30.9.16

RAZÃO VERSUS FÉ, UMA DIALÉTICA DA IDADE MÉDIA

Por A. M. Galopim de Carvalho
Situada entre aproximadamente os séculos V e XV, a Idade Média foi um tempo de alastramento do cristianismo e da vida cultural na Europa ocidental, sobretudo através do surgimento de mosteiros da Ordem dos Beneditinos. Seguidores de São Bento de Núrcia (480-547), os monges desta comunidade cristã, iniciadores do movimento monacal, foram os herdeiros da cultura latina e os depositários do essencial do saber do mundo antigo. Estão entre eles os criadores do enciclopedismo, com destaque para Santo Isidoro de Sevilha (570-636) que nos deixou “Etymologiae sive origines”, publicado oito séculos depois, em 1483. Durante este período, o estudo e o ensino transitaram dos mosteiros e conventos para as chamadas escolas catedrais, criadas por toda a Europa, estas que, por seu turno, foram os embriões das universidades nos centros urbanos mais importantes (Salermo, Bolonha, Paris, Oxford, Montpelier, Arezzo, Salamanca, Pádua, Orleães, Roma, Siena, Lisboa, entre muitas outras), privilegiando o ensino de disciplinas como teologia, gramática, retórica, dialéctica (lógica), aritmética, geometria, astronomia, direito, medicina e música.

Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, parte importante do conhecimento produzido e ensinado na Antiguidade sobreviveu graças às traduções que eruditos árabes e judeus fizeram das obras clássicas. Tal permitiu que a alquimia dos chineses, babilónios e egípcios e a filosofia dos gregos reaparecessem na Europa medieval. Foi o tempo da escolástica (do grego scolastikós, instruído), o método de pensamento dominante no ensino nas universidades medievais europeias. Entendida como uma via de harmonização da fé com a razão, a escolástica procurou conduzir o racionalismo e o empirismo filosófico de Aristóteles no interesse da teologia ou, numa outra versão, conciliar o pensamento do Filósofo com a doutrina da Igreja. As obras então publicadas nos campos da filosofia e da teologia revelam a redescoberta das ideias de Aristóteles como correntes do pensamento que conduziram à introdução da lógica no discurso, constituindo uma via interessada em abordar, de forma sistémica, a razão e a verdade da Fé.
Na evolução do pensamento científico é necessário recordar o grande filósofo de origem árabe, Abu al-Walid Ibn Munhammad Ibn Ruchd (1126-1198), mais conhecido por Averróis (distorção latina do seu cognome árabe). Nascido em Córdova, na vizinha Espanha, então território muçulmano, é tido como o mais afamado pensador islâmico da Idade Média, viveu muito à frente do seu tempo, abrindo o caminho para o Renascimento e influenciando, significativamente, a filosofia europeia. Intelectual de grande eclectismo, Averróis foi médico, astrónomo, jurista e teólogo. Estudioso do direito canónico muçulmano, foi um dos maiores conhecedores e comentadores do pensamento de Aristóteles, tendo ficado conhecido na história da filosofia pelo cognome de “O Comentador”. Ao afirmar que, “com excepção do sobrenatural, o pensamento se deve sujeitar à força da razão”, este muçulmano ibérico, contemporâneo do nosso rei Afonso Henriques, Teve grande e decisiva influência na evolução da ciência, em geral. Seguidor do aristotelismo, na tradição árabe de recuperação da filosofia grega, Averróis soube fundi-lo com uma parcela de platonismo. Assim, afirmava que, “a par da verdade óbvia do dia-a-dia, observável e aceite pelo povo, e da verdade mística da Fé, defendida e propalada pelos teólogos, há a verdade científica, fruto da razão, podendo estar em desacordo umas com as outras”.
Num tempo em que a teologia dominava sobre a filosofia natural (ciências naturais), as suas ideias alastraram entre a comunidade de estudiosos cristãos da Universidade de Paris, criando uma corrente de pensamento científico puro e independente das crenças religiosas, oposto à envelhecida tese de Santo Agostinho (354-430), segundo a qual havia uma única verdade, a dos santos evangelhos. Para Averróis, uma dada afirmação pode ser filosoficamente (cientificamente) verdadeira e teologicamente falsa e vice-versa. Embora não tenha abordado temas directamente relacionados com as ciências da Terra, a intensa defesa que fez do pensamento científico e da sua independência relativamente aos dogmas da Igreja, deu sustentáculo ao avanço, tantas vezes difícil, levado a cabo, primeiro, por naturalistas e, mais tarde, por geólogos.
A Andaluzia era, então, um dos mais notáveis centros de sabedoria da humanidade. Muitos dos textos dos filósofos gregos salvos das bibliotecas de então foram aqui traduzidos, dando lugar um movimento intelectual notável que acabou por ser aniquilado pela reconquista cristã. Uma tal hegemonia intelectual determinou que, durante os últimos quatro séculos da Idade Média, o árabe foi a língua dominante na ciência embrionária no espaço europeu. Durante parte da sua vida, Averróis contou com a protecção dos califas locais, até que foi desterrado por Abu Yusuf Ya'qub al-Mansur que, na mesma linha das hierarquias do catolicismo, considerou as suas opiniões desrespeitadoras e em desacordo com o Corão. Muito da sua obra acabou também por ser condenada pela Igreja Católica. Tomás de Aquino (1225-1274), que foi um seguidor de Aristóteles e de Averróis, opôs-se, no entanto ao naturalismo exclusivamente racional deste filósofo muçulmano.
Visto como o mais ilustre professor da Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, o filósofo e alquimista dominicano alemão Albrecht von Bollstädt (1206-1280), o Doctor Universalis, é conhecido entre nós por Alberto, o Grande ou Alberto Magno e, também, por Maître Aubert, ou simplesmente Maubert. Lembrado como o maior filósofo e teólogo cristão da Idade Média, Alberto Magno foi também figura de grande prestígio no mundo da ciência do seu tempo, em domínios mais tarde incluídos na química e na mineralogia, que realizou na sua qualidade de alquimista. Após concluir os seus estudos em Pádua e em Paris, Alberto optou pela vida religiosa, ingressando na Ordem de São Domingos, em 1223, tendo chegado à dignidade de Bispo de Regensburgo (Ratisbona).
Tendo estudado o pensamento de Aristóteles e de Averróis, produziu uma das mais importantes sínteses da cultura medieval e defendeu a coexistência pacífica da ciência e da religião, tendo sido o primeiro a aplicar as ideias do fundador do Liceu de Atenas no pensamento cristão. Mas não se limitou a repetir a obra do “Estagirita” (Aristóteles nasceu em Estagira, antiga cidade da Macedónia, na Grécia). Procurou recriá-la com a sua própria experiência e as suas observações. No propósito de subordinar o aristotelismo à fé cristã, o Papa Gregório IX incumbiu Alberto Magno dessa árdua  tarefa. Em resultado do seu trabalho, a física e a metafísica, a lógica, a ética, a psicologia e a política de Aristóteles passaram a fazer parte da escolástica.

