29.4.22

VISTAS LARGAS ROUPAS CURTAS

 Por Joaquim Letria

Rendo-me com surpresa ao êxito da minha crónica “A Sociologia dos Saltos Altos”.

No fim de contas, não tenho por onde estranhar. Os homens gostam que lhes falem de mulheres e de erotismo e as mulheres também, mas além disso apreciam ver como há quem goste de lhes mexer nos seus trapinhos.

Explorando o sucesso, como Clausewitz diria na sua estratégia militar, eis-me a regressar ao tema, ainda que me colocando noutra posição de modo a poder ver a infantaria, cavalaria e artilharia desta tropa que finge não existir mas espreita, disfarçadamente, os avanços dos que ousam intrometer-se nas suas posições de batalha.

Penso que os fantasistas, e são muitos estes militantes dos prazeres secretos, apreciam silenciosamente aqueles utensílios de comodidade ou embelezamento que as mulheres usam junto às suas partes mais íntimas.

O “soutien gorge”, as cuequinhas, os sapatos de salto alto são as três grandes peças do fetichismo masculino que a mulher sabe utilizar a seu favor com inteligência e sensualidade. Há quem considere estes minúsculos instrumentos da comodidade ou elegância femininas objectos de tal arte que, em conhecidos casos extremos, chegam a guindar-se ao posto de troféus de batalha. Mas vamos por partes.

A cuequinha é o grande fetiche. Trapinho de seda, renda ou cetim tem por lugar as profundezas mais íntimas e perfumadas, sendo por isso o epílogo de romances de altanaria, ou o prólogo do que vai na alma duma mulher, podendo converter-se para o macho no mais apetecível prémio, obstáculo último a vencer, o qual se pode tornar numa barreira intransponível se o coração ou o ânimo dela lhe fizer soltar o monossílabo “não”!

Enfim, depois dos sobressaltos da Primavera - Verão sucedem-se os sombrios Outono – Inverno e no anúncio de cada uma destas colecções há sempre o receio de mais trabalho quer em vesti-las mas também em despi-las. E resta ainda o recurso, que intencionalmente deixei de fora, do perfume. O perfume tem um corpo vivo, note-se, é muito mais do que um frasco de duas onças.

Seja como for que as mulheres se apresentem, não as temamos. Dêmos-lhes o seu valor, admiremos a sua inteligência, apreciemos a sua consciência, reconheçamos a sua força, rendamo-nos à sua infinita competência, desfrutemos a sua beleza e aceitemo-las nuas e cruas ou como elas se nos quiserem apresentar.

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28.4.22

A memória e o arrependimento – crónica

Por C: B. Esperança

A memória não é apenas a capacidade de recordar, repetir e localizar os sentimentos e factos vividos, para os lembrar ou ocultar. Atrevo-me a dizer que é também a aptidão para esquecer o que desagrada ou faz sofrer, e tudo o que nos envergonha ou angustia.

Foram tantas as vezes que me senti constrangido, pela imprudência e pelo que se chama popularmente «meter o pé na argola», que me surpreende ter tão fraca memória. Muitos anos depois, em amena cavaqueira, recordei um silêncio constrangedor que provoquei.

Foi na primeira metade da década de sessenta do século passado. Os companheiros de mesa, acabado o jantar, iniciámos o passeio habitual. Éramos quatro amigos que a época e os hábitos obrigavam a cerimónia recíproca, senhor professor para aqui, senhor doutor para ali, o juiz, o delegado do Ministério Público, o conservador do Registo Predial e o delegado escolar, ora cronista.

A conversa decorria mansa com os quatro amigos alinhados de acordo com a condição, o Dr. Moniz da Maia à direita do juiz Carlos Crespo Dias Coelho, o Dr. Dantas, conservador do Registo Predial, à esquerda e eu à sua esquerda . Íamos falando, descontraidamente, numa linguagem contida e mantendo a delicadeza de uma camaradagem, que não dispensava a etiqueta e o respeito mútuo.

O Moniz da Maia, delegado do Ministério Público, velho repúblico de Coimbra, onde foi conhecido por Eça, era o único que vestia mal a pele de bem-comportado. Era um excelente indivíduo e, nessa noite, disse, referindo-se a alguém, que era uma besta, perante o constrangimento do juiz Carlos Crespo e a minha saída pronta, por distração ou tentativa de ser gracioso, “…não desfazendo…”, a que se seguiu um silêncio desconcertante enquanto me secava a boca e vinha à memória o resto do bordão usado na Beira Alta, quando se elogiava alguém, … não desfazendo …, em quem está presente.

Não houve buraco onde coubesse, saliva que molhasse os lábios, e o raio da conversa ficou interrompida. Hoje lembrei-me de novo desse lapso de tempo, dos amigos levados pelos anos e da cortesia habitual que ampliou a infeliz citação da frase tantas vezes repetida inconscientemente nas aldeias da minha infância.

E ri-me! 

Ponte Europa / Sorumbático.

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23.4.22

Grande Angular - Civilização

Por António Barreto

De acordo com a óptica adoptada e a temática ou disciplina, são várias as acepções do termo “civilização”. Em relações internacionais e em política, poderá aludir-se às regras existentes a fim de dirimir conflitos, de organizar a cooperação ou regular a competição. Por outras palavras, entender-se-á por civilização o sistema que há décadas se vem construindo e que consiste no estabelecimento de sistemas de segurança colectiva, de cooperação, de diálogo permanente, de comunicação rápida e de regulação da concorrência. E sobretudo com o objectivo de diminuir e prevenir conflitos e afrontamentos.

Modernamente, “civilização” implica também o estabelecimento da paz, a afirmação cultural dos povos, o alargamento da participação dos cidadãos e a igualdade crescente de pessoas e comunidades. Princípios que vieram acrescentar-se a outras aquisições da civilização como sejam as exigências de humanidade e respeito mesmo durante as guerras e os conflitos militares. Para já não falar da justiça penal internacional que tem conhecido tão difícil caminho, mas que vem progredindo há alguns anos.

As Nações Unidas e o seu complexo sistema de organismos especializados são o maior exemplo da tendência forte de consolidação de sistemas colectivos de segurança e de diálogo. Muitas outras organizações, globais ou divididas por continentes, assumiram funções idênticas: sempre a cooperação e o diálogo, sempre a procura incessante da paz e sempre o estabelecimento de regras para o convívio internacional. Este complexo sistema está ferido de morte. Não é mais possível confiar na Rússia. Nem sequer, por agora, estabelecer relações formais e contratuais com esse Estado e seus clientes. A lei da força é, a partir de agora, a principal regra de política internacional. O que quer dizer que não é mais possível respeitar e acreditar no que diz ou faz uma das maiores potências mundiais. Um perigo e arriscado confronto substitui-se rapidamente à negociação e à cooperação.

O que se está a passar na Ucrânia, por obra e graça da Rússia governada por Putin, é o mais profundo ataque à civilização nas relações políticas e internacionais que se conhece desde os anos 1930. Com poucas excepções, a Europa tinha vindo a fazer um longo e complexo caminho de consolidação de sistemas civilizados de cooperação, segurança e diálogo. Há muitas décadas que quase não há guerras. Criaram-se sistemas de diálogo, de comunicação e de entendimento. A negociação foi-se tornando o principal instrumento de resolução de conflitos. Tudo isso ruiu, em consequência da invasão da Ucrânia pela Rússia. E também por efeito da barbaridade do ataque perpetrado.

