduzir a indolência, para enfraquecer a burocracia e para conter os interesses enquistados no sistema.

 

Não conseguiu inverter as tendências para a perda de investimento privado, nem para o desaparecimento das melhores empresas portuguesas ou estrangeiras em Portugal. 

 

Diante de si, aumenta o número de emigrantes portugueses, com valores anuais a fazer lembrar os anos sessenta do século passado ou os anos noventa do século XIX. Mas parece não haver política capaz de olhar para esse problema. Consigo, aumentam os imigrantes estrangeiros em Portugal, ilegais, cativos de redes de passadores e presos por traficantes de mão de obra, sem que as autoridades tenham vontade ou força para resolver. Estes problemas, mais o do envelhecimento da população, servem para magníficos discursos de “homem de Estado preocupado”, mas continuam virgens de tentativas de resolução.

 

Depois de promessas repetidas e de programas para uma nova economia, uma nova ciência e a modernização digital; e apesar de todas as tentativas de reflectir, programar e planificar, não conseguiu até hoje ultrapassar o âmbito dos tratados e compêndios encomendados e da literatura tecnocrática e sistémica, materiais de uma aflitiva esterilidade. 

 

Talvez tenha percebido ou identificado alguns dos mais sérios problemas da sociedade portuguesa, da falta de capital e de formação, à pobreza e à fragilidade de um Estado obeso. Da ausência de experiência democrática à pobreza das instituições livres. Da diminuta tradição liberal à quase nula independência individual. Mas decidiu há muito adiar o que é importante e crucial, o que é difícil, o que não se pode resolver numa geração, o que exige que vá contra a corrente fácil, o que implica não agradar a todos ao mesmo tempo e o que não está na moda.

 

É verdade que as suas políticas, no seguimento de outras anteriores, têm sabido aliviar a pobreza e a destituição. Uma parte da desigualdade económica é realmente contrariada pelo esforço público, isto é, pela Segurança Social, pela fiscalidade e por toda a espécie de apoios e subvenções estatais. É verdade e é bom que assim seja, em nome de mais decência na sociedade. Mas não é menos verdade que todos esses remédios sofrem do mesmo: da precaridade e do carácter provisório dessas medidas. As distribuições de rendimentos e de subsídios em curso, a toda a gente, incluindo a quem não precisa, são bons exemplos dessas políticas e dessa visão do mundo.

 

Tendo afirmado a prioridade absoluta à luta contra a pobreza e a desigualdade, o que é nobre e importante, deverá um dia confessar a tremenda falta de resultados. O alívio do sofrimento, tantas vezes real, é sempre no imediato e no curto prazo. Como o Carnaval, o lenitivo acaba na terça-feira. A dor recomeça na quarta-feira. 


Público, 29.10.2022

 

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28.10.22

Humildes

Por Joaquim Letria

Para se tirar bom proveito daquilo que a curiosidade nos dá a saber, é indispensável  o uso da razão de modo a assimilarmos  os conhecimentos. 

O que chamamos de inocência é a infância , que Jean Jacques Rousseau comparava “com a luz da aurora que resplandece pela manhã ao nascer o sol sem nuvens”.

Inocência e razão, infância e maturidade compõem o binómio de que é formada a maravilha a que nós chamamos de “género humano”. Por  outro lado, é interessante observar como o homem sempre quis minimizar, ou mesmo apagar, os melhores exemplares de si próprio. Essa qualidade pode sintetizar-se , como convém para esta reflexão, num ponto  comum a que chamamos modéstia, seja esta verdadeira ou falsa, e que acabamos por classificar como se tratando de virtuosa .

Dizia Boileau que a humildade se verifica quando o mais sábio é aquele que nem remotamente pensa  em vir a sê-lo.  Para os povos latinos, humildade é quando “ninguém é sábio em todas as ocasiões”. Humildade, sentenciava Séneca, é “quando se pode ser sábio sem vanglória nem inveja”. Sócrates, que também se deu ao trabalho desta reflexão, criou um “leit motiv” defensivo, mas que nos chega até hoje:  ”Só sei  que nada sei”.

Em síntese, e à luz da nossa tradição judaico -cristã, é a sabedoria que garante que “quem se humilhe será exaltado” e , como  profetizado no Livro de Job, “viverá em glória”.

Muita gente, como Afonso Karr, não acredita em nenhum sábio até o ouvir dizer três vezes “duvido” e duas “não sei”.  E pergunto eu num sobressalto: porque não fazer a vontade a esta gente se a Terra pertencerá aos humildes?!

Para já, brinquemos à razão do repouso, que é muito diferente e nada tem a ver com o repouso da razão. Assim poderíamos ser todos muito felizes ao guardarmos de outros muito do que sabemos.

Publicado no Minho Digital

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27.10.22

Marcelo Rebelo de Sousa – Um perfil escondido

 


Por C. B. Esperança

Depois da agradável surpresa de um PR inteligente, culto e simpático, sucedendo a dez anos de um empedernido e azedo salazarista, Marcelo começou a arruinar, no segundo mandato, a imagem do primeiro. Já gastou o cabedal de simpatia que mereceu.

A irrefreável tendência para comentar tudo, do futebol à política, da canoagem à poesia, das vacinas à economia, dos incêndios às inundações, das decisões políticas aos autores, dos OE à conduta das oposições, só se contém perante eventuais fugas de informação da sua Casa Militar, na decisão conjunta do PM e PR para a nomeação do alm. Gouveia e Melo para CEMA, e notícias de pedofilia eclesiástica.

Ao contrário dos beija-mãos ao Papa e aos bispos, exibe uma postura arrogante com os políticos, quiçá ressabiado da derrota na Câmara de Lisboa, do epíteto de Balsemão e das acusações deste, de ser delator das decisões dos Conselhos de Ministros para os media, mestre na intriga e na dissimulação, nas pretensas idas à casa de banho.

O homem que chamou Lelé da Cuca ao dono do semanário que o nomeou diretor, para se desculpar com um teste aos revisores e lhe revelar, depois, que o considerava como pai, é quem escreveu a Marcelo Caetano o elogiá-lo: “Como Vossa Excelência apontou, Aveiro representou, um pouco mais do que seria legítimo esperar, uma expressão política da posição do PC e o esbatimento das veleidades «soaristas»1.