Do outro lado do Canal, o franciscano Roger Bacon (1214-1294), filósofo e alquimista inglês, considerado o mais importante cientista da Idade Média, foi pioneiro na estruturação empirismo, termo aqui usado no sentido de método experimental, como forma de validação do conhecimento científico. O seu papel nas ciências da Terra decorre da sua visão sobre a ciência, em geral. O seu nome ficou ainda ligado à matemática (trabalhou na correcção do Calendário Juliano) e, principalmente, à óptica. Estudou em Oxford, tendo sido professor nesta Universidade, bem como na de Paris. Bacon viveu um período onde o influxo de textos dos filósofos gregos revolucionava a vida intelectual do ocidente europeu. Bastante influenciado por eles, foi um dos principais europeus do seu tempo a ensinar a filosofia de Aristóteles. Colocando ênfase considerável sobre os procedimentos empíricos ou experimentais, lutou contra as chamadas ideias inatas. Face a esta sua acção inovadora, ficou na história com o título de Doctor Mirabilis (Doutor Admirável, em latim). Propondo novas metodologias de investigação científica, colocou em causa os métodos de ensino praticados por franciscanos e dominicanos, o que o tornou impopular perante as autoridades eclesiásticas. Consciente de que a escolástica fora concebida como uma via para conciliar a razão com a fé, não deixou de salientar as virtudes desta disciplina medieval, mas apontou-lhe os vícios, em especial os que misturavam os dogmas da Igreja com a  ciência, defendendo a separação entre a teologia e o saber científico, numa atitude coincidente com a de Averróis e de outros comentadores árabes de Aristóteles. Esta atitude de Bacon germinou mesmo no seio da Igreja e teve aí seguidores afirmando que  a teologia não era uma ciência, uma vez que as suas deduções não assentam em dados concretos, observáveis e experimentáveis, mas em premissas sustentadas e, tantas vezes, impostas pela Fé.
Na medida desta nova atitude perante o conhecimento científico, as ideias sobre a origem, a história e a natureza da Terra começam a apontar o caminho que as afastou das crenças ancestrais e as conduziu às preocupações, em primeiro lugar, dos naturalistas e, mais tarde, dos geólogos. Deve-se a Bacon a criação e divulgação do conceito de "leis da natureza", facto importante num período em que estavam ocorrendo modificações no pensamento filosófico, em geral, e na filosofia natural (história naturalRazã), em particular.
Restrições censórias e perseguições movidas pela Ordem Franciscana que, em 1272, proibiu a divulgação dos seus livros, afectaram uma parte importante da sua criatividade intelectual. Esta sua dissidência face à hierarquia e a sua actividade nas práticas alquímicas (entre outras, descobriu a combinação perfeita da pólvora) levaram-no à prisão por mais de uma década.
Contemporâneo de Bacon, o dominicano italiano Tomás de Aquino, distinto aluno de Alberto Magno e autor da influente obra Summa Theologica, ficou na história da filosofia e da teologia com o título de Doctor Communis ou Doctor Angelicus. Considerado um dos principais expoentes da escolástica, foi o criador do Tomismo, a doutrina adoptada oficialmente pela Igreja Católica que, sem deixar de valorizar o pensamento de Platão e o misticismo de Santo Agostinho, visou, sobretudo, integrar a filosofia aristotélica nos textos bíblicos, criando uma espécie de teologia científica.
Na Península Ibérica, ao tempo do rei de Castela e Leão, Afonso X (1221-1284), lembrado como o Sábio ou o Astrólogo, a corte deste monarca foi uma autêntica academia científica no espaço mediterrâneo, tendo marcado um período excepcional no culto da sabedoria, conhecido por “Renascença do século XIII”. Judeus, árabes e cristãos conviveram nesta corte em absoluta harmonia e respeito pela cultura e pela ciência. Este que também foi o imperador eleito do Sacro Império Romano-Germânico (mas que não exerceu esse cargo) realizou a primeira reforma ortográfica do castelhano, língua que adoptou oficialmente, em substituição do latim.