Preparemo-nos para anos de dificuldades imprevistas e a que não estávamos habituados. Assistimos a um recuo da democracia e dos regimes liberais feitos para cidadãos livres. Vivemos tempos em que os sistemas de segurança colectiva e de cooperação internacional para a paz vão ficar em grande parte interrompidos ou ultrapassados. Qualquer que seja o futuro da Ucrânia e da Rússia, nada na Europa e em grande parte do mundo será o que é hoje e tudo leva a crer que seja pior. Por quanto tempo, não sabemos.

Não faltará quem diga que sempre foi assim, que sempre a força reinou nas relações internacionais. Não é verdade. Sempre foi importante, com certeza, mas o sistema mundial de cooperação acabou por ser uma realidade com excepcional força. A paz, o respeito pelos compromissos assumidos e a humanização das relações internacionais adquiriram a sua própria força. Ora, a violência e a desumanidade do ataque russo à Ucrânia, que ficarão impunes por algum tempo, destruíram esse clima criado.

As novas condições de cooperação e o novo clima de relações internacionais criam sistemas medonhos propícios à violência, à desumanidade e ao totalitarismo. Na resolução de conflitos internacionais, volta a estabelecer-se o primado da força militar e da violência, em detrimento da diplomacia.

A conquista territorial é novamente um gesto possível na política internacional. Possível e impune. A guerra voltou a ser um meio de exercício de poder. O bombardeamento de cidades é uma acção exequível. Até as leis da guerra, que se esforçavam por criar um mínimo de dignidade e de humanidade nas situações de conflito, passam a ser desrespeitadas sem escrúpulos e sem sistemas de justiça credíveis. A matança de civis, de gente indefesa e de inocentes vulneráveis (velhos, doentes e crianças) passou a ser um método corrente.

Volta a admitir-se na Europa a criação de áreas de influência das grandes potências que assim adquirem o direito de interferir nas regiões vizinhas e para lá das fronteiras. Os princípios de legitimidade e de representatividade democráticas passam a ter peso menor nas relações internacionais, bastando, a um país ou um Estado, a autoridade e a força para usufruir de direitos e para assegurar a sua presença internacional.

A democracia (como ideia, inspiração, princípio, ideologia ou credo) atrai cada vez menos Estados que deixam gradualmente de invocar ou reclamar um qualquer estatuto democrático para definir a sua presença no mundo e nas relações internacionais. Tempos houve em que ditaduras e outras formas despóticas de organização política julgavam ser necessário, para a sua apresentação internacional, designar-se como, por exemplo, “República Democrática” ou “República Popular”. Esses tempos estão ultrapassados. O poder, a força, a dimensão, o dinheiro e as armas adquirem muito mais importância.

O mundo ocidental terá de fazer escolhas difíceis. Duas coisas parecem certas. Primeira, só a manutenção da democracia garante as liberdades. Segunda, o mundo livre tem de estar preparado.

Público, 23.4.2022

 

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22.4.22

JOVENS & VELHOS

Por Joaquim Letria

Neste situacionismo que Portugal vive esquecemos muitas vezes duas importantes realidades.

Uma é a do mundo das dificuldades que Jovens & Velhos têm de enfrentar para fazerem face à vida que desejam viver hoje; a outra é o reconhecimento de que, apesar de todos os defeitos e desperdícios, escândalos e poucas vergonhas, o País mudou, com uma vida melhor para as populações, uma melhor saúde pública, uma velhice mais digna e prolongada, mais modernidade em algumas infra-estruturas, mais liberdade e melhor dia-a-dia, educação aberta para todos os que souberem lutar contra as dificuldades e forem capazes de agarrar as oportunidades.

Não podemos ignorar o modo como os nossos cientistas, investigadores, poetas, romancistas, actores, dramaturgos, realizadores, arquitectos, desportistas, pintores e músicos nos enchem de orgulho, cá dentro e lá fora, com a sua criatividade, a sua preparação e a sua qualidade. A vida cultural que Portugal hoje oferece aproxima-se do nível de outros países mais ricos e desenvolvidos e não nos envergonha em nada. Mas por tudo isto não podemos negar ajuda, compreensão e oportunidades a tantos que lutam por uma possibilidade de demonstrar o seu talento.

Há uma música dos Deolinda que vale a pena ouvirmos de vez em quando, para lhes darmos razão e ajudarmos a que a verdade amarga de que nos fala deixe de ser assim, para tantos. Reza assim essa canção:

“Sou da geração sem remuneração

E não me incomoda esta condição.

Que parva que eu sou!

Porque isto está mal e vai continuar,

Já é uma sorte eu poder estagiar.

Que parva que eu sou!

E fico a pensar,

Que mundo tão parvo

Onde para ser escravo é preciso estudar.” 

Pois é… temos de conseguir construir uma sociedade capaz de criar espaço para que quem sai da universidade possa ter o lugar a que tem direito pelo seu conhecimento e pelo seu esforço. Na minha modesta opinião competiria às universidades auxiliar-nos mais a construir esse espaço.

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21.4.22

O milagre dos pastorinhos Francisco e Jacinta - crónica

 Por C. B. Esperança

Lembro-me do velho Hospital Distrital de Leiria e da magnífica escadaria de mármore partida a camartelo para obras de remodelação, depois de retirada a foto imponente do virtuoso bispo D. Manuel de Aguiar sob cujos auspícios fora construído o edifício.

No respetivo piso, entre várias enfermarias, ficavam as de Medicina. Na de “Mulheres”, sobressaía uma mesinha de cabeceira pela parafernália de senhoras de Fátima, pastorinhos e outras imagens pias que a ornamentavam. Ficava junto à cama de uma paralítica que, durante a noite, se arrastava até junto das camas de outras doentes para lhes impedir o descanso.

Essa internada tinha a antipatia e inimizade de outras doentes, e era dileta do Diretor do Serviço, Dr. Felizardo Prezado dos Santos, enternecido com a devoção e extasiado com as suas imagens de santos e veneráveis. Era a D. Emilinha, a mais antiga internada, conhecida de toda a gente. 

Um dia, nas férias do Dr. Felizardo, o médico José Luís Alves Pereira, que o substituiu, deu-lhe alta, por entender que não padecia de moléstia do foro da Medicina Interna, o que, no regresso, irritou o Dr. Felizardo.

A D. Emília, Maria Emília Santos, voltou à enfermaria e foi reintegrada no espaço que lhe servia de asilo e local de devoção.

As transferências para Psiquiatria, no Hospital da Universidade de Coimbra, eram para os períodos de maior necessidade. Segundo o Dr. Marques Pena, psiquiatra, a D. Emília padecia de uma enfermidade que a podia conduzir à cegueira, à paralisia ou a outras mazelas, por períodos de maior ou menor duração. No respetivo processo clínico dos Hospitais da Universidade de Coimbra hão de constar dados rigorosos se, acaso, um qualquer milagre não o fez, entretanto, desaparecer.

Mas voltemos a Leiria e à D. Emília Santos cuja paralisia era reincidente e que então foi curada por intercessão do Francisco e da Jacinta, bem necessitados de um milagre para a beatificação e destinatários conjuntos das preces da candidata a miraculada.