É ainda o mesmo que na entrevista telefónica à jornalista Alexandra Tavares-Teles, na revista Notícias Magazine, recordando, ‘como viveu o 25 de Abril’, refere a resposta que deu ao pai, influente ministro da ditadura, depois de este lhe ter dito que Marcelo Caetano lhe garantira que vinham a caminho de Lisboa tropas fiéis ao governo: «Disse-lhe o que sabia. ‘Não, pai, não vêm forças nenhumas, não pensem nisso, isto está a correr rapidamente. Acabou.’». E, quando a jornalista lhe perguntou: «De onde vinha essa certeza?», respondeu com aquela candura que usa na intriga e nos afetos:

- O António Reis [militante e dirigente político ligado ao PS] tinha-me avisado da proximidade do 25 de Abril com alguma precisão. E embora o meu pai fosse dos membros do governo teoricamente mais bem informados, percebi, naquele momento, que, de facto, estava muito pouco informado. Penso que ele terá transmitido a informação a Marcello Caetano e que este terá respondido: “Esse Marcelo Nuno só traz más notícias. Isso são coisas do contra». 2

Não sei o que mais admirar, se a insensatez do jovem político António Reis, a devoção filial de Marcelo ao ministro fascista, a denúncia da Revolução ao Governo ou a traição à (in)confidência do amigo. Aliás, era interessante saber quando foi «aquele momento», o da indiscrição de António Reis a Marcelo Nuno e o da delação ao governo, através do [pai] ministro de Caetano. Felizmente, Marcelo Caetano não o levava a sério.

Marcelo não é só o hipócrita que, na apoteose da fé, deixou numa cama o sacramento do matrimónio indissolúvel e levou para outra as hormonas e o adultério3. Foi também, e é, o artífice das soluções mais reacionárias que a direita democrática tomou em Portugal.

Foi contra o SNS, lutando depois contra a universalidade, alegando o seu caso, injusto, pois podia e devia pagar a saúde, e tinha direito à gratuitidade. Com Guterres pensou o referendo que atrasou a legislação que aprovou a despenalização da IVG. Este Marcelo, que lava mais branco o passado do que qualquer detergente as nódoas, é o mesmo cujos preconceitos pios preferiam a morte de mulheres cuja vida perigasse com a gravidez, a gestação obrigatória das vítimas de violação e das grávidas de um feto teratogénico. 

Esteve sempre, nos costumes, do lado mais reacionário, tal como na política. Veja-se: 

Marcelo Rebelo de Sousa, José Miguel Júdice, Santana Lopes, Manuel Durão Barroso e António Pinto Leite surgiram no início de 1984, organizados, para fazerem regressar ao poder, por via democrática, a velha política, sob o pseudónimo de “Nova Esperança”, e foram decisivos em dois congressos do PSD, em 1984 [Braga] derrotando Mota Amaral com Mota Pinto e, especialmente, em 1985 [Figueira da Foz], na improvável ascensão à liderança partidária do obscuro salazarista Cavaco Silva, derrotando João Salgueiro.

Marcelo não foi apenas líder do PSD, foi sempre o defensor das posições que são hoje minoritárias na sociedade portuguesa, por mais anestesiada e aturdida que se encontre.

Depois de dez anos de Cavaco, a reintegrar pides e a gozar os pingues fundos europeus conseguidos com a adesão à UE por Mário Soares, podia pensar-se que Marcelo teria o remorso cristão e democrático, e reincidiu na vivenda de Ricardo Salgado, juntando ao casal do anfitrião, o seu, o de Durão Barroso e o de Cavaco, para preparar a primeira candidatura vitoriosa de Cavaco a PR.

Nunca ninguém o confrontou sobre a posição que tomou quando Eanes defrontou o gen. Soares Carneiro, ex-diretor do presídio colonial de S. Nicolau e que, após a derrota, em afronta aos militares de Abril, Cavaco reintegrou no ativo e promoveu a CEMGFA. Foi essa afronta à democracia e à legalidade que levou o PR Marcelo a atribuir a Cavaco o mais elevado grau da Ordem da Liberdade? Foi uma ofensa aos mártires da ditadura.

Marcelo, que aceitou ser presidente da Fundação Casa de Bragança, saberia que o cargo era incompatível com a ética republicana e a presidência da República? Pode agradar à populaça, mas não serve a democracia.

Tenho por este PR o respeito mínimo a que o Código Penal me obriga; julgo-o capaz de quase tudo e com uma agenda perigosa. Vejo nele um perturbador da governabilidade e das relações interpartidárias, por obsessão dele e não por desconfiança minha.

É preciso avisar a malta! É urgente impedir a presidencialização do regime parlamentar através do PR que se imiscui na exclusiva responsabilidade do Governo pela condução política do País e na do PM na condução do Governo.

A CRP obriga o PR a respeitá-la e a defendê-la, o que não faz. O que a CRP não obriga é um cidadão a acreditar no PR, na honorabilidade da sua agenda privada, na brancura do seu passado, na honradez da sua palavra ou na isenção dos seus julgamentos.

Às vezes tenho a vaga impressão, talvez injusta, de que o Palácio de Belém pode ser, à semelhança do que acontece no Brasil, no Palácio do Planalto, habitado por mesquinhos inquilinos que são incompatíveis com a verdade, independentemente do sufrágio que lhes abre as portas.

1 (in «Cartas Particulares a Marcello Caetano», organização e seleção de José Freire Antunes, vol. 2, Lisboa, 1985, p. 353 via Abril de Novo Magazine)

2 (In Notícias Magazine, 22 de abril de 2018, pág. 20, 3.ª coluna).

3 Vocábulo da linguagem pia.

Ponte Europa Sorumbático

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24.10.22

No "Correio de Lagos" de Setembro de 2022

Recordando um Grande Homem

HÁ ALGUM tempo, quando foi anunciado que iria ser dado o nome do Almirante Gago Coutinho ao aeroporto de Faro, o actual presidente da A. M. dessa cidade e ex-deputado pelo Algarve insurgiu-se porque — segundo se podia ler na comunicação social — tal iria menorizar a cidade, por o seu nome passar a ser omitido, o que me suscitou as seguintes considerações:


A PRIMEIRA, é que não tem nada de extraordinário associar o nome de personalidades a obras (públicas ou privadas), quer se trate de um hospital, de uma ponte... ou, como é o caso agora, de um aeroporto. E, para me ficar apenas por essa categoria, aí temos o de Humberto Delgado (que toda a gente continua a referir, também, como “de Lisboa ou da Portela”), o de Sá Carneiro (“do Porto ou de Pedras Rubras”), o de Cristiano Ronaldo (“do Funchal”), para já não referir o de Charles de Gaulle (em Paris), o de Santos Dumont (no Rio de Janeiro), e por aí fora — nunca desaparecendo, na prática, a referência às cidades em causa.

 

A SEGUNDA, é que associar o nome do nosso Almirante a alguma coisa não a menoriza, antes a prestigia. Curiosamente, o mais que se poderia dizer é que o seu nome teria ficado melhor no aeroporto de LISBOA, cidade que o atribuiu à avenida que, logo à sua entrada, também é conhecida por “do aeroporto” — pelo que, também aqui, Gago Coutinho teria ficado associado à aviação e, mais ainda, à cidade que amava, e onde NASCEU, VIVEU e MORREU.

