No "Correio de Lagos" de Abril de 2022
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II — QUANDO eu vim ao mundo, já a minha madrinha tinha ultrapassado os 50 anos de idade, pelo que sempre a vi como uma simpática velhinha como as dos livros infantis: infatigável leitora e contadora de histórias, solteirona, de óculos de aros dourados e cabelos prateados apanhados em puxo, apoiando-se numa inseparável bengala, e vivendo com uma modesta reforma de professora primária. Como se imagina, uma pessoa assim só podia ter uma vida extremamente regrada, pelo que nunca estranhei os seus muitos caderninhos de capa preta onde anotava, com uma caligrafia impecável e sem uma única rasura, receitas de cozinha, moradas e telefones, datas de aniversário, curiosidades de todo o tipo, anedotas... e também, obviamente, as despesas do dia-a-dia, fossem grandes ou pequenas.
Ora sucede que, como era frequente nessa época, morava com ela uma empregada doméstica, daquelas que começavam “a servir” ainda muito novas, vindas da província, na sua maioria analfabetas e que, com frequência, ficavam na mesma casa até morrer — era a senhora Salomé, de que me lembro perfeitamente: sempre de avental e chinelos, e também ela de cabelos grisalhos enrolados em carrapito, era infatigável e eficiente mesmo quando a idade já lhe pesava — e foi assim durante décadas, porque as duas senhoras, vivendo sozinhas e fazendo companhia uma à outra, se davam como Deus e os anjos.
Porém — e como “não há bela sem senão” — havia um problema que quebrava a harmonia doméstica: é que a senhora Salomé era incapaz de desligar o gás do fogão quando não estava a ser utilizado, de nada valendo pedidos nem ralhos de quem pagava a respectiva conta. Até que um dia, vendo a minha madrinha que as chamas do fogão, de tão altas, até iluminavam tudo em redor, pegou numa nota de 20 escudos e, como se fosse a coisa mais natural do mundo, disse à outra que a queimasse num dos bicos — pois, no fundo, era isso que estava a suceder.
É fácil de imaginar a perplexidade da boa velhinha, mas o certo é que, mesmo sendo uma pessoa sem instrução, percebeu rapidamente onde a patroa queria chegar — e, também nesse caso, foi remédio-santo: a nota não foi incinerada, e a conta do gás, lá em casa e partir desse dia, baixou sensivelmente.
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A PRIMEIRA história vem-me sempre à mente quando vejo, por esse país fora, que há quem deixe a iluminação — nomeadamente a da via-pública — acesa durante todo o dia, ou desperdice a preciosa água em regas absurdas, quantas vezes com ela a correr directamente para o alcatrão, e daí para as sarjetas, a caminho do mar — até mesmo (acreditem!) em dias de chuva!
A segunda veio-me à memória, por associação de ideias com o problema do gás russo — gás esse que a nossa “sociedade de consumo” trata (à semelhança do que faz com o carvão e o petróleo) como se fosse infinito, e que corre, abundante, de Leste para Oeste, enquanto o respectivo pagamento viaja em sentido contrário; e é assim que estamos na bizarra situação de ver uns quantos países a apoiar, com dinheiro e armas, UM DOS LADOS do actual conflito, ao mesmo tempo que, com o que pagam pelo combustível que não dispensam, apoiam o lado OPOSTO — encenando uma rábula que não destoaria no livrinho onde a minha madrinha anotava os factos absurdos, ou mesmo naqueloutro onde registava as anedotas.
Etiquetas: CMR, Correio de Lagos
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