Sarou-a de novo a fé e passou a andar. Morreu pouco depois, completamente curada. O milagre, depois de averbado nas provas de beatificação dos pastorinhos, onde passaram com distinção, deixou de interessar à Igreja, sendo discreto o funeral da D. Emília onde, a título meramente particular, se integrou o bispo de Leiria, D. Serafim Ferreira e Silva.

A divulgação do milagre da paralítica que se curou foi feita com pompa e circunstância pela imprensa pia e profana, invocando depoimentos de três médicos diferentes, a Igreja católica é muito cética e exigente, unânimes a atestar a intervenção sobrenatural.

Por divina casualidade, a certificação do milagre foi atestada pelo Dr. Felizardo Prezado dos Santos, pela Dr.ª Maria Fernanda Brum, por coincidência esposa do primeiro, e pela psiquiatra Paula Cristina Amaral Brum Prezado Santos, filha de ambos, todos da Associação dos Servitas de Nossa Senhora de Fátima.

Digam lá, leitores, se, depois desta narração, ainda duvidam da veracidade do milagre! É preciso demasiado ceticismo. Leiam isto enquanto há testemunhas porque, um dia, há de constar que à D. Maria Emília Santos lhe cresceu uma perna amputada.

A enfermeira Alcina, que trabalhava na enfermaria, ficou com a vaga sensação de que o Dr. Felizardo se terá arrependido, depois de ter ativado a certificação familiar da cura sobrenatural, mas é mera conjetura face ao médico cuja própria invalidez e fé podiam ter sido mais fortes.

Ponte Europa / Sorumbático

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16.4.22

Grande Angular - O que correu mal

Por António Barreto

Algo correu mal dentro de cada um ou vários países europeus. Alguma coisa não está a correr bem na Europa. Muito está a correr mal nas fronteiras do continente. Esta combinação entre causas internas e externas pode ser fatal. Para a paz e a democracia.

Nada justifica o vil ataque da Rússia. Mas é longa a lista do que correu mal na Europa. São erros, ameaças e perigos. Erros das democracias, dos sistemas políticos e dos seus dirigentes. Perigos nas relações internacionais entre a Europa e os seus vizinhos. Ou entre a Europa e todos os seus parceiros tradicionais, de África à China, da Ásia à América Latina. Ameaças vindas sobretudo do exterior, mas também do interior: o império russo renascente, a fábrica chinesa triunfante, o terrorismo islâmico ofensivo e a desigualdade internacional crescente. Não só a democracia está em recuo nos últimos vinte anos, como os perigos para a paz deixaram de ser ameaças: são agora morte, invasão e destruição.

Há anos que os sistemas democráticos entraram em período de crise e risco. Depois de terem superado as ameaças revolucionárias, estão agora sob pressão dos nacionalismos renascentes, cada vez mais afirmativos, cada vez mais abertamente adversários do sistema democrático e da paz social instalada. Políticos e partidos ditos tradicionais, de famílias afirmadas na história europeia (social-democratas, socialistas, comunistas, liberais, democratas cristão, cristãos sociais…) estão em vias de extinção, substituídos por agrupamentos políticos, de esquerda e de direita, com esquerda e direita, sem esquerda nem direita, sem pergaminhos, mas com uma voz nova e, por vezes, atraente. Isto num clima em que a abstenção política eleitoral não cessa de crescer e em que as instituições democráticas ficaram rígidas. Abriu-se um quase irremediável fosso entre democracia e cidadãos, entre política e a sociedade civil.

o que correu mal entre as nações? O fim da Jugoslávia tinha dado sinais de alarme. É verdade que havia quem dissesse que se tratava do último estertor, do fim do velho mundo, do real fim da guerra-fria. Eram as últimas páginas de um mundo que felizmente se extinguia. Mas, para outros, era o início de uma nova era, prenhe de alegrias talvez, mas recheada de perigos e desprovida dos mecanismos de segurança experimentados. Os acontecimentos imediatos sugeririam então que era a primeira perspectiva que se impunha. A capacidade de absorção e acolhimento manifestada pela União Europeia autorizava o optimismo. Um espírito vencedor permitia o orgulho. Mas a voracidade democrática da NATO e da UE era insaciável. E, depois de enormes derrotas tanto dentro de fronteiras como através do mundo, o despotismo russo saía gradualmente da sua letargia.

O que não deu certo? Os Estados europeus deixaram de perceber as nações ou tão só as aspirações nacionais. A nova construção racional da federação europeia, original e inédita, afastava e esquecia as pulsões identitárias, as histórias nacionais, os reflexos de comunidades antigas… Com todas as suas forças ameaçadoras, e muitas são-no deveras, o nacionalismo emergia aqui e ali. Em muitos países europeus, vem do nacionalismo a principal perturbação. Conjugada esta com a desigualdade social crescente, a distante construção democrática e a desordem nas políticas e nas realidades imigrantes, a Europa passou a viver sob ameaça e debaixo de tensão. Sem capacidade para perceber, sem disponibilidade para reconhecer os seus próprios erros, muitos democratas limitam-se a vociferar contra o nacionalismo e a extrema-direita, sem entenderem que apenas olham para os efeitos e não para as causas. Não é a fraqueza europeia que causou a guerra russa. Mas a debilidade europeia e democrática tornou o continente mais vulnerável perante a agressão russa.

Na Europa, a riqueza cresceu. Como nunca na história. Mas a desigualdade social e económica também. Foram-se os tempos gloriosos de crescimento imparável de uma classe média robusta e em expansão. Há hoje, na rica Europa, zonas de pobreza e de fragilidade que se pensava estarem em vias de desaparecimento. Muita gente depende da protecção social, do Estado social como se diz, o que é motivo de orgulho: em qualquer sociedade, um grau elevado de compaixão é sempre positivo. Mas a dependência excessiva não é saudável e é perigosa. Gera novas desigualdades e exige recursos inexistentes. Há, pela Europa fora, bairros degradados, áreas de devastação social, ruínas de decadência urbana, zonas de conflito social e étnico que revelam sobretudo a incapacidade da Europa democrática para lidar com os problemas da imigração, do exílio e da integração de estrangeiros e de minorias. O cosmopolitismo e a extraordinária capacidade de acolhimento manifestada pelos países europeus atingiram, em muitas regiões, o ponto crítico de enormes dificuldades sociais, de tensões inter-raciais e de conflitos de identidade.

O tecido social europeu está em crise. As estruturas democráticas dão sinais de envelhecimento e esclerose. O sistema político tem dificuldades em resistir às pulsões nacionalistas. O equilíbrio colectivo continental foi quebrado pela saída do Reino Unido e sobretudo pela guerra iniciada pela Rússia. A capacidade de defesa da Europa é franzina e dependente. Sem a União Europeia, todos viveríamos pior. A Europa continua a ser objecto de desejo e de orgulho. Mas a saída da Grã-Bretanha da União foi um sinal grave da crise europeia. Nem britânicos nem europeus confessaram que se tratou de um recuo gravíssimo e de um enfraquecimento mútuo indesculpável.

A guerra está aí. Feroz. Selvagem. Com ecos de violência há muitas décadas desaparecidos (ou quase…) da Europa. 