 

ORA, as últimas palavras remetem-me para aquilo que nunca pensei ser preciso escrever, mas sucede que alguma comunicação social resolveu “esclarecer” que o nome do Almirante tinha sido dado ao Aeroporto de Faro porque ele era algarvio, indo ao requinte de especificar que era de S. Brás de Alportel! 

E, no entanto, bastaria terem acedido à Internet para saberem que Gago Coutinho NASCEU em LISBOA (no dia 17 de Fevereiro de 1869, no n.º 5 da Calçada da Ajuda, onde os pais residiam), VIVEU em LISBOA (nomeadamente, no n.º 164 C da Rua da Esperança onde, entre outras referências, está uma placa colocada pela C. M. de Lisboa aquando dos 75 anos da “travessia”), e MORREU em LISBOA (no dia seguinte a completar 90 anos) na antiga freguesia de Santa Engrácia.

Em caso de dúvidas, poderei facultar, a quem o queira, basta documentação, incluindo fotos das referidas casas, o texto integral da sua Certidão de Nascimento / Baptismo (acrescentada com a data e o local do falecimento), e muito mais que sobre ele coligi, ao longo dos anos, com destaque para a completíssima biografia da autoria do Piloto-Aviador Pinheiro Corrêa e da não menos exaustiva obra do próprio Almirante intitulada “A Náutica dos Descobrimentos”.

Esta, nos seus dois grossos volumes, explica e detalha as principais navegações históricas, com grande profusão de dados e mapas, mas de leitura bem acessível, até para quem, na página do Facebook da Freguesia de S. Gonçalo de Lagos escreveu, em Fevereiro passado, que Magalhães tinha dado a volta ao mundo (na viagem de 1519) na nau Santa Maria, a capitânia de Colombo — apesar de ter sido morto em 1521, de o genovês ter morrido em 1506, e de a referida nau ter sido desmantelada em 1492, depois de encalhar no actual Haiti.

 

NOTA — No número de Julho passado, o “Correio de Lagos” já aqui lamentou, a propósito das placas toponímicas que, por cá, homenageiam modestamente Gago Coutinho e Sacadura Cabral, a incompreensível «... omissão das datas de nascimento e morte (respectivamente 1869-1959 e 1881-1924)», acrescentando que, no caso de militares, a norma habitualmente seguida levaria a que os seus nomes tivessem sido antecedidos pela indicação dos respectivos postos — neste caso, “Almirante” e “Comandante”», o que também foi omitido... sabe-se lá porquê.


 





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22.10.22

Grande Angular - Duas ditaduras

Por António Barreto
Vale a pena recordar. Duas imagens ou sequências que servem para ilustrar um novo mundo possível. Coincidentes no tempo, mas também na intenção. A primeira tem origem lá muito longe, nos palácios de Pequim: são as cerimónias inaugurais do grande congresso quinquenal do partido comunista chinês, numa esplendorosa sala com milhares de delegados, quase todos homens, muito aprumados, quase todos iguais, com os mesmos fatos escuros, as mesmas gravatas, o mesmo sapato escuro envernizado, a mesma pose, a mesma maneira de aplaudir, a mesma inclinação de cabeça, o mesmo sorriso que não é bem um sorriso, todos colocados simetricamente, arrumados em perfeita geometria, com o grande líder à frente, ao centro, e todos os restantes iguais, hirtos, áulicos em filas de prioridades e dignidades. Mantém-se a foice e o martelo, pois claro, abundam as bandeiras chinesas vermelhas, evidentemente, mas o uniforme de Mao desapareceu, agora é o fato burguês e burocrata do Ocidente, feito uniforme civil. Os soldadinhos de chumbo tinham mais vida e alegria. As marionetas têm mais fantasia.

 

A segunda vem de mais perto. De Moscovo, pois claro, onde um ditador minúsculo percorre corredores imperiais e atravessa portas colossais, com enormes porteiros e soldados gigantescos, em gestos de autómatos e que apenas aumentam o ridículo do pretenso imperador. Este último, a passo saltitante, mas com aparência de agilidade, aproxima-se de um pódio, numa sala imensa, preenchida com centenas de cadeiras arrumadas e ordenadas, com quase só homens, títeres ungidos, vestidos da mesma maneira, hirtos, aprumados, de fato escuro e gravata a condizer, de caras fechadas sem sorriso nem vontade, só com esgar obediente, a aplaudir ao mesmo tempo, com os mesmos gestos mecânicos. Num cardume, há mais liberdade.

 

Naquelas salas imensas, preparadas para reduzir a gente, criar a ilusão do poder, fingir a majestade do colectivo, simular a grandeza dos bens e a pequenez das pessoas, encena-se a liturgia do totalitarismo, como poucas vezes aconteceu na história. Aquelas cerimónias revelam as mais sérias advertências contra a humanidade, sobretudo contra a democracia e a liberdade. Uma coincidência seguramente não casual: em ambos os casos, o poder não é apenas do Estado e da força militar, é também o do ditador, do líder indiscutido e não eleito. Outras coincidências não escaparam. Ambos os países se dizem ameaçados. Ambos apelam à sua história e ao seu grande passado, para legitimar o renascimento actual. Ambos entendem que são imprescindíveis ao mundo: até agora, a Rússia pelos recursos naturais e a China pelo trabalho industrial. Mas, a partir de agora, pela força militar, pela vontade imperial e pela predisposição para usar a arma nuclear.

 

É impossível saber se estes dois homens e seus países alguma vez serão aliados sérios e duráveis, se conseguirão partilhar o mundo ou parte dele, se poderão ser capazes de afrontar todos os outros, poderosos ou não. Há quem pense que uma aliança séria e consistente entre estas duas potências é impossível e que qualquer aproximação temporária resulta sempre em desastre. Até nos tempos da primeira grande aliança comunista, com Estaline e Mao no poder, a amizade durou pouco, a cumplicidade foi sonho de breve duração, apesar de ter sido de terror para a Europa e a América. Ali perto, a Índia e o Japão constituem outros polos asiáticos também poderosos. E as Coreias não se podem esquecer. Certo e seguro, para já, é que as duas ditaduras conseguem condicionar o mundo inteiro, intimidar os vizinhos, ameaçar as nações que entenderem e criar uma crise económica à escala planetária quase sem precedentes.

 

Curiosamente, Putin e Xi, assim se chamam os dois ídolos, entenderam ser necessário recordar aos seus e ao mundo que defendiam as suas pátrias, não aceitavam ordens, não obedeciam a poderes estrangeiros, fariam tudo o que fosse necessário para defender os seus interesses, que poderiam utilizar a força armada quando assim o entendessem e que não abdicariam nunca do uso da arma nuclear. Mais claro não poderiam ter sido.

