Grande Angular - Serviço público
Por António Barreto
Alguns casos recentes trouxeram até nós a sempre actual questão do serviço público. É problema complexo, nas suas várias dimensões: justiça, igualdade e humanidade. E também complicado nos aspectos mais práticos: dimensão, custo, pessoal e organização.
Se olharmos com espírito exigente para a sociedade que nos rodeia, rapidamente veremos a miséria do serviço público. Após décadas de melhoramento constante, verificamos, por um lado, que o progresso foi enorme, mas, por outro, que as deficiências, nomeadamente a injustiça e a ineficácia, são as regras.
Em teoria e na generalidade, quase toda a gente está de acordo. O serviço público deve ser a primeira razão de existir e o principal objectivo dos mandatos políticos. Deve ser exigente, justo, eficiente e estar presente nas principais áreas de vida da comunidade: habitação, saúde, educação, justiça, transportes… Em poucas palavras: nas sociedades modernas, onde há pessoas e comunidades deve haver serviço público. Este destina-se não só a melhorar a nossa vida em comum, mas também a cuidar, com humanidade, dos mais vulneráveis e carentes… Não se trata evidentemente de afirmar que os outros não necessitam de tudo isso, justiça e humanidade. Mas há quem necessite mais do que outros. Ou há quem tenha mais dificuldades em aceder ao serviço público. Por isso, este deve ir ter com o cidadão e não o contrário.
Se, na generalidade, reina o consenso, no pormenor e nas escolhas, o desacordo é a regra. Pior ainda: na prática, a realidade é a permanente negação da lei.
A questão dos preços e dos circuitos de comercialização do gás parece um “sketch” de humor. Negro, evidentemente. Não se percebe o que é necessário fazer, quando e onde. Não se entende por que razão, para o mesmo produto e a mesma rede de distribuição, se cobram preços tão medonhamente diferentes. A maior parte das pessoas, está simplesmente desorientada com a situação actual, apenas sabendo que corre sérios riscos de ver a sua factura grosseiramente aumentada.
A distribuição de dinheiro líquido directamente aos cidadãos (os 125€ e mais prestações) é outro bom exemplo do desnorte. A solução é política e socialmente discutível, como todas, felizmente. Mas, tendo em conta que está decidido, falta saber o como. A reduzida literacia financeira e institucional de milhões de cidadãos é a causa de muita perplexidade. As necessidades burocráticas, a exigência de certidões e a obrigação de apresentar números de Segurança Social, de Cartão de Cidadão ou de IBAN eliminam muitas pessoas. Repete-se o habitual: as regras definidas na lei e nos regulamentos estão perfeitas, mas a realidade não cabe nelas. A sociedade tem de se adaptar aos regulamentos, não o contrário. Pessoas sem cartões, sem números ou sem contas bancárias ficam excluídas ou suspensas, a não ser que inventem e contornem. Grande número das situações reais relativamente à paternidade, aos casamentos e aos estatutos familiares, sem falar na situação fiscal e de residência, fica excluído desta distribuição. A não ser que tenha tempo, mobilidade, meios e conhecimentos.
A gratuitidade dos transportes públicos em Lisboa, para jovens com menos de 23 anos e idosos com mais de 65, é outro caso. As dificuldades em aceder, as necessidades de burocracia, a imposição de um cartão renovável todos os meses (mesmo sem custos…) e o número muito reduzido de locais onde se pode tratar da adesão vão criar mais um pesadelo.
Finalmente, as regras relativas aos cuidados de saúde paliativos ou continuados. As disposições legais, relativas à Segurança Social e ao Serviço Nacional de Saúde, parecem excelentes e cuidadosas. Os cuidados a domicílio também estão disponíveis e acessíveis. Na verdade, tudo é de enorme complicação. Inacessíveis. Inexistentes. Indisponíveis. As leis e as regras parecem feitas para outro planeta. O recurso à NET, solução promissora e miraculosa que tudo tornaria mais fácil, é muitas vezes um novo pesadelo. Teoricamente, tudo se pode resolver através do mundo digital. Na verdade, é tudo