Esta guerra, imposta pela Rússia, nada tem de positivo, nem nos motivos nem nas consequências. Sobretudo para um povo atacado e um país destruído. Mas pode ser que exiba as deficiências da democracia, tornando assim mais urgente a sua renovação ou a sua reinvenção. Talvez tenha como efeito fortalecer a solidariedade europeia. Pode daqui resultar uma ajuda à construção de uma defesa europeia mais forte e autónoma. Talvez a aliança atlântica seja reforçada. É possível que seja renovada e actualizada a luta pela democracia e pela liberdade. Se assim for, honra ao espírito europeu que saberá fazer força das suas derrotas e das suas ameaças!

Público, 16.4.2022

 

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15.4.22

PEQUENAS NOTÍCIAS

Por Joaquim Letria

No outro dia ouvi um director de jornal dizer na TV que directores e editores não têm hoje tempo para “notícias pequenas”.

Que me perdoe, mas não posso estar mais em desacordo. Compreendo o que quer dizer, mas esquece-se que desde sempre as noticias verdadeiramente importantes começam por ser publicadas em meia dúzia de linhas e, muitas vezes, em páginas secundárias.

É em meia dúzia de linhas que ficamos a saber indícios do que o crime organizado se prepara para fazer. É em pequenas notícias que descobrimos as cumplicidades e as grandes corrupções, é cruzando a leitura duma local com as declarações dum político ou as revelações discretas dum empresário que melhor sabemos em que mundo vivemos.

Recordo-me de há anos atrás, quando eu era um simples repórter e se falava do êxodo dos grandes lagos, haver uma notícia de duas linhas no Liberation de Paris contra Kabila e o Guardian de Inglaterra falava em “movimentações dos herdeiros dos Katangueses refugiados em Angola”, enquanto o  Die Welt de Hamburgo dava conta da contratação de mercenários ingleses, americanos, belgas e croatas para combaterem pelos “rebeldes zairenses”.

Só mês e meio depois destas notícias os ingleses escreviam duas linhas referindo a ajuda de Savimbi a Mobutu, enquanto igualmente pequenas notícias falavam de “escalas técnicas” dos dois em Rabat. Então, a visita de Hassan II a Washington e a do príncipe herdeiro a Madrid não tiveram igualmente mais de quatro linhas. Vejam lá a importância daquelas pequenas notícias.

Não concordo com aquele director de jornal. As grandes notícias começam muito antes das coisas grandes acontecerem  e começam sempre por uma notícia pequena. As manchetes para vender são outro negócio, hoje em dia.

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14.4.22

Por C. B. Esperança

Com a celebração em curso do cinquentenário do 25 de Abril e com um partido fascista fortemente representado na AR, ressurgiu o ressentimento à democracia, a nostalgia da ditadura e a saudade do império perdido, após 48 anos de democracia.

De forma tosca ou mais elaborada é o apelo ao autoritarismo e ao Estado policial que se vislumbra em quem destila ódio aos militares de Abril, legitima a guerra colonial, remói a raiva à Revolução e teme uma pneumonia com a aragem da liberdade.

Andam aí os filhos dos bufos, rebufos e salazaristas, répteis do Estado Novo, alheios às prisões, torturas, perseguições e medos da ditadura. São negacionistas dos assassinatos da Pide, ressentidos da liberdade que os capitães de Abril outorgaram, invejosos dos filhos dos pobres que chegaram à universidade e que preferiam andar de rastos, num país orgulhosamente só, a viver de pé, em democracia.

Há descendentes dos cúmplices da ditadura, dos que batiam palmas e davam vivas ao ditador, dos fascistas embrutecidos e orgulhosos do analfabetismo, tão minguados de ideias como os que agora insultam a liberdade ignorando o que foi a censura, o degredo, as prisões arbitrárias, a violação da correspondência, os Tribunais Plenários, a tortura, a fome e a guerra colonial.

Uns não sabem o que isso era e outros julgam que era como lhes disseram, e trazem no sangue o ressentimento dos delatores, a raiva dos lacaios e o espírito vingativo de quem odeia a liberdade.

É neste quadro de amnésia coletiva que os mais boçais pretendem rasurar do calendário o 25 de Abril e os mais sofisticados apelam às comemorações do 25 de novembro.

É tempo de se penitenciarem os que acusaram o 25 de novembro de ter traído o 25 de Abril, como se houvesse traição na liberdade que o MFA prometeu, nas eleições livres que nunca mais deixou de haver e no respeito pelo voto universal e secreto de cada ato eleitoral.

Faltou aos devedores de Abril, que todos somos, sobretudo aos democratas, explicarem aos fascistas, que usam o 25 de novembro contra o 25 de Abril, que há apenas uma data que resgatou Portugal do pesadelo de 48 anos de ditadura – o 25 de Abril.

Houve no processo revolucionário da mais bela Revolução do mundo, sobressaltos que a trouxeram à normalidade democrática que os capitães do MFA prometeram, antes de regressarem aos quartéis, sem exigirem nada em troca do seu heroísmo e generosidade.

O 25 de Abril teve o 28 de setembro, o 11 de março e o 25 de novembro, sendo o último sobressalto o que mais dividiu os militares de Abril e a sociedade portuguesa, e não foi a data que os fascistas querem comemorar, com vergonha de celebrarem o 28 de maio.

Vale a pena, apesar das feridas, lembrar aos fascistas quem liderou o 25 de novembro, e confrontá-los com os heróis de Abril que intervieram nesse episódio da Revolução de que se quiseram apropriar.

O comandante foi o gen. Costa Gomes e as operações da responsabilidade da Região Militar de Lisboa, comandada pelo então gen. Vasco Lourenço, com o apoio de nove conselheiros da Revolução, Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Canto e Castro, Costa Neves, Sousa e Castro, Vítor Alves e Vítor Crespo.

Com exceção dos dois representantes da FA, ramo com escassa participação no 25 de Abril, com a gloriosa exceção do cap. Costa Martins, eram todos militares destacados do 25 de Abril.

O Governo Militar de Lisboa confiou as operações ao ten. cor. Ramalho Eanes, que teve no regimento da Amadora, de Jaime Neves, a maior força militar sob as suas ordens. O resultado é conhecido e o Grupo dos Nove havia de designar Eanes candidato a PR.

Não foi em Eanes que os fascistas, nem os democratas mais à direita, votaram. Foi no gen. Soares Carneiro que tinha no currículo o comando do Presídio de S. Nicolau e que Cavaco Silva voltaria a reintegrar na vida militar ativa e promoveria a CEMGFA numa ofensa a Eanes e aos militares de Abril.

Gostaria de ver os que incensam o 25 de novembro de 1975 a aplaudir Costa Gomes, Melo Antunes, Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Franco Charais, Sousa e Castro, Vítor Alves e Vítor Crespo. Não o fazendo, fica a certeza de que não é o 25 de novembro que aplaudem, é o 28 de maio que acalentam.      

Há um grito de júbilo a soltar, vivas à liberdade a bradar e um ruído patriótico a acalmar os nostálgicos da ditadura e o seu desejo de regresso ao passado na celebração e m curso do cinquentenário da Revolução de Abril.

Viva o 25 de Abril! 

Ponte Europa Sorumbático

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12.4.22

No "Correio de Lagos" de Março de 2022


NOS ÚLTIMOS 
anos, a “Fundación Nao Victoria”, de Sevilha, fabricou réplicas de três navios: de um com esse mesmo nome (o mais famoso dos 5 da esquadra de Magalhães, e que tivemos por cá em finais do ano passado); da nau Santa Maria (a capitânia da primeira viagem de Colombo, e que em Fevereiro nos visitou; e ainda de um galeão-tipo — ficando assim contemplados espécimes dos séculos XV, XVI e XVII, o período mais importante no que toca às navegações ibéricas. 

