Grande Angular - Argumentos e falácias
Por António Barreto
Com a guerra, a globalização foi interrompida. Anteriormente, com as suas vantagens e os seus inconvenientes, vingara durante décadas. O mundo abriu-se e ficou mais pequeno, isto é, tudo passou a ser mais perto, mais rápido e mais simples. Houve vencedores e derrotados. Talvez os primeiros tenham sido em maior número. O novo comércio mundial e a nova distribuição do trabalho estão na origem de inéditas oportunidades. Foram criadas centenas de milhões de empregos, cresceram cidades com dezenas de milhões de habitantes, aumentou o produto da maior parte dos países de África, Ásia e América Latina. Os principais vencedores foram, como seria de prever, as economias mais avançadas, os países com empresas mais eficientes e as regiões com a melhor ciência. Mas venceram também os países que, com enorme atraso social, souberam transformar-se em “fábricas”, produzindo tudo, para todos e mais barato. Entre estes últimos, avulta a China: sem ceder um milímetro dos poderes ditatoriais, o país abriu as portas ao mais aventureiro dos capitalismos imagináveis.
A Europa ganhou com a globalização. Mas não muito. Não tinha a capacidade americana, nem os trunfos asiáticos. Ficou a meio caminho. Apesar de exibir um sistema social invejável, a Europa foi ficando para trás e viu aumentadas as suas dependências. Com poucas empresas à altura, com estruturas económicas obsoletas e sem força militar independente, a Europa perdeu terreno e força.
Se os Estados Unidos e a China foram os vencedores, pretendendo mesmo criar as bases de um novo planeta bipolar, a maior derrotada foi a Rússia. A sua posição de co-titular do mundo, de rival da América e de potência política indiscutível foi-se esbatendo. A Rússia ficou com o pior do comunismo, um Estado obsoleto, a falta de democracia, a autoridade despótica e um sistema económico arcaico. Mas ficou também, desde o fim do comunismo, com o pior do capitalismo selvagem, a oligarquia predadora e a opacidade económica. A Rússia do século XXI, a mesma que invadiu a Ucrânia e se prepara, caso lho permitam, para ameaçar os países vizinhos, essa Rússia vive ainda num país atrasado e sem capacidade técnica, cultural ou científica. Este país criou um pequeno “Estado dentro do Estado”, que explora os colossais recursos naturais e que trata do espaço, do armamento nuclear e de pouco mais, mas que cava todos os dias o seu próprio subdesenvolvimento. Esta Rússia não tem trunfos para governar o mundo, a não ser a força, a guerra e a bomba nuclear.
A Rússia de Putin procura sobretudo retomar o seu lugar no mundo. Não em partilha com os Estados Unidos, que já não é possível, mas em novo arranjo mundial com a América e a China. A Rússia receia que não haja lugar para três, mas os dirigentes russos já perceberam que se aceitarem a partilha a dois, será para a América e a China, não será nunca mais para a América e a Rússia, como nos velhos tempos. No mesmo processo, a Rússia pode tentar concretizar um velho desejo: dominar ou condicionar a Europa, em todo o caso deixá-la para trás.
Não se conhecem com rigor os sonhos de Putin, nem as suas ambições pessoais. Mas não se duvida que ele queira tudo e de qualquer modo. Mesmo à bruta e com violência, que parecem ser os métodos de eleição daquele governo e dos regimes comunistas que o antecederam. A verdadeira ambição, para além dos devaneios patrimoniais, não é a de se transformar no novo Czar, como se diz na propaganda, mas sim a de partilhar o governo do mundo, com americanos ou com americanos e chineses. Na certeza de que Rússia e China nunca coexistirão bem. Nem sequer quando ambas eram comunistas!
Há certamente russos notáveis e não se duvida de que vieram daquele país formidáveis contributos para as artes e as letras. Mas o sistema de governo da Rússia, dos Czares, dos comunistas, do actual regime sem nome e destes oligarcas repousou sempre na violência, na autoridade, na ditadura e na opressão. Da escravatura à servidão, das polícias políticas ao Gulag e à mais destemperada Máfia, a Rússia preza-se de ser fiel a si própria.
Uma vitória da Rússia, sob qualquer forma, será a derrota da Europa e da liberdade. Será uma ameaça permanente e insidiosa contra as democracias e contra vários países europeus. Será a renovação da ditadura como sistema tradicional de poder na Rússia. Será com certeza um recuo da globalização e um novo fôlego dos nacionalismos. Seria seguramente a reintrodução da força e da guerra como critério de organização da comunidade internacional. Colocaria indefinidamente todas as instituições internacionais de cooperação e diálogo (saúde, trabalho, educação, cultura, telecomunicações, comércio…) em situação de suspensão impotente. Consistiria no maior recuo dos direitos humanos e dos direitos dos cidadãos que se conhece desde há quase cem anos.
É possível e legítimo que haja, em qualquer parte do mundo, incluindo em Portugal, pessoas que simpatizam com a Rússia, com o seu presidente e o seu regime. É também provável que haja quem veja numa vitória russa uma derrota da democracia ocidental, da América, da Europa e do capitalismo. Bom seria que tais pessoas se exprimissem com liberdade, sem cinismo processual e sem a covardia das falácias jurídicas. Perante a evidência insofismável da agressão russa, dos bombardeamentos aéreos, da invasão por milhares de tanques e blindados russos e da conquista territorial, há quem dê ouvidos às alegações do agressor e sustente que os mortos são vítimas dos próprios ucranianos e que a destruição é o resultado das suas anti-aéreas.
Diante de cidades arrasadas, de edifícios destruídos, de infra-estruturas desmanteladas e de serviços públicos aniquilados, há quem seja subitamente invadido por escrúpulos jurídicos e exija comissões independentes para analisar a situação no terreno, identificar as vítimas e fazer relatórios sobre as circunstâncias das mortes. Em face de uma guerra que já destruiu grande parte de um país e provocou a fuga de milhões de pessoas, há quem sugira que a culpa e a responsabilidade são dos Estados Unidos e da NATO que cercaram a Rússia. Diante do incómodo causado pela violência bruta e pela agressão cega, há quem tenha a desfaçatez de pedir pensamento, de propor o estudo das causas remotas, de proceder à contextualização, à análise e ao enquadramento, quando na verdade estão a chamar pensamento à mais covarde atitude que consiste em não dizer o que realmente pensam e se escondem atrás do biombo da hipocrisia. Para esta gente, os responsáveis pela destruição da Ucrânia são… os Ucranianos!
Público, 9.4.2022
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