 

Que não sobrem dúvidas: estão ali, naquelas imagens de ditadores quase sagrados, os maiores riscos de guerra, os maiores inimigos da paz mundial, as maiores ameaças contra a democracia e a liberdade. Estão ali as principais e mais letais armas contra as repúblicas de cidadãos, de homens e mulheres livres e iguais, de ideias que se exprimem, de acções e de gestos que se escolhem, de sonhos individuais que se realizam e de promessas que se cumprem. Estão ali os principais inimigos dos direitos humanos, da dignidade individual e da liberdade de pensamento e expressão.

 

Em pouco mais de uma década, o mundo mudou. Para nunca mais voltar a ser o que era no fim do século XX. Agora, novamente, a democracia está em recuo. As ditaduras políticas, militares ou religiosas na ofensiva. Os equilíbrios que se conheciam desapareceram, novos estão em preparação. Regressa-se ao tempo dos blocos, agora com nova configuração. Esta fase de transição é perigosa. A cada novo episódio surge nova ameaça. As duas grandes ditaduras tiveram já alguns êxitos, nomeadamente abriram divisões dentro da Europa e das Américas, onde encontraram mesmo admiradores. Souberam aproveitar as fragilidades e os erros do mundo capitalista e democrático. Muitos se convenceram, do lado de cá, que aprofundar o comércio e a colaboração com aqueles dois países era suficiente para os amarrar ao mundo da cooperação internacional e do equilíbrio de paz internacional. Assim agiram. Até ficarem nas mãos da Rússia para os recursos naturais, especialmente gás e petróleo, mas também cereais. E nas mãos da China, para toda a espécie de trabalho industrial e para a aquisição da dívida pública de quase todos os países ocidentais. É difícil ver, com precisão, as alternativas. Todas têm defeitos e riscos. Mas as vias seguidas foram talvez as que mais expuseram debilidades do ocidente.

 

No novo desenho do mundo, em curso, é errado pensar que os blocos já estão definidos. Grande parte das Américas, a África e a Ásia, assim como o mundo islâmico, estão sob influência, sedução, atracção e conquista das duas grandes ditaduras. Também nestes continentes, a democracia ocidental e o capitalismo estão em recuo, defrontados e cercados pelos regimes totalitários, claríssimos nas noções de poder, de Estado, de força militar e de imperialismo.

 

Não tenhamos dúvidas. O que está em causa é a democracia. E a liberdade.

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Público, 22.10.2022

 

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21.10.22

Entrevistas e entrevistadores

Por Joaquim Letria

Ao cabo de quase 60 anos de vida profissional creio ter feito centenas de entrevistas, para jornais, revistas, rádio e televisão.

Além disso, como professor de Ciências da Comunicação este foi um género que sempre muito estudei, observando talvez milhares  de entrevistas e estudando centenas de entrevistadores.

Em Portugal, a entrevista é um género muito mal tratado. Muitos entrevistadores procuram apenas chamar a atenção para si próprios, outros querem mostrar a sua independência contrariando o entrevistado a todo o custo e o resultado é mau para o público a quem a entrevista deve ser dirigida no sentido de o esclarecer, acabando por se assistir a uma algazarra desagradável que não entretém e donde é difícil tirar informação.

Não me refiro a nenhuma entrevista nem a nenhum entrevistador em particular. Apenas reflicto sobre um estado geral dum género jornalístico muito mal tratado, a maior parte das vezes por impreparação e por falta de reflexão quanto ao que perguntar, o estilo a utilizar e a perda de vista do objectivo essencial que é informar o público.

Vi e estudei dezenas de entrevistadores, quer em Londres ao trabalhar para a BBC que além do mais nos dava cursos de formação, quer nos Estados Unidos e Brasil a trabalhar para a Associated  Press. E aprendi a distinguir os estilos de cada um e a comparar os resultados.

Desde Sir Robin Day, talvez o maior entrevistador, mais respeitado pelo público e pelos entrevistados que punha a Grã Bretanha a ver televisão quando anunciavam uma entrevista sua a Michael Parkinson com o seu modo simpático e envolvente a David Frost que era o mais duro, seco e cujas entrevistas eram consideradas um castigo a quem a elas se submetiam.

Apreciei-os a todos antes de nos Estados Unidos ver Jonh Carson, Opprah Winfrey, Larry King, Susan Ammanpour, David Letterman, Walter Kronkite muito diferentes entre si, tal como diferentes eram Jay Leno, Stephen Colbert e Dick Cavett, assim como a equipa que hoje em dia alimenta o Hard Talk da BBC. Todos eles, de maneira diferente, visavam um objectivo quase sempre atingido: entreter, mas principalmente informar, esclarecer e fazerem aos entrevistados as perguntas que o público, de quem eram intermediários, gostaria de fazer se tivesse essa possibilidade. No Brasil, anos e anos a fio, Jo Soares fez um dos “talk Shows” mais interessantes do mundo, incluindo entrevistas das mais bem feitas que vi fazer. Curiosamente nenhuma desta gente era jornalista.

Não escrevo esta crónica motivado por alguma entrevista ou entrevistador em Portugal me darem esse pretexto. Temos, aliás, alguns bons entrevistadores que poderiam melhorar espectacularmente se estudassem e reflectissem mais, assim lhes dessem tempo para isso, como aconteceu no passado com Margarida Marante e Carlos Pinto Coelho. Apenas escolhi este tema para a minha crónica desta semana porque à minha volta ouço muita gente a dizer mal de entrevistas, muitas vezes sem motivo  para tal e outras vezes carregadinha de razão.

Publicado no Minho Digital


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20.10.22

O declínio democrático dos EUA e o perigo de contágio

Por C. B. Esperança

O susto provocado pela horda fascista, na invasão do Capitólio, estimulada por Trump, não se desvaneceu nos defensores da democracia liberal, dentro e fora dos EUA.

Quem viveu em ditadura e pensou que as democracias venceriam os totalitarismos, tem hoje razões acrescidas de preocupação, ao ver o número de regimes autoritários a voltar a ser maioritário.

Os EUA, que lutam pela hegemonia planetária, não são um exemplo de democracia nem o baluarte da defesa dos direitos humanos. Desde a pena de morte à violência racista, da politização do Supremo Tribunal ao moralismo das igrejas evangélicas que dominam os centros de poder, tudo, nesse imenso e poderoso país, contribui para fragilizar os ideais democráticos que inspiraram os autores da sua Constituição.