*

OBVIAMENTE, entre factos e personagens históricos (à mistura com fantasia q. b.) muito se aprende com iniciativas assim. No caso da segunda nau, sobressai o facto de ela não ter regressado: encalhou no actual Haiti no dia de Natal de 1492 e, tendo sido dada como perdida, foi desmantelada e usada na construção de uma fortaleza baptizada com o nome de Navidad, tendo Colombo regressado à Europa na caravela Niña que, por sinal, ainda teve uma longa vida — o mesmo não se podendo dizer dos 39 homens que ficaram para trás, massacrados até ao último pelos habitantes locais.

 

Antes dessa viagem, já o genovês tinha navegado durante muitos anos ao serviço de Portugal, pelo que sabia onde encontrar os ventos capazes de o levar para Ocidente e de o trazer de volta; mas não conseguiu convencer D. João II, pois o nosso rei (que bem sabia que a Terra era redonda, e até com as dimensões que Eratóstenes determinara dois séculos a.C.) já estava ciente de que era possível chegar à Índia contornando o sul da África: 

Bartolomeu Dias dobrara (e ultrapassara largamente) “o Cabo” cinco anos antes, e também tinha chegado a carta de Pêro da Covilhã asseverando que era possível, tendo em conta as monções, ir de Sofala a Calecute. 

Ficavam, assim, apenas 300 léguas por percorrer, pelo que certamente o nosso monarca teve de conter o riso quando Colombo, de regresso da sua primeira viagem, mandou à frente a caravela Pinta (a levar aos Reis Católicos a notícia da descoberta), fazendo ele uma escala em Lisboa para “fazer pirraça” ao Príncipe Perfeito, gabando-se de ter chegado à Índia em meia dúzia de semanas!

 

Diz-se que o genovês, que fez 4 viagens (entre 1492 e 1504), morreu convencido de que tinha atingido a Ásia — ideia que Gago Coutinho contrariou, porque, tendo como “bíblia” as viagens de Marco Polo, Colombo apenas encontrara indígenas seminus que desconheciam a existência do ferro, e nem sombras dos fabulosos palácios com telhas e “lajes de ouro com dois dedos de espessura”.

*

MAIS TARDE, em 1519, Fernão de Magalhães, muito mais bem informado e preparado (também ele já navegara ao serviço de Portugal, tendo até estado no Oriente poucos anos antes), abalançou-se a outra viagem para Ocidente — não para dar a volta-ao-mundo, mas sim para algo bem mais difícil: tentar descobrir uma passagem entre o Atlântico e o Pacífico e, atravessando esse gigantesco oceano, chegar às Molucas ­— que, estando perto do semi-meridiano oposto ao definido no Tratado de Tordesilhas de 1494, eram disputadas por Portugal e Espanha. 

 

Curiosamente, veio a descobrir-se que essas ilhas, estando situadas pelos 127º de longitude Este, até ficavam no hemisfério português (que ia até aos 132,5º E), ao contrário do que, em 1529, D. João III veio a admitir, para encerrar o diferendo com Espanha.

*

FINALMENTE: a todos esses descobrimentos há agora que acrescentar mais um, não menos glorioso, que revela que Magalhães sempre deu uma volta-ao-mundo, mas na companhia de Colombo — num navio-fantasma que, por sinal, até ostentava o nome de uma freguesia da nossa cidade!

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“Correio de Lagos” de Março de 2022

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10.4.22

No "Correio de Lagos" de Março de 2022


 

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9.4.22

Grande Angular - Argumentos e falácias

Por António Barreto

Com a guerra, a globalização foi interrompida. Anteriormente, com as suas vantagens e os seus inconvenientes, vingara durante décadas. O mundo abriu-se e ficou mais pequeno, isto é, tudo passou a ser mais perto, mais rápido e mais simples. Houve vencedores e derrotados. Talvez os primeiros tenham sido em maior número. O novo comércio mundial e a nova distribuição do trabalho estão na origem de inéditas oportunidades. Foram criadas centenas de milhões de empregos, cresceram cidades com dezenas de milhões de habitantes, aumentou o produto da maior parte dos países de África, Ásia e América Latina. Os principais vencedores foram, como seria de prever, as economias mais avançadas, os países com empresas mais eficientes e as regiões com a melhor ciência. Mas venceram também os países que, com enorme atraso social, souberam transformar-se em “fábricas”, produzindo tudo, para todos e mais barato. Entre estes últimos, avulta a China: sem ceder um milímetro dos poderes ditatoriais, o país abriu as portas ao mais aventureiro dos capitalismos imagináveis.

A Europa ganhou com a globalização. Mas não muito. Não tinha a capacidade americana, nem os trunfos asiáticos. Ficou a meio caminho. Apesar de exibir um sistema social invejável, a Europa foi ficando para trás e viu aumentadas as suas dependências. Com poucas empresas à altura, com estruturas económicas obsoletas e sem força militar independente, a Europa perdeu terreno e força.

Se os Estados Unidos e a China foram os vencedores, pretendendo mesmo criar as bases de um novo planeta bipolar, a maior derrotada foi a Rússia. A sua posição de co-titular do mundo, de rival da América e de potência política indiscutível foi-se esbatendo. A Rússia ficou com o pior do comunismo, um Estado obsoleto, a falta de democracia, a autoridade despótica e um sistema económico arcaico. Mas ficou também, desde o fim do comunismo, com o pior do capitalismo selvagem, a oligarquia predadora e a opacidade económica. A Rússia do século XXI, a mesma que invadiu a Ucrânia e se prepara, caso lho permitam, para ameaçar os países vizinhos, essa Rússia vive ainda num país atrasado e sem capacidade técnica, cultural ou científica. Este país criou um pequeno “Estado dentro do Estado”, que explora os colossais recursos naturais e que trata do espaço, do armamento nuclear e de pouco mais, mas que cava todos os dias o seu próprio subdesenvolvimento. Esta Rússia não tem trunfos para governar o mundo, a não ser a força, a guerra e a bomba nuclear.

A Rússia de Putin procura sobretudo retomar o seu lugar no mundo. Não em partilha com os Estados Unidos, que já não é possível, mas em novo arranjo mundial com a América e a China. A Rússia receia que não haja lugar para três, mas os dirigentes russos já perceberam que se aceitarem a partilha a dois, será para a América e a China, não será nunca mais para a América e a Rússia, como nos velhos tempos. No mesmo processo, a Rússia pode tentar concretizar um velho desejo: dominar ou condicionar a Europa, em todo o caso deixá-la para trás. 

Não se conhecem com rigor os sonhos de Putin, nem as suas ambições pessoais. Mas não se duvida que ele queira tudo e de qualquer modo. Mesmo à bruta e com violência, que parecem ser os métodos de eleição daquele governo e dos regimes comunistas que o antecederam. A verdadeira ambição, para além dos devaneios patrimoniais, não é a de se transformar no novo Czar, como se diz na propaganda, mas sim a de partilhar o governo do mundo, com americanos ou com americanos e chineses. Na certeza de que Rússia e China nunca coexistirão bem. Nem sequer quando ambas eram comunistas!

