18.3.22

SAUDADES DO KUNG FU

Por Joaquim Letria

O  Kung Fu teve muitos adeptos em Portugal.

As salas de “reprise”, os piolhos e outros cinemas do género viveram décadas desses festivais de pancadaria que criaram uma galeria de monstros sagrados que vão desde o Bruce Lee ao Jean Claude Van Damme, passando pelo Chuck Norris, todos eles sob o olhar paternal de John Woo, o homem que conferiu dignidade às fitas “made in Hong Kong”.

Uma vez mais foi Hollywood – e não Hong Kong – a meter na cabeça dos jovens de então o sonho das artes marciais do Oriente. Poucos esqueceram os gestos de David Carradine, hermético como uma marmita, a calcorrear desarmado o Oeste americano à procura dum irmão desaparecido.

Carradine não usava os invitáveis revolveres Smith & Weston nem a espingarda de repetição Winchester, não bebia uísque dum trago nem calçava botas com esporas. Nós lá nos íamos inteirando das causas da atitude sofredora, paciente e contida, tudo aprendido e originário de Shao Lin, um templo chinês destinado à formação de jovens guerreiros que um primo do José Sócrates frequentou antes de se naturalizar brasileiro e fugir para Angola.

O pequeno Gafanhoto, como carinhosamente lhe chamava o seu mestre, aprendera ali a partir o pescoço do mais pintado, sempre com o uso exclusivo das mãos e dos pés, apenas em legítima defesa e em casos de força maior. Todos esperávamos aquele momento em que Carradine deixava qualquer rufião zonzo ou inconsciente, tudo isto numa década sem insegurança nas ruas nem guerra colonial e sem que o mestre Koboyashi  tivesse cá chegado para ensinar aos cívicos a arte do judo e do jiujutse. Naquela época quase sem bullying nas escolas, os mais franzinos sentiam-se vingados e deitavam-se a sonhar com aqueles episódios da TV a preto e branco, desejando construir à palmada um mundo mais justo e uma sociedade mais fraterna. O Kung Fu despertava o desdém dos bem pensantes, mas muita criança débil imaginou-se invulnerável, sem precisar dum revólver à Dirty Harry, para dizer àqueles que os brutalizavam no recreio “Bate-me para alegrares o meu dia!”

Aquele foi o tempo em que as crianças mais frágeis deixaram de fazer xixi na cama e tiveram ocasião de sonhar que poderiam enfrentar os brutamontes e todos aqueles que se valiam do físico, do dinheiro, da influência e do poder. Hoje já não é assim. O menino fraco voltou a fazer xixi na cama e caso se arme em esperto leva uma carga de porrada para não ser parvo e pensar que pode contribuir para um mundo com alguma justiça.

Publicado no Minho Digital

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