A revogação do acórdão Roe vs Wade pelo Supremo Tribunal dos EUA, em 24-6-2022, negou efetivamente às mulheres norte-americanas o direito constitucional de decidirem sobre os próprios corpos, decisão que alguns Estados levaram ao extremo de proibirem, em qualquer caso, a I.V.G., sem respeito pela autodeterminação sexual e reprodutiva da mulher, indiferentes aos riscos da sua saúde física, mental e da própria vida.

No fundo, foi a afirmação extremista do poder masculino sobre a mulher, uma forma de domínio ultraconservador, alheio à tragédia de uma violação, de um feto teratogénico ou à morte da mãe.

Esta misoginia evangélica extremista, que domina o Partido Republicano dos EUA, vai ter repercussões miméticas em muitos países, onde regressam tentações machistas sob a capa de da vontade divina interpretada por sacerdotes mais ou menos machos.

Este fenómeno de regressão, que a jurisprudência dos EUA apoiou, vai empurrar para a clandestinidade e condenar à morte milhares de mulheres, sobretudo as mais pobres.

Enquanto os países civilizados regridem, os outros ficam mais longe da evolução.

A religião é a desculpa para a subalternização e opressão das mulheres. Cabe a estas e aos homens civilizados impediram o regresso de trogloditas ao poder. 

Ponte Europa / Sorumbático

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19.10.22

No "Correio de Lagos" de Setembro de 2022

 

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15.10.22

Grande Angular - Trabalhos práticos

Por António Barreto

Cuidar do urgente. Tratar do necessário. E pensar o possível. Esta poderia ser uma das maneiras de resumir a acção política. No caso português actual, aplica-se seguramente. Podemos ter a certeza de que há desastre à nossa espera se os cidadãos e os políticos não perceberem que nenhuma das três tarefas é dispensável. Mas todas têm a sua lógica.

 

Esta últimas semanas trouxeram alguns marcos que aconselham à reflexão. A quase aprovação do orçamento, com os votos que já se antecipam ou conhecem, inicia um novo ciclo. Tudo leva a crer que seja um orçamento equilibrado, realista e que recolheu apoio de alguns sectores sociais. Se vai ter de ser revisto é problema que nos ultrapassa.

 

A agitação inútil criada entre o Presidente da República, o Governo, a Igreja Católica, a imprensa, as televisões e os comentadores, a propósito da pedofilia no seio da Igreja, talvez tenha chegado ao fim desta primeira fase, dolorosa e causadora de danos. As próximas fases serão certamente menos surpreendentes. Mas toda a gente percebeu que o assunto é delicado e a asneira fácil. O futuro não será melhor: aberto o livro, nunca mais a crónica cessa.

 

Em princípio e teoricamente, dois termos sublinhados, estamos dispensados de crises de maioria, de incapacidade legislativa e de forças de bloqueio. O Governo está feito e seguro. Não há nenhuma razão para que os espíritos se ocupem com intrigas e sucessões. Sabe-se o que de pior aí vem: guerra, inflação, problemas de abastecimento e custo de vida, défice energético assustador e talvez uma deriva social em resultado dos problemas económicos. É pouco provável que haja ainda mais surpresas ou problemas maiores.

 

O governo e as autoridades sabem o que as espera, de imediato. As urgências são todas conhecidas. Mesmo se difíceis. Rever a política de defesa nacional e a organização das forças armadas: a guerra na Europa assim o exige. Preparar as emergências energéticas: a guerra impõe. Cuidar do emprego e da segurança social: é prioridade a curto prazo. Reformar o Serviço Nacional de Saúde, com inusitada energia e rara determinação. Rever os sistemas de formação e recrutamento de professores e médicos: toda a gente sabe que já é tarde!

 

Estas são as urgências. Sabidas e conhecidas. O Governo tem o tempo e os meios para o que é essencial. Só não fará o que é preciso se não quiser, se se deixar enredar nas tramas dos interesses e se repousar em gente incompetente. Mais importante, decisivo e difícil é tratar do que é necessário. Entre tantos temas e tantos assuntos, um avulta, pela dificuldade e pela força exigida para tarefa: as instituições.

 

Apesar de todas as mudanças feitas nos últimos anos, ou mesmo nas últimas décadas, muito do que faz parte das instituições, seu lugar no Estado e na sociedade, seu funcionamento e suas actividades ficaram muitas vezes na mesma. Têm pouca liberdade, pouca autonomia e dependem do governo e dos interesses. Os deveres e as obrigações diante do Estado e dos cidadãos estão mal definidos. As obrigações do pessoal político são obscuras. Os deveres dos grandes serviços públicos para com os cidadãos são considerados coisas menores. Estes últimos, aliás, são tratados com imperial desprezo e considerados apenas consumidores. As grandes organizações e instituições da sociedade vivem na dependência e na marginalidade. A administração local é pobre em muito do que é essencial.

 

As grandes instituições, públicas, privadas ou mistas, são a força da sociedade e o suporte da política. As instituições, como sejam as universidades, as igrejas, as associações, as autarquias e as magistraturas, enriquecem a vida pública e protegem os cidadãos. Sendo capazes de duração e de mudança, as instituições duram mais do que uma geração, mais do que um regime. São essenciais à vida em comunidade. Muito especialmente a justiça. Esta é a mãe da democracia, a garante da liberdade, o nervo da igualdade e a exigência da cidadania.

 

A necessidade de justiça começa logo na vida política. As incompatibilidades e os impedimentos dos agentes políticos são bem o retrato da miséria das nossas instituições. Após quase cinquenta anos de fundação de um novo regime, da aprovação de uma Constituição e do início da democracia, ainda as questões de corrupção, de favoritismo, de nepotismo, de privilégio partidário, de imunidade e de responsabilidade estão longe de resolver. O essencial da recompensa e do castigo, mecanismo essencial para a liberdade, está ainda por esclarecer. O serviço que a justiça deve prestar aos cidadãos e à democracia está longe de ser cumprido. Os ricos de fortuna, os poderosos da política, os importantes dos credos e os porta-vozes dos interesses têm a sua justiça, as suas leis e os seus magistrados. É ainda possível usar a política para favorecimento familiar e vantagem própria. É ainda possível aos milionários e aos poderosos favorecer-se à custa do Estado, passar impune e quase fazer troça da justiça. 

 

É possível reformar muito na justiça e no funcionamento do sistema político. Mas também talvez seja necessário tocar na Constituição e rever dispositivos essenciais. Não é obrigatório, mas é possível. Mais um argumento para se aproveitar os próximos anos que, apesar de difíceis, são bons conselheiros para as reformas que exigem um clima de serenidade. Há hoje, na representação nacional, forças suficientes e uma reserva de serenidade para tratar do que é necessário. Só assim se resistirá ao desgaste do populismo.