Não irmanado com qualquer ordem religiosa, ao invés da grande maioria dos intelectuais da Idade Média ligados quer aos franciscanos, como Bacon, quer aos dominicanos, como Tomás de Aquino, o francês Jean Buridan (c.1300-1360), Reitor da Universidade de Paris, foi um clérigo e filósofo liberto das amarras impostas pela religião o que lhe permitiu o avanço em domínios da ciência que marcaram a sua obra. Como professor na mesma Universidade ao longo de uma vida, ensinou e escreveu sobre lógica, metafísica, ética, filosofia natural (história natural), numa metodologia e numa prática entendidas como seculares, isto é, distintas da teologia. Considerado o filósofo francês mais influente, no século XIV e nos dois ou três que se lhe seguiram, desenvolveu o conceito físico de impulso, dando, assim, o primeiro passo no sentido do moderno conceito de inércia, inexistente no pensamento de Aristóteles. Alvo de uma campanha encorajada por Roma e concretizada por partidários do franciscano e escolástico inglês, William Ockham (1285-1347), a obra escrita de Buridan foi proibida pela Igreja Católica e colocada no famigerado Index Librorum Prohibitorum, promulgado pelo Papa Paulo IV, em 1559, com uma versão revista e autorizada pelo Concílio de Trento, em 1563.

