Grande Angular - Trabalhos práticos
Por António Barreto
Cuidar do urgente. Tratar do necessário. E pensar o possível. Esta poderia ser uma das maneiras de resumir a acção política. No caso português actual, aplica-se seguramente. Podemos ter a certeza de que há desastre à nossa espera se os cidadãos e os políticos não perceberem que nenhuma das três tarefas é dispensável. Mas todas têm a sua lógica.
Esta últimas semanas trouxeram alguns marcos que aconselham à reflexão. A quase aprovação do orçamento, com os votos que já se antecipam ou conhecem, inicia um novo ciclo. Tudo leva a crer que seja um orçamento equilibrado, realista e que recolheu apoio de alguns sectores sociais. Se vai ter de ser revisto é problema que nos ultrapassa.
A agitação inútil criada entre o Presidente da República, o Governo, a Igreja Católica, a imprensa, as televisões e os comentadores, a propósito da pedofilia no seio da Igreja, talvez tenha chegado ao fim desta primeira fase, dolorosa e causadora de danos. As próximas fases serão certamente menos surpreendentes. Mas toda a gente percebeu que o assunto é delicado e a asneira fácil. O futuro não será melhor: aberto o livro, nunca mais a crónica cessa.
Em princípio e teoricamente, dois termos sublinhados, estamos dispensados de crises de maioria, de incapacidade legislativa e de forças de bloqueio. O Governo está feito e seguro. Não há nenhuma razão para que os espíritos se ocupem com intrigas e sucessões. Sabe-se o que de pior aí vem: guerra, inflação, problemas de abastecimento e custo de vida, défice energético assustador e talvez uma deriva social em resultado dos problemas económicos. É pouco provável que haja ainda mais surpresas ou problemas maiores.
O governo e as autoridades sabem o que as espera, de imediato. As urgências são todas conhecidas. Mesmo se difíceis. Rever a política de defesa nacional e a organização das forças armadas: a guerra na Europa assim o exige. Preparar as emergências energéticas: a guerra impõe. Cuidar do emprego e da segurança social: é prioridade a curto prazo. Reformar o Serviço Nacional de Saúde, com inusitada energia e rara determinação. Rever os sistemas de formação e recrutamento de professores e médicos: toda a gente sabe que já é tarde!
Estas são as urgências. Sabidas e conhecidas. O Governo tem o tempo e os meios para o que é essencial. Só não fará o que é preciso se não quiser, se se deixar enredar nas tramas dos interesses e se repousar em gente incompetente. Mais importante, decisivo e difícil é tratar do que é necessário. Entre tantos temas e tantos assuntos, um avulta, pela dificuldade e pela força exigida para tarefa: as instituições.
Apesar de todas as mudanças feitas nos últimos anos, ou mesmo nas últimas décadas, muito do que faz parte das instituições, seu lugar no Estado e na sociedade, seu funcionamento e suas actividades ficaram muitas vezes na mesma. Têm pouca liberdade, pouca autonomia e dependem do governo e dos interesses. Os deveres e as obrigações diante do Estado e dos cidadãos estão mal definidos. As obrigações do pessoal político são obscuras. Os deveres dos grandes serviços públicos para com os cidadãos são considerados coisas menores. Estes últimos, aliás, são tratados com imperial desprezo e considerados apenas consumidores. As grandes organizações e instituições da sociedade vivem na dependência e na marginalidade. A administração local é pobre em muito do que é essencial.
As grandes instituições, públicas, privadas ou mistas, são a força da sociedade e o suporte da política. As instituições, como sejam as universidades, as igrejas, as associações, as autarquias e as magistraturas, enriquecem a vida pública e protegem os cidadãos. Sendo capazes de duração e de mudança, as instituições duram mais do que uma geração, mais do que um regime. São essenciais à vida em comunidade. Muito especialmente a justiça. Esta é a mãe da democracia, a garante da liberdade, o nervo da igualdade e a exigência da cidadania.
A necessidade de justiça começa logo na vida política. As incompatibilidades e os impedimentos dos agentes políticos são bem o retrato da miséria das nossas instituições. Após quase cinquenta anos de fundação de um novo regime, da aprovação de uma Constituição e do início da democracia, ainda as questões de corrupção, de favoritismo, de nepotismo, de privilégio partidário, de imunidade e de responsabilidade estão longe de resolver. O essencial da recompensa e do castigo, mecanismo essencial para a liberdade, está ainda por esclarecer. O serviço que a justiça deve prestar aos cidadãos e à democracia está longe de ser cumprido. Os ricos de fortuna, os poderosos da política, os importantes dos credos e os porta-vozes dos interesses têm a sua justiça, as suas leis e os seus magistrados. É ainda possível usar a política para favorecimento familiar e vantagem própria. É ainda possível aos milionários e aos poderosos favorecer-se à custa do Estado, passar impune e quase fazer troça da justiça.
É possível reformar muito na justiça e no funcionamento do sistema político. Mas também talvez seja necessário tocar na Constituição e rever dispositivos essenciais. Não é obrigatório, mas é possível. Mais um argumento para se aproveitar os próximos anos que, apesar de difíceis, são bons conselheiros para as reformas que exigem um clima de serenidade. Há hoje, na representação nacional, forças suficientes e uma reserva de serenidade para tratar do que é necessário. Só assim se resistirá ao desgaste do populismo.
Os socialistas têm diante de si um desses raros momentos da história em que não é difícil saber o que se deve fazer, em que se tem tempo para a obra, em que se possuem os meios indispensáveis, em que talvez tenham o apoio da maioria dos portugueses e em que podem ter aliados no campo da democracia. Será quase criminoso não aproveitar esse tempo e esse momento. Para que serve gastar a energia de tantos políticos, de tantos autarcas e de tantos cidadãos se é apenas para o curto prazo, o efémero e o superficial? Qual a utilidade da enorme mobilização de recursos e de vontades se depois nada ou pouco se faz com essa força? É verdade que os socialistas têm páginas negras nas suas folhas de serviço. Mas quem as não tem? Se é verdade que ninguém é perfeito, também é que quase não há irrecuperáveis. A força da necessidade é muita. Mas também a crença de que a política vale a pena se concebida e vivida acima da mediocridade.
Público, 15.10.2022
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