Há certamente russos notáveis e não se duvida de que vieram daquele país formidáveis contributos para as artes e as letras. Mas o sistema de governo da Rússia, dos Czares, dos comunistas, do actual regime sem nome e destes oligarcas repousou sempre na violência, na autoridade, na ditadura e na opressão. Da escravatura à servidão, das polícias políticas ao Gulag e à mais destemperada Máfia, a Rússia preza-se de ser fiel a si própria.

Uma vitória da Rússia, sob qualquer forma, será a derrota da Europa e da liberdade. Será uma ameaça permanente e insidiosa contra as democracias e contra vários países europeus. Será a renovação da ditadura como sistema tradicional de poder na Rússia. Será com certeza um recuo da globalização e um novo fôlego dos nacionalismos. Seria seguramente a reintrodução da força e da guerra como critério de organização da comunidade internacional. Colocaria indefinidamente todas as instituições internacionais de cooperação e diálogo (saúde, trabalho, educação, cultura, telecomunicações, comércio…) em situação de suspensão impotente. Consistiria no maior recuo dos direitos humanos e dos direitos dos cidadãos que se conhece desde há quase cem anos.

É possível e legítimo que haja, em qualquer parte do mundo, incluindo em Portugal, pessoas que simpatizam com a Rússia, com o seu presidente e o seu regime. É também provável que haja quem veja numa vitória russa uma derrota da democracia ocidental, da América, da Europa e do capitalismo. Bom seria que tais pessoas se exprimissem com liberdade, sem cinismo processual e sem a covardia das falácias jurídicas. Perante a evidência insofismável da agressão russa, dos bombardeamentos aéreos, da invasão por milhares de tanques e blindados russos e da conquista territorial, há quem dê ouvidos às alegações do agressor e sustente que os mortos são vítimas dos próprios ucranianos e que a destruição é o resultado das suas anti-aéreas. 

Diante de cidades arrasadas, de edifícios destruídos, de infra-estruturas desmanteladas e de serviços públicos aniquilados, há quem seja subitamente invadido por escrúpulos jurídicos e exija comissões independentes para analisar a situação no terreno, identificar as vítimas e fazer relatórios sobre as circunstâncias das mortes. Em face de uma guerra que já destruiu grande parte de um país e provocou a fuga de milhões de pessoas, há quem sugira que a culpa e a responsabilidade são dos Estados Unidos e da NATO que cercaram a Rússia. Diante do incómodo causado pela violência bruta e pela agressão cega, há quem tenha a desfaçatez de pedir pensamento, de propor o estudo das causas remotas, de proceder à contextualização, à análise e ao enquadramento, quando na verdade estão a chamar pensamento à mais covarde atitude que consiste em não dizer o que realmente pensam e se escondem atrás do biombo da hipocrisia. Para esta gente, os responsáveis pela destruição da Ucrânia são… os Ucranianos!

Público, 9.4.2022

 

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8.4.22

NUS

Por Joaquim Letria

Os espanhóis têm o viño de Verano que é uma espécie de água pé às três pancadas destinada a ser bebido sem exigências e a acompanhar comida insípida e incolor desta estranha época primavera-verão.

Com a proximidade do estio e seus abençoados calores, os media abrandam nos escândalos e não resistem a dedicar-se aos conselhos dietéticos das suas e seus leitores, ouvintes e espectadores.

Antes de mais, vêm os avisos nutricionistas, geralmente acompanhados pelas  moradas de alguns ginásios com PTs (treinadores personalizados) frequentadores das páginas da Imprensa cor de rosa por saírem com esta e com aquele.

Mil e uma maneiras agradáveis de perder quilos, adelgaçar a cintura, estreitar as ancas, derreter as nádegas. A seguir vem a ameaça gritada do cancro de pele, ordens para nos untarmos com todas as loções e cremes protectores, ungindo-nos religiosamente para não sermos sacrificados aos malefícios da diferença real da hora solar nem sermos engolidos pelo buraco do ozono.

Quero eu dizer com estas divagações que de meados da Primavera até ao fim do Verão, os media entendem que o corpo humano desnudado e na sua melhor forma de apresentação, é  um factor muito positivo para as respectivas vendas e audiências. Ou seja, as direcções e administrações dos media sabem melhor do que ninguém que os seus consumidores gostam de ver corpos bonitos e, de preferência, desnudados.

O fenómeno não é de hoje. Nem esta preferência deve ser condenada. O pincel florentino de Cosimo Tori, o “Bronzino” (1503-1572) mostrou-nos o encontro entre Eros e Afrodite dum modo único, inesquecível e irrepetível. A comunicação de Tori é capaz de ser mais lenta do que os pixels de agora. Mas é mais profunda e eficaz.

Os corpos é que são definitivamente diferentes. A carne de hoje afirma a sua prioridade com o despudor da decadência de quem não viveu o apogeu, descuidada da harmonia e desproporcionalidade que domina o exibicionismo sexual do pintor toscano.

Importantes segmentos da sociedade afluente gostam de se comportar desta maneira – exibindo o corpo e babando suas alegadas proezas e conquistas sexuais. É interessante verificar como através dos tempos aqueles que dominam os outros procuram que a coisa pública se passe cada vez mais em privado, enquanto os simplesmente notáveis adoram tornar públicas as suas coisas privadas. 

Publicado no Minho Digital

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7.4.22

A Guarda e o Padre Isidro – Crónica

 Por C. B. Esperança

O padre Isidro, ordenado pelo eterno bispo da Guarda, D. João (III) Alves Matoso (1914 / 52), paroquiava ao Barracão e outras aldeias quando o idoso prelado ou o recém sucessor, D. Domingos, o chamou para a paróquia de S. Vicente, na Guarda, sede do distrito e da diocese, no início da década de cinquenta do séc. XX.

Continuou rural numa cidade que só diferia das aldeias na luz elétrica, água canalizada e saneamento, que já chegavam à maior parte das casas, mas há de ter atraído a inveja de largas dezenas de padres que exibiam a batina, a tonsura e o cabeção romano, pelas ruas da cidade, sem os proventos que a paróquia concedia.

O padre Isidro chegou de bicicleta, com molas a apertarem-lhe as pernas das calças para as não sujar de óleo na corrente que a impulsionava. Era duro pedalar numa cidade de montanha, e não tardou a substituir a velha pedaleira pela barulhenta moto cujo motor se ouvia a larga distância. Depois, havia de comprar automóvel, e outros se seguiram.

Na Guarda tinha à espera a casa paroquial, uma enorme e bela mansão, hoje em ruínas, em cujo quintal era farta a capoeira, com galinhas que trouxera do Barracão e outras que a piedade das devotas lhe levavam. Não faltavam ao pároco, nesse tempo, iguarias com que as boas almas o apaparicavam, convictas de que o pároco facilitava o Paraíso, nem devotas que o cuidavam e lhe asseguravam os serviços domésticos. Foi um privilegiado. 

O padre Isidro era piedoso, e não devia muito à inteligência. Medíocre na parenética e esforçado no serviço divino, inspirava simpatia ao bispo e sorrisos aos paroquianos. Havia outros padres a oficiar na cidade, mas era ele ‘o pároco da Guarda’. Vagamente exótico, seria hoje designado ‘cromo’.