 

Os socialistas têm diante de si um desses raros momentos da história em que não é difícil saber o que se deve fazer, em que se tem tempo para a obra, em que se possuem os meios indispensáveis, em que talvez tenham o apoio da maioria dos portugueses e em que podem ter aliados no campo da democracia. Será quase criminoso não aproveitar esse tempo e esse momento. Para que serve gastar a energia de tantos políticos, de tantos autarcas e de tantos cidadãos se é apenas para o curto prazo, o efémero e o superficial? Qual a utilidade da enorme mobilização de recursos e de vontades se depois nada ou pouco se faz com essa força? É verdade que os socialistas têm páginas negras nas suas folhas de serviço. Mas quem as não tem? Se é verdade que ninguém é perfeito, também é que quase não há irrecuperáveis. A força da necessidade é muita. Mas também a crença de que a política vale a pena se concebida e vivida acima da mediocridade.

Público, 15.10.2022

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14.10.22

Sempre finitos, sempre provisórios

Por Joaquim Letria

Embora sentindo a falta duma dimensão mais solidária, dificilmente toleraríamos voltar a viver em comunidades que sacrificassem a nossa independência, o nosso individualismo como pessoas.

É compreensível que pessoas insatisfeitas se sintam consternadas perante este quadro. No entanto, por maior que seja o seu desânimo, é necessário que permaneçam atentas e estudem os fenómenos que possam indicar novas tendências ou novas potencialidades interessantes.

A disponibilidade para observar com real interesse tudo o que se passa num vasto espectro de expressões culturais não significa que avalizemos tudo o que vemos nem concordemos, de maneira oportunista, com tudo o que ouvimos. Seria um  contra-senso fingirmos ou pretendermos não ter preferências, nem manifestar a nossa própria opinião.

Ao dialogarmos com todas as tendências, assumimos a nossa posição subjectiva e, naturalmente, manifestamos a nossa opção pelos valores que ultrapassam a fronteira da precariedade.

O homem moderno tem de se reconhecer provisório. Como dizia Marx, diante de nós tudo se volatiliza, tudo o que é sólido se pulveriza no ar. Todavia, através das nossas criações culturais, finitos como somos, reinventamo-nos sem cessar. É a nossa única forma de reagirmos contra a dissolução e a única maneira de, renovando-nos, podermos perdurar.

Publicado no Minho Digital

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13.10.22

Marcelo – O OE-2023, a pedofilia e o sonho da herança política

Por C. B. Esperança

Quando o PR, responsável pelo regular funcionamento das instituições, passa a agitador, basta ele para debilitar o regime e acelerar a crise que a guerra, a pandemia e a inflação provocam.

Marcelo é capaz de dizer tudo e o seu contrário, e as suas piores declarações são as mais mediáticas e perturbadoras da política nacional.

O OE-2023, instrumento da exclusiva responsabilidade do Governo, cuja aprovação é da competência da AR, órgão de que depende, foi objeto de declarações intoleráveis do PR. O escrutínio cabe aos partidos, aos eleitores e à comunicação social, não ao PR.

Marcelo atreveu-se a formular juízos de valor sobre o OE-2023, a apodar a proposta do Governo à AR como um orçamento “a navegar à vista da costa” e a dizer que são mais otimistas as previsões do Governo do que as suas, como se o alarde das suas previsões fosse legítimo, útil ou tolerável. Nos intervalos ainda deu conselhos à UE, como se os seus órgãos o escutassem.

Não há certamente outro PR, mesmo em regimes semipresidenciais, com tamanha exposição mediática e ausência de respeito pelo carácter parlamentar do regime a que preside.

Marcelo é um comentador compulsivo e um viajante inveterado num País onde a CRP não lhe confere qualquer responsabilidade na política externa ou governação. O seu ego é nefasto ao país e precisa de entender que não pode ser PR e liderar simultaneamente a oposição.

Com a mesma insensatez revelada para com o Governo, alheio à dignidade do cargo, o PR age e pronuncia-se sobre os crimes de pedofilia cometidos por sacerdotes católicos, alheio ao sofrimento das vítimas e desencorajador do aprofundamento das investigações em curso.

Depois do contacto que teve com um bispo sob investigação criminal, com o processo em segredo de Justiça, manteve, a partir de Nicósia, que esse contacto com o bispo José Ornelas não terá consequências na investigação, opinião de um católico que considera o divórcio pecado mortal, incapaz de o cometer, e venial o adultério.

Laborinho Lúcio, ex-ministro da Justiça, afirma preocupado que “424 testemunhos apontam para um número muito maior”, e para o PR, “Haver 400 casos de abusos [424] não me parece particularmente elevado” (sic), sem imaginar a coragem das denúncias, o horror que encerram e o desânimo que as suas palavras provocam para novas queixas e julgamento das atuais.

O deficiente escrutínio de contínuos desvarios verbais do PR contribui para o descrédito das instituições e para a crescente dificuldade de governar o País.

Marcelo, ansioso por realizar o sonho de dissolver a AR e deixar a sua direita no poder, está a abrir as portas à extrema-direita e arrisca dissolver a democracia, perante a falta de escrutínio e a passividade da opinião pública formatada pela imprensa de reverência.

Ponte Europa Sorumbático

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8.10.22

Grande Angular - O caldo entornado

Por António Barreto

Ainda há tão pouco tempo era possível revelar tranquilidade! Havia maioria de governo e promessa de estabilidade. Ao contrário da história das últimas décadas, o semipresidencialismo mostrava enfim a sua boa face, a da colaboração entre Presidente, Parlamento e Governo. Apesar da pandemia, da guerra na Ucrânia e da crise energética, havia sinais de que era possível recuperar a economia e recomeçar a nossa vida social. Orgulhoso, o partido do governo olhava para o país com magnanimidade. A maior oposição organizava-se, o que é sempre recomendável. As pequenas e médias oposições agitavam-se sem consequência. Até que tudo foi perturbado por uma série de episódios de imprevisíveis efeitos. Em menos de um ano, tudo se alterou.

 

Vários evidentes conflitos de interesses atingiram alguns governantes, que não souberam esclarecer com honestidade. Suspeitas, não resolvidas, de tentativas de favorecimento familiar por parte dos governantes deixaram amargo de boca, até porque os clássicos defensores da “ética republicana” não reconheceram as dificuldades nem reagiram a tempo.

 

A incompetência das autoridades relativamente às urgências de obstetrícia, com relevo para o fecho temporário de maternidades e de serviços de urgência, suscitou desconfiança e incredulidade. Como era possível que tal acontecesse em situações tão dramaticamente simbólicas como o nascimento e a maternidade?

 

O processo de decisão do director executivo do Serviço Nacional de Saúde, com que o governo parece sacudir o capote das suas responsabilidades, arrasta-se, com crescente prejuízo para o seu futuro dirigente, o que revela a falta de convicção e de acerto de quem tomou as decisões, mal preparadas.