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29.9.16

Vitórias e derrotas

Por C. Barroco Esperança 
Não há vitórias eternas, nem derrotas definitivas. O processo de acumulação do capital levou à concentração da riqueza em cada vez menor número de pessoas. Há de atingir um ponto de fratura.
 Os tempos que correm, no dealbar da quarta revolução industrial, em que pela primeira vez os postos de trabalho destruídos são em maior número do que os criados, com robôs capazes de substituírem as pessoas, não tem uma resposta política para os desequilíbrios criados, e acentuados pela incontrolável explosão demográfica mundial.
Pelo contrário, com a multidão crescente de desocupados, exige-se a quem tem emprego que aumente a frequência, duração e intensidade do trabalho, fruto da ganância de quem acumula capital e do desespero do número crescente de marginalizados.
 Não é apenas a riqueza que urge distribuir, é o próprio trabalho e a sua retribuição, pois acabará por ser insustentável que não se dividam ambos, para maior equilíbrio social.
 Só existe uma situação em que os ricos arriscam tanto quanto os pobres, perdendo o que têm, seja pouco, muito ou nada, e a própria vida. É numa situação de guerra. E este é o cenário previsível na espiral que juntará os conflitos regionais num único e catastrófico.
 Falhadas, ao longo da História, as posições conservadoras, parece um contrassenso que a deriva reacionária, xenófoba e nacionalista conquiste tão vastas camadas da população mundial. 
 As sementes lançadas por Bernie Sander nos EUA, durante a campanha presidencial, e a recente vitória da reeleição do líder trabalhista, Jeremy Corbyn, com 61,8% dos votos dos militantes, abrem uma oportunidade para o combate ideológico contra o imparável êxito com que o ultraliberalismo ameaça a Humanidade. A próxima batalha é favorável ao último, mas não há vitórias eternas, e só se dececionam os cobardes que desistem de lutar. 
 Ponte Europa / Sorumbático

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27.9.16

As notícias na televisão

Por António Barreto
É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional.
Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol.
Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol mal disposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano.
Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez.
É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um Director-geral chega.
Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.
A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga.
Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.
A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor!
Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.

DN, 25 de Setembro de 2016

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Sem Emenda - As minhas Fotografias

Haïk, o véu argelino – Muito se tem falado dos niqab, das burkhas, do hidjab, do jilbab da shayla e dos chadors. E pouco de outros véus, não necessariamente melhores ou mais bonitos, seguramente não mais libertadores! Nesta fotografia dos anos setenta, feita numa rua de Argel, diante dos armazéns Bon Marché, vêem-se estes Haïk ou Hayek, cujo manto envolve o corpo, mas que parecem mais “soltos” no rosto, onde apenas um pequeno véu esconde a cara mas deixa movimentos livres para comer e beber. Dizem os homens argelinos que o Haïk é genuíno, nacional, terá servido como resistência contra os Árabes, quando estes, depois dos Romanos e dos Otomanos, invadiram o Maghreb no século VII, assim como contra os Franceses, quando estes colonizaram no século XIX. Também serviu, nos anos sessenta do século XX, para disfarçar guerrilheiros que levavam bombas debaixo dos panos! Hoje, há mesmo quem diga que este véu deve resistir aos véus iranianos, sauditas e afegãos… Sempre contra as mulheres, claro! Mesmo com essa risível desculpa de que liberta as mulheres dos olhares concupiscentes dos homens e mantém-lhes a decência e o pudor…

DN, 23 de Setembro de 2016

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26.9.16

Outono

Por A. M. Galopim de Carvalho
À semelhança do grande escritor russo Fiódor Dostoiévski, o Outono também se me afigura como um tempo sombrio a condizer com o Outono da vida, numa espécie de angústia escondida face ao confronto com esta realidade, ao mesmo tempo que me traz memórias nostálgicas de há muitos, muitos anos.
Nunca gostei do Outono. Este sentimento enraizado em criança, creio que tem a ver com o ano em que me mandaram para a escola primária de São Mamede, tinha eu nove anos. O Verão, de que sempre gostei, mesmo sem nunca ter visto o mar e brincado na praia, acabara. Caíam as primeiras chuvas e a alegria do sol tinha dado lugar a um céu cinzento. Quando, aos sete anos, chegou a minha vez de entrar para a 1ª classe, a minha mãe entendeu que eu era muito frágil para enfrentar a crueldade, repito, a crueldade de alguns dos seus “pedagogos” que ali exerciam o seu mister. E essa realidade entrava-nos quase diariamente, pela casa adentro, nas mãos do meu irmão Mário a frequentar a aula de um desses desalmados. Mesmo no inverno, com frieiras nos dedos, esse “bandido”, no dizer deste meu irmão, não se coibia de lhe ferrar meia dúzia de reguadas em cada mão.
Nesse tempo, o ano escolar chegava-nos com o mês de Outubro, mais precisamente, na segunda semana deste mês, um ou dois dias depois do feriado comemorativo da Implantação da República.
A pedido de minha mãe, o meu pai inscreveu-me no então Ensino Doméstico e a minha entrada na escola oficial só teve lugar aos nove anos, directamente para a 3ª classe, já suficientemente crescidinho para poder enfrentar os castigos do mestre-escola, nesse outro Outono igualmente sombrio e triste dominado pelo medo.
Talvez seja esta a razão pela qual nunca gostei do Outono. Entristecem-me o tempo chuvoso e os fins de tarde que encurtam os dias em contraste com os tardios ocasos do verão que findou. Entristece-me o cair das folhas que encheram de verde as ruas e avenidas da cidade. É, tradicionalmente, a época da caça desportiva, que de desporto não tem nada, actividade que repudio como atentado gratuito e cruel contra a vida de maravilhosas criações da mãe natureza, nossos pares na biodiversidade e detesto o Dia de Finados e os macabros crisântemos, de sinistro aroma, à porta dos cemitérios.