Num qualquer domingo depois do Pentecostes, quando oficiava a segunda missa do dia, as mulheres entoavam o habitual cântico litúrgico. Enlevado com o entusiasmo canoro, gritou, “cantai, mulheres, cantai!” e o coro, aturdido, deixou de cantar. Foi um momento de constrangimento, com mulheres ansiosas pelo fim da missa, para finalmente dizerem, benzendo-se, “Deus nos perdoe, o raio do padre é doido, como é que podíamos cantar depois de nos interromper”!?

Aqui, o cronista abre um parêntese para referir que as mulheres, durante muitos séculos, não podiam cantar nas igrejas. Paulo de Tarso, um santo doutor, considerava o cabelo e a voz das mulheres coisas obscenas. A castração de jovens, antes da puberdade, garantia às crianças preservar a sua voz aguda e, durante séculos, foram homens os cantores cuja extensão vocal correspondia à das vozes femininas. Sisto V aprovou o recrutamento de castrati para o coro da Basílica de S. Pedro pela bula papal “Cum pro nostri temporali munere” de 1589. Só em 1870, a castração para esse fim foi proibida em Itália, o último país onde se louvou a Deus sem o sujeitar à voz de mulheres. Em 1902, Leão XIII proibiu definitivamente a utilização de castrati nos coros das igrejas e Deus resignou-se. Já era assim que o padre Isidro homenageava o Altíssimo, o último castrato a abandonar o coro da Capela Sistina foi Alessandro Moreschi, em 1913, quase quatro décadas antes.

Voltemos ao bem-aventurado padre Isidro que se finou sem odor a santidade, apesar da longa e virtuosa vida eclesiástica a pelejar contra o Demo, como o demonstrou a sanha com que tentou impedir a escandalosa exibição de sutiãs em manequins que desafiavam a moral e os bons costumes no Império da Moda, a primeira casa de roupa feminina na cidade da Guarda.

O Império da Moda abriu na R. do Comércio, no Rés do Chão da casa que alguém legou à paróquia para salvação da alma. O proprietário era, pois, inquilino da paróquia, mas a exibição do íntimo adereço feminino era da sua responsabilidade. O padre Isidro tentou demovê-lo de exibir a mercadoria, e a resistência do comerciante exasperou o sacerdote. Enviou-lhe duas freirinhas que lhe pediram, pelo amor de Deus, que retirasse da montra tão lasciva mercadoria, numa rua movimentada onde passavam pudicas adolescentes e inocentes crianças. Não se demoveu o comerciante e a santa ira do pároco revelou-se.

Durante a noite abriu as torneiras do primeiro andar, o prédio era todo propriedade da paróquia, e inundou a loja destruindo os manequins, os sutiãs e outras mercadorias para desagravo do seu Deus. 

Não se conformando, o comerciante recorreu ao Tribunal, exigindo uma indemnização por danos sofridos. Após vários anos, o advogado da paróquia recomendou pagar todos os prejuízos causados pelo bondoso pároco para lhe evitar a sentença que o amachucaria e não lhe evitava o pagamento. Ameaça do juiz.

O padre Isidro, a quem em 1960 o bispo nomeou dois coadjutores, um deles o mediático padre Vítor Feytor Pinto, que quis reconduzir ao redil da fé o cronista que ora esboça a biografia do pároco, promovia desobrigas coletivas pascais e, em maio, o Mês de Maria, para converter a Rússia através do terço diário, como a freira Lúcia pedia.

Apesar da dedicação pia, o padre Isidro teve na devota cidade, onde o clero gozava de especial consideração, respeito e medo, desconsiderações que hão de ter ajudado a remir os pecados, se acaso os tinha, quando Deus foi servido de o chamar à divina presença.

Uma ocasião, quando tinha substituído a moto pelo automóvel, o frio e a chuva não lhe consentiam andar de moto, tal como o acidentado da cidade o tinha obrigado a enjeitar a bicicleta, andavam os mordomos a cobrar a côngrua pela cidade. Entraram na tasca do Ti Agnelo, no R/C do último prédio da Rua Dr. Francisco dos Prazeres, a seguir, e em frente, à rampa que subia do colégio de S. José.

Solicitaram o óbolo ao honrado tasqueiro que ganhava a vida a vender copos de vinho e uns deliciosos pastéis de bacalhau que a mulher, a senhora Maria, fritava durante todo o santo dia. A vida não era fácil e, perante a solicitação, lembrou-lhes que o padre chegara à Guarda de bicicleta, que a substituiu por uma moto e, depois, por um automóvel, e perguntou-lhes se a côngrua era para comprar algum avião. Descoroçoados, retiraram-se os mordomos, convictos de que a taberna não era lura de onde saísse coelho, e lá foram bater a outras portas.

O padre Isidro, a quem faltava um biógrafo que o tivesse conhecido, não terminaria na cidade a sua entrega ao serviço do Divino. 

A estação da Guarda, hoje integrada na cidade, era o local da confluência das linhas da Beira Alta e Beira Baixa, rodeada de armazéns, habitações de empregados da CP e dos armazenistas, onde paravam as camionetas da Sociedade de Transportes que faziam a ida e volta, com os passageiros dos comboios, num longo desvio pelo Rio Diz e Mileu, trajeto obrigatório mesmo depois de haver uma estrada com metade da distância.

À medida que cresceu e se tornou um aglomerado urbano e denso, desejou a criação de paróquia própria e enviou sucessivas delegações de crentes a implorar ao bispo que lhe concedesse a mercê. Construíram e mobilaram a casa paroquial e aguardaram ansiosos a designação do novo padre.

Um dia o bispo deu-lhes a boa nova. O padre Isidro deixava a cidade para ser o primeiro pároco da nova paróquia. Foi o desânimo e, na impossibilidade de lhe retirarem a casa, levaram-lhe as mobílias quando souberam qual o padre que lhes calhara. Deus castiga os que mais ama, pároco e paroquianos, e foi assim, com o padre Isidro, que a paróquia se iniciou a cuidar das almas e a tornar cristãos os neófitos.

O povo é bom e a fé redime. O padre Isidro finou-se cheio de missas e de anos. Agora tem um largo com o seu nome na última paróquia que lhe coube.

Coimbra, 6 de abril de 2022

Ponte Europa Sorumbático

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2.4.22

Grande Angular E a Justiça, Senhores?

Por António Barreto

Novo programa de governo. A pandemia e a guerra são urgências indiscutíveis. Mas também há política e sociedade, economia e cultura. Um programa serve para isso mesmo, para o que se deve fazer para além das emergências. A começar pela definição de prioridades, o que ainda não está feito. A coreografia habitual (o verdadeiro desejo dos políticos, as traições previsíveis, a fantasia das sucessões…) tem ocupado o proscénio.

Novo Parlamento. Novo Governo. Maioria absoluta. Estabilidade previsível. Presidente cooperante. Oposições incapazes de criar obstáculos à acção governativa. Tudo se conjugaria para ter esperança numa reforma global ou em melhoramentos profundos na Justiça. Mas não parece ser o caso. A avaliar pelo programa eleitoral do PS, transformado em Programa de Governo, a Justiça será uma vez mais desprezada. Nem sequer figura entre as “Doze Grandes Prioridades”. É realmente estranho que a Justiça não conste dessa lista. A persistente crise da Justiça, considerada por muitos a maior chaga da sociedade e do regime em que vivemos, não é prioritária. Será possível que os dirigentes políticos não se dêem conta do mau estado em que a justiça se encontra? Não percebam a desconfiança essencial dos cidadãos?

No panorama actual, brilham os processos dos políticos, dos corruptos, dos banqueiros atrevidos, dos empresários imaginativos e dos dirigentes de futebol. Todos os dias os cidadãos são estimulados a escandalizar-se com novos atrasos, novas corrupções e novos incidentes judiciais. Agora, a novidade é sermos surpreendidos com lutas e alvoroço envolvendo os magistrados e as instâncias de justiça. As lutas entre funções, magistraturas, tribunais e juízes fazem parte da crónica e até do crime. O processo judicial é ele próprio fonte de opacidade e de desigualdade. Estão em causa os sistemas de distribuição de processos, a transparência dos tribunais superiores e os processos de designação para os conselhos superiores. A instrução e o abuso das garantias e dos recursos contribuem para a crise.

Na retórica política, não faltam declarações sobre a importância da Justiça e a necessidade de a reformar. Mas, chegada a verdade da acção, a tibieza do legislador e dos governos é chocante. Ora, é sabido que a Justiça influencia todas as áreas importantes da vida colectiva. O crime, a vida de cada um, a ordem pública, a tranquilidade e a propriedade dependem da Justiça. A família, o poder paternal, a violência doméstica, a igualdade de género, a saúde pública e a educação dos filhos dependem da Justiça. A honestidade, a honradez na vida colectiva, a transparência da informação, a corrupção e a integridade dos agentes da administração dependem da Justiça. A democracia, a desigualdade social, a igualdade de direitos, a protecção das liberdades, a defesa da privacidade e o respeito pelo indivíduo dependem da Justiça. Até o sistema político, a administração pública e os grandes serviços públicos, a liberdade religiosa e a igualdade racial dependem da Justiça. Ora, em quase todas estas áreas, a Justiça é deficiente e inadequada.

Sabemos, em poucas palavras, que a Justiça é lenta. Injusta. Socialmente desequilibrada. Cara. Parcial. Elitista. Ineficaz. Incompreensível. Complicada. Burocrática. Complacente com a corrupção. Por vezes mesmo ela própria corrupta. Permissiva. Amiga das portas giratórias para os magistrados que circulam entre os tribunais, os gabinetes políticos, as empresas públicas e os órgãos de confiança política, como tão justamente denunciam Maria José Morgado ou Manuel Soares. Toda a gente sabe. Mas o imobilismo é a regra. É difícil encontrar quem, no sistema judicial, na assembleia legislativa e no governo, queira estudar e organizar um movimento de reforma e uma acção de melhoramento profundo.

Verdade é que é raro encontrar quem confie na justiça portuguesa. Há muitos anos, três ou quatro décadas, os inquéritos de opinião e de confiança colocavam os magistrados em primeiro lugar. Antes dos médicos, dos polícias, dos professores, dos jornalistas… E dos deputados, previsivelmente. Nos últimos anos, tudo mudou e as escalas quase se inverteram. Os magistrados vêm muitas vezes em último lugar.

Não valeria a pena que os órgãos de soberania mais responsáveis, Parlamento, Presidente ou Governo, tomassem as iniciativas necessárias a fim de, em poucos anos, mudar a face da justiça? Não seria interessante que as instituições judiciais, os tribunais e os conselhos superiores, as organizações profissionais, a imprensa e as universidades se interessassem por este processo de renovação da justiça? Não seria luminoso tentar responder com verdade às perguntas difíceis? Quais são realmente os obstáculos à mudança na Justiça? Quais são os interesses corporativos, profissionais, políticos e económicos que impedem a reforma da justiça? Quais são os alçapões, as armadilhas e as ciladas do sistema que deliberadamente protegem os poderosos, acarinham os políticos, defendem os corruptos, ajudam os ricos e amparam os criminosos? Por que razões as custas judiciais são elevadas e a Justiça é cara e desigual? Em que é que as “portas giratórias” favorecem o imobilismo e mantém os privilégios? Quais são os factores que favorecem as prescrições e protegem o atraso?

O que é mais urgente? A morosidade ou a impunidade? A ineficácia ou a desigualdade? Por que razões os piores processos, os mais longos, os mais confusos, os mais complacentes com as fugas de informação e com as violações dos segredo de justiça são os casos que envolvem ricos, poderosos, políticos, altos dirigentes da Administração Pública e empresários da banca, do futebol e das obras públicas? Por que razão o alucinante sistema de recursos e garantias favorece sempre os poderosos? Por que razões a lei e o sistema parecem tão frequentemente proteger os criminosos mais do que as vítimas? Por que motivos o poder político persiste em não dar, à Justiça, recursos financeiros, equipamentos e pessoal técnico à altura?

É necessário adaptar a Justiça portuguesa à democracia e à liberdade. À Europa e aos direitos dos cidadãos. À nova sociedade civil e à globalização. Ao capitalismo e à economia de mercado. Ao Estado de protecção social. Ao universo digital. Ano após ano, década após década, a Justiça foi ficando para trás. Não ficou imóvel, com certeza, mas moveu-se sempre de modo insuficiente. No fim de cada ano, no termo de cada legislatura, a Justiça ficou sempre aquém do necessário. E mais injusta.

Público, 2.4.2022

 

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1.4.22

SÃO COMO PEDRAS, OS GAJOS

Por Joaquim Letria

Os políticos informam pouco e mal. Creio, no entanto, que sem má intenção.

Não sabem mais do que mostram… desde a revolução industrial que andam tão atrasados que chegaram, coitados, neste estado ao presente, véspera de algo que desconhecem.

A ferrugem humana que a paragem das grandes máquinas lançou para as ruas é da família dos ferromagnetos que enriqueceram a ficção científica. A grande maioria dos políticos chegou tão atrasada que saltou para a última composição que saiu da estação sem reparar que embarcava no último comboio de Gun Hill.

Muitos dos nossos políticos mentem. Sabem, pelo menos, que nunca conseguirão acabar com o desemprego porque este é intrínseco ao sistema. É de Karl Marx a expressão “desemprego intrínseco”. Esta deve ser daquelas “contradições” de que Marx foi profético, para estupefacção daqueles que davam o alemão por morto e o confundiam com o cadáver de Lenine.

Tudo o que serviu para manter as pessoas com esperança no futuro, convencidas de que chegariam a alguma parte, está em crise: a Igreja, a Cultura, o Modernismo, a História, a Liberdade, enfim tudo aquilo a que Lyotard chamava de “grandes narrativas”.

Jazemos no nada, no vazio da post-modernidade. Tenhamos a honestidade de reconhecer que as revoluções industriais também não resolveriam o problema do desemprego, da exploração, da miséria. Seria, pelo menos, muito improvável que o conseguissem.

Renunciando aos grandes esquemas que não entendemos e nos quais descremos, preferimos passar a reger-nos pelo sistema primitivo dos mitos. E isso também é muito perigoso, quando confiamos em gente que conhecemos mal e em quem não se acredita minimamente.

Depende do grau de proximidade. Ao nos aproximarmos muito, a preocupação cresce e a desilusão avoluma-se. A razão de ser desta conclusão é simples. Ao nos acercarmos de alguns políticos chegamos a uma conclusão: “São como pedras, os gajos, não dão água”.

Publicado no Minho Digital

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