 

A inexplicável persistência das falhas na colocação de professores no início do ano lectivo, com muitos milhares de alunos sem professores, sem horários e sem ocupação, confirmou os tradicionais vícios do sistema.

 

A enorme barafunda à volta do aeroporto de Lisboa, nada menos do que o maior investimento da história, prosseguiu a sua vida em novas reviravoltas picarescas. A crise foi aparentemente interrompida com a decisão de, mais uma vez, adiar para daqui a uns tempos, à espera de mais estudos, mais hipóteses… O partido do governo, que já tomou pelo menos três decisões definitivas, todas diferentes, continua enredado na sua própria teia. Como se não bastasse, somou-se, ao aeroporto, a trapalhada da gestão da TAP, reveladora de caricato subdesenvolvimento.

 

Perante a inquietação da população, foi criada a confusão nacional com os preços do gás e da electricidade. Entraram em vigor procedimentos informáticos incompreensíveis para a maioria, num processo em que foi manifesto o desprezo do ministro responsável e das empresas de serviços que maltratam os consumidores.

 

Surgiram fricções graves entre ministros da Economia e das Finanças. Entre vários ministros e o das Infra-estruturas. Entre a Saúde e os outros. Sem falar nos disparates incompreensíveis da responsabilidade de governantes relativamente à agricultura e aos fogos florestais. A exibição de conflitos insanáveis entre ministros ou entre o Primeiro ministro e outros ministros é tremenda para a confiança dos eleitores.

 

As divergências, dentro do governo, sobre política fiscal e impostos, revelam uma inesperada quezília interna que o Primeiro ministro foi incapaz de dirimir. Instalou-se a deriva no seio das autoridades políticas e financeiras, com meias verdades, palpites, erros e prognósticos sobre o ano corrente e os próximos.

 

A discussão pública sobre o aumento de poder de compra (diz o governo) e o empobrecimento (afirma a oposição), ou sobre o crescimento de subsídios, salários e pensões (governo) e os cortes brutais na despesa (oposição), assumiu foros de Ópera Bufa, perante a incompreensão dos beneficiários (cidadãos, pensionistas, funcionários…) que não fazem a mínima ideia do que vão receber, pagar, ganhar ou perder… O processo de distribuição dos 125 Euros está a transformar-se num pesadelo burocrático e informático e já se percebeu quem vai sofrer as consequências.

 

Instalou-se, para o debate público, o clima e o tom do Pátio das cantigas. O Presidente da República, os Ministros, os deputados, dirigentes partidários e encarregados de imagem enviam-se recados pelas televisões, pelas redes sociais, em comentários insuportáveis à saída das reuniões, entre duas portas, à entrada de um automóvel, nos corredores de um palácio, à chegada de um avião, na feira da bifana ou na mostra do medronho! As televisões adoram os recados, os apartes, as banalidades carregadas de ironia e frases-feitas venenosas. Os políticos aproveitam, sem perceberem que se estão a magoar e diminuir. 

 

Sem razão, o Primeiro ministro decidiu incomodar o Presidente. Incomodado, o Presidente respondeu acidamente. Tudo evidentemente com palavras bem-educadas, cortesias insidiosas, lugares-comuns avinagrados e amistosa perfídia. Mas já toda a gente percebeu que existe um problema entre o Presidente e o Governo. Ou entre o Governo e o Presidente.

 

Sem que se perceba bem porquê, instalou-se a intranquilidade no governo, nas instituições e no espaço público. O mais banal dito do Presidente da República, “Em democracia, nada é eterno”, transformou-se no mais radical aviso ao governo e na mais séria advertência à nação. O governo encontrou inesperadas divergências no seu seio. O partido do governo detectou enormes divisões dentro de si próprio. Derramar sobre o país as suas dificuldades não é o que há de mais razoável. Mas é o que está a acontecer.

 

Estávamos servidos com a pandemia e a guerra na Ucrânia, a crise climática e a da energia, as ameaças bélicas na Europa e na Ásia. Tudo isto se traduziu numa enorme perturbação no mundo global, no comércio internacional e na estabilidade. Não precisávamos de acrescentar o nosso contributo. Que foi o que as autoridades fizeram. Há factos inquietantes, ameaças sérias e perigos evidentes, é certo, por isso precisávamos de serenidade entre os governantes, de esforço sério para resolver o possível e de informação honesta sem propaganda. Não é isto o que temos. À inquietação, o governo acrescentou ansiedade. À preocupação, juntou a incerteza.

 

Basta um Presidente da República afirmar que a democracia não está em perigo, para que toda a gente pense que, então, está!

 

Público, 8.10.2022

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6.10.22

Licença de casamento para as professoras

Por C. B. Esperança

Ocultar o passado é evitar a vacina contra a reincidência.

Quando reaparecem os tiques salazaristas e se faz já a defesa despudorada do fascismo, às escâncaras, urge revelar o que foi em Portugal o período da ditadura, abençoada pela Igreja católica, e que a Pide, a censura, o medo e a ignorância protegeram.

A apreensão de livros, as prisões sem culpa formada, os tribunais Plenários, a tortura, o exílio, a fome, o analfabetismo, enfim, tudo o que era mau e anacrónico, prolongou-se num país tão atrasado que até na descolonização foi o último, quando a tragédia era já inevitável e a guerra injusta e criminosa tinha custado milhares de mortos e estropiados em ambos os lados das frentes da guerra colonial.

Não faltam historiadores que documentem e interpretem esse período sombrio de meio século, mas faltam leitores interessados para os conhecerem e divulgarem. E sobram os que pretendem reescrever a história e criar eufemismos para absolverem a ditadura.

O salazarismo não foi apenas perverso e castrador, formatou gerações em princípios que a propaganda difundia. A perversidade de Hitler, Franco e Mussolini existia em Salazar, apenas a quantidade dos crimes foi menor. O que diferenciou a ditadura portuguesa das congéneres não foi a substância, foi mera questão de escala.


É assustador pensar que a minha geração foi incapaz de transmitir o ambiente asfixiante, o horror à instrução, o medo do progresso, a opressão da mulher, a maldade, o ridículo.

A proibição do divórcio para casamentos religiosos, na prática obrigatórios, a gestão de bens do casal, exclusivamente pelo marido (incluindo os da mulher, no casamento com comunhão de bens, que era o habitual), a necessidade de autorização do marido para que a mulher pudesse deslocar-se ao estrangeiro, a impunidade para a violência doméstica e numerosas outras malfeitorias marcaram o ADN de um povo submisso e medroso.