As castanhas assadas e o vinho novo pelo São Martinho não são suficientes para inverter este sentimento

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23.9.16

Saraiva & Coelho

Por Antunes Ferreira
Não li a obra obrada nem conto lê-la. No entanto, uma coisa creio que posso dizer a respeito dele: vai ser um best-seller. Infelizmente. O povo gosta das coisas que metam sexo e sangue. O Correio da Manha, a Sábado e a TVI são nisso peritos. Desta feita o sexo vence o alguidar. Como já perceberam trata-se do abjecto livreco do arquitecto José António Saraiva ex-director dos semanários “Expresso” e “Sol”. Que muita tinta tem feito correr neste pequeno rectângulo situado no sudoeste da Europa. E que vem dando dores de cabeça às agências de publicidade: o barulho que originou dispensa-as. Por mal dos nossos pecados.
Conheço este Saraiva de casa de seu tio José Hermano de quem era compadre, pois fui o padrinho do crisma do seu primogénito também José. Desde puto que se revelou um queixinhas, um cusco, um bajulador e um mentiroso – demasiadas “qualidades” juntas num gaiato de sete anos, mesmo para mim que tinha catorze. Por isso posso atestar o que aqui escrevo, dispensando porém a minha palavra de honra. Que o escroque não merece, nem nunca lha havia de dar.
O escarro intitulado “Eu e os políticos” é um chorrilho de perfídias, lama que Saraiva lança sobre pessoas cujas fotos aparecem escarrapachadas na capa, desde Mário Soares até António Costa passando entre muitos outros por Jorge Sampaio, Manuela Ferreira Leite, António Guterres, Santana Lopes e muitos outros. No centro dela – sintomático – há um buraco de fechadura querendo informar sem margem para dúvidas qual a metodologia utilizada na confecção da javardice.
Cada um sabe as linhas com que se cose e Saraiva sabe-as bem. É sua a escolha acanalhada. Diz que aborda a vida sexual dos escolhidos. O que já é reles; mas faz pior: põe na boca de pessoas já mortas afirmações por certo mentirosas que as falecidas citadas não podem desmentir ou defender-se – nem com uma mesa de pé-de-galo. O biltre sabe-se assim impune e escreveu certamente com os pés carregados de chulé as sacanices que me dizem recheiam o livreco. Em resumo, a juntar às outras “qualidades” também é cobarde.
Porém, como é sabido, toda a moeda tem duas faces: no caso presente o anverso é Saraiva e o reverso é Passos Coelho. Isto porque o (ainda) líder do PSD iria apresentar a obra convidado pela Gradiva editora do insulto. Um seu assessor declarou ao “Público” que “O Dr. Pedro Passos Coelho aceitou o convite mesmo antes de ler o livro. Este convite foi aceite tendo em conta a admiração que o Dr. Pedro Passos Coelho tem pela carreira e pelo papel que o arquitecto José António Saraiva desempenhou e desempenha no jornalismo português". De seguida, Coelho insistiu na sua decisão. "Não sou de voltar com a palavra atrás nem de dar o dito por não dito. Estarei a fazer a apresentação dessa obra".
Mas o “não sou de voltar com a palavra atrás nem de dar o dito por não dito” foi mesmo mandado para trás e dito por não dito e mandado às urtigas. Coelho veio dizer que já não apresentava a bosta. Vai, vai, não vai. Passos até parece um vaivém especial. Já se sabia que o homem era mentiroso e especialista em inventar; foi-se sabendo que era produtor da desgraça, promotor do alarmismo, em suma o velho/novo do Restelo, melhor dizendo da Rua de São Caetano à Lapa. Mas desta feita soube-se que era um perito em dar tiros no pé (dele), utilizando de preferência como arma um míssil intercontinental.

O (re)aspirante a São Bento, à austeridade e ao resgate assim não vai lá. Muita gente que o apoiou - e que o endeusou – já torce o nariz: se o gajo é capaz disto, é capaz de muito mais. E é.

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