25.6.17

Sem emenda - Um Parlamento trivial

Por António Barreto
A Agência Europeia do Medicamento poderá vir para Portugal! A saída da Grã-Bretanha da União tem consequências destas. Organismos estabelecidos no Reino Unido serão deslocados. Dezenas de empregos apetecíveis serão criados noutros países. Muitos funcionários sairão de Inglaterra. Centenas de funcionários britânicos deixarão Bruxelas, Estrasburgo, Luxemburgo e outras localidades onde existem representações. Em vários países, por efeitos do despedimento de britânicos, abrirão vagas e empregos. Percebe-se. É uma maneira de castigar os irreverentes e de favorecer os disciplinados. Também é verdade que mal se compreenderia que uma agência não estivesse sediada num país membro. Cargos até hoje ocupados por ingleses ficarão acessíveis à competição: muitos são os técnicos e os cientistas, indivíduos e empresas, que se preparam para colher os despojos. Uns casos serão decididos por mérito e concurso, outros pela família ou o partido.

Há, na União, dezenas de instituições que desempenham funções importantes e beneficiam de elevados orçamentos e de quantidades de pessoal qualificado. Todos os países querem ter organismos destes dentro das suas fronteiras. Os mais poderosos conseguem os melhores. Uma dúzia de países lançou-se atrás da Agência do Medicamento. A sede fica num prestigiado centro de edifícios modernos, em Canary Wharf, Londres. Trabalham lá 800 funcionários de elevada competência técnica. O organismo tem a tutela, por assim dizer, de umas dezenas de instituições nacionais que tratam dos medicamentos e das indústrias farmacêuticas.

Já há dezoito candidatos, entre os quais Barcelona, Paris, Amesterdão e Milão. Assim foi que o governo e o parlamento decidiram candidatar Lisboa à localização da agência. Tudo corria bem, até que surgiu a polémica. Então e o Porto? A resolução votada no Parlamento era explícita: Lisboa! Os deputados não viram. Ou não se deram conta. Ou não perceberam. Ou foram obrigados a mudar de posição. Algo aconteceu. Os chefes partidários, os deputados de várias cidades e os organismos locais dos partidos acordaram! Pensaram nas autárquicas. Na descentralização. Nas regiões. Uns mudaram de opinião e disseram, outros mudaram e não disseram, outros ainda não mudaram… Dias depois, com o coração apertado pelas autárquicas, o governo decidiu reabrir a hipótese de outras cidades, isto é, do Porto. E até o Primeiro-ministro afirma que foi enganado! Sobra a questão: o que se passou para que uma unanimidade fosse posta em causa em tão poucos dias por tanta gente? Como foi possível?

Pense-se num dia de votações no Parlamento. Veja-se como aquilo funciona e percebe-se que tudo é possível. São listas de votações automáticas, umas seguidas às outras, para que ninguém falte e não haja surpresas. A música é conhecida e vê-se bem no “Canal Parlamento”. Resolução número tal, projecto de lei número tanto, proposta disto e daquilo, quem vota contra, quem aprova, quem se abstém, está aprovado pelos partidos tal e tal, rejeitado pelos partidos assim e assado. Quando o presidente pergunta quem vota a favor e contra, de cada grupo levanta-se um senhor ou senhora, é como se todos se levantassem, não há indivíduos nem pessoas, não há deputados nem representantes, há unidades colectivas, regimentos e claques. Voto sindicado e obediente. Vota um por todos.

O voto sobre a Agência Europeia do Medicamento é a demonstração da falta de liberdade e independência dos deputados, que verdadeiramente o não são, antes parecem funcionários. Um ou outro desses senhores, nomeadamente de Lisboa e arredores, sabia vagamente o que estava a votar, tinha lido na diagonal a resolução em causa, sabia que Lisboa era a cidade candidata do governo. A maioria dos deputados não fazia a mínima ideia do que votava, não lhe interessava o assunto e só despertou quando lhe disseram que assim podiam ganhar ou perder as autárquicas. 


DN, 25 de Junho de 2017

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2 Comments:

Blogger SLGS said...

Sempre muito lúcido, objectivo e contundente. Contundente porque é preciso dizer a verdade, a maioria dos nossos deputados (nossos representantes?) estão lá ou por favor do partido ou por promoção social, não se inibindo de ser autênticos "yes men" em total espírito de carneirada. Como no texto é muito bem sugerido, não sabem muito bem o que lá andam a fazer, nem se interessam pela defesa dos círculos eleitorais que lá, também carneiristicamente, os puseram. Para eles interessa-lhes a exibição, o disfrutar das benesses do lugar (estatuto social, benesses fiscais e outras, ajudas de custo relevantes e, quando não há direito a elas dá-se um jeito para que o direito aconteça, viagens pelo mundo à custa da AR, sem se saber muito bem o que se vai fazer, etc. etc. etc.) e ser o SR. Deputado. Poderemos alguma vez ter oportunidade de votar em pessoas nominalmente por nós escolhidas? Continuarão os Partidos a ter a faca e o queijo e a dispor de todos nós como muito bem entendem? Já fui mais crente.

25 de junho de 2017 às 15:51  
Blogger José Batista said...

Concordo com o texto e com o comentário de SLGS.
E, além disso, também com fundamento no que referem, penso que o número de deputados devia ser significativamente reduzido, entre um terço e metade. A democraticidade e a representatividade não sofreriam qualquer prejuízo, nós conheceríamos os deputados e podíamos responsabilizá-los mais. O inconveniente maior seria termos como representantes uma elite restrita, continuada e autoprotegida, ainda que compensada por serem competentes, desejaria eu...
Agora tantos e tão medíocres...

26 de junho de 2017 às 17:56  

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