Hoje, deixo aqui a minuta do pedido de autorização de casamento para professoras, cujo deferimento dependia da prova de o nubente auferir rendimentos iguais ou superiores e do bom comportamento moral e cívico, segundo os padrões do clero e das polícias.

Ponte EuropaSorumbático

 

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1.10.22

Grande Angular - A maré negra

 Por António Barreto

Era assim que se falava antigamente, quando havia verdadeiro fascismo e real nazismo. Aqueles regimes e outros de direita ou mesmo ditaduras (como as de Salazar e Franco), tiveram alguns anos de vida coincidentes. Era o que se chamava, em certos círculos, a “maré negra”! Anos depois, derrotados os fascismos, cada vez que um partido de direita concorria ou ganhava eleições, era o fascismo revanchista! Quando vários partidos de direita ou de centro-direita governavam ao mesmo tempo, então tínhamos a designada “maré fascista”. Ou a mais poética “maré negra”. Durante décadas, cada vez que alguém, liberal, democrata ou social-democrata, aparecia em cena ou ganhava eleições, o epíteto de fascista estava logo ali. Quando vários países, ao mesmo tempo, eram governados por partidos de direita, rapidamente se concluía que havia uma conspiração, organizada pelas multinacionais capitalistas e dirigida contra os trabalhadores e os países socialistas. Era a “maré negra”. Para muitas esquerdas, para os comunistas, para revolucionários avulso e para muitos socialistas de combate, a Europa esteve praticamente nas mãos dos fascistas nos anos sessenta, setenta e oitenta. A partir de noventa, com a estrondosa queda do comunismo, da União Soviética e de quase todos os socialismos, o fascismo instalou-se na fortaleza, passou a governar a Europa, pôs em prática as suas políticas revanchistas de empobrecimento e de rearmamento. A “maré negra”, capitalista e reaccionária, está aí, veio para ficar. Esta é, em caricatura rigorosa, a visão dos comunistas portugueses e de muitas esquerdas europeias.

 

O problema é que agora há mesmo uma maré. Não é fascista. Mas é de direita. Por toda a Europa, partidos marcadamente à direita exibem real progresso nos seus resultados eleitorais. Alguns chegam ao governo. Nas eleições legislativas e nas presidenciais (onde as há), as direitas conseguem tornar-se partidos de poder ou oposição de peso. Na Europa, apenas em cinco ou seis países, entre os quais Portugal, as direitas e a extrema-direita não fazem parte dos governos, mesmo se já estão com força nos Parlamentos. Da Hungria à Polónia, da Itália a Áustria, da Suécia à Alemanha, assim como em quase todos os países do Báltico e dos Balcãs, os partidos de direita governam ou têm representações parlamentares importantes. Em quase todos os países europeus, as direitas dominam ou andam lá perto.

 

Era tão bom que os europeus, os democratas, os liberais, os democrata-cristãos, os socialistas, os conservadores e outros democratas e europeístas se dessem ao trabalho de se perguntar porquê! Por que razões, na maior parte dos países europeus, crescem as tendências nacionalistas, populistas, de direita radical, ultraliberais, antieuropeias, para já não falar de fascistas e integralistas? Por que progridem na difusão das suas ideias, reforçam as suas expectativas eleitorais, aproximam-se das áreas do poder, conseguem mesmo os sufrágios e a legitimidade para governar?

 

Era tão bom que os democratas, os centristas, os liberais, os sociais democratas e outros europeístas percebessem as suas responsabilidades nesse processo de ascensão das direitas antieuropeias, radicais ou não democráticas! Era bom, mas é provavelmente inútil ou tarde de mais.

 

Para as esquerdas e para os europeístas, a culpa é… da direita pois claro! Os perigos são fascistas. As ameaças são neoliberais e ultraliberais. Os riscos são populistas e nacionalistas. De quem é a responsabilidade? Da direita, evidentemente. Da extrema-direita, com certeza. Dos grupos económicos, dos ricos, do sistema capitalista e do capital financeiro. Dos nacionalistas, dos monárquicos, dos racistas, dos machistas e dos xenófobos. Todos capitalistas.

 

Nunca ocorre perguntar: e as responsabilidades das esquerdas? E dos democratas? E dos social-democratas? E das forças políticas europeias, cosmopolitas e integracionistas? Se procurarmos bem, rapidamente encontraremos múltiplos factores que estão na origem deste recrudescimento das direitas e dos nacionalismos.

 

A integração europeia foi longe de mais. Perdeu de vista as nações. Os eurocratas quiseram mesmo destruir o espírito de identidade nacional. Entendeu-se que o cosmopolitismo universal era a solução para a paz e a democracia. Os dirigentes convenceram-se de que a igualdade social, de direitos e de oportunidades, só eram possíveis sem nações, mas com regiões integradas numa espécie de continente europeu sem fronteiras.

 

Os europeus convenceram-se da sua própria ortodoxia integracionista e federal. Um Parlamento europeu, internacional, sem circunscrições reconhecidas e sem fidelidades nacionais tornou-se virtude. Órgãos dirigentes, sem reconhecimento nem proximidade cultural, sem lealdade nacional nem identidade, ficaram a tomar conta de uma Europa toda ela feita de diversidade, de contradições, de passado, de conflitos e de história.

 

Os europeus decidiram tudo comprar com subsídios e fundos, à espera de fazer leis federais. Não se importaram com a corrupção crescente. A bem de uma Europa fantasmagórica, cederam a empresas de salteadores e a mais que suspeitos capitais internacionais estranhos, aparentemente privados, frequentemente públicos, vindos de Estados totalitários asiáticos, africanos e russos. Cederam à Rússia nas matérias-primas e à China na indústria. Ficaram dependentes como nunca na história.

 

Os Europeus adoptaram o politicamente correcto, acreditaram num continente descarnado, sem história e sem identidade, tudo quiseram normalizar. Até para compensar as identidades europeias, aceitaram a imigração descontrolada. Promoveram o tráfico de mão-de-obra e o trabalho clandestino. Em nome do cosmopolitismo universalista, cederam culturalmente a valores não europeus, emergentes, tantas vezes marginais e antieuropeus. Convenceram-se de que tinham a obrigação de reescrever a história, de pedir desculpa aos povos de todos os continentes não europeus. Cederam cultura e carácter. Cederam história e princípios. 

 

Não ocorre pensar que estes Europeus, mesmo democratas, partilham plenamente as responsabilidades pelo regresso das direitas? Que as suas criações, os Estados actuais e a União de que tanto se orgulham, se encontram no início da cadeia de responsabilidades pelas ameaças contra a Europa e a democracia? Se não perceberam o mal que fizeram à Europa e aos países europeus, então nunca conseguirão evitar os males que aí vêm, se avizinham ou nos ameaçam.

 

Público, 1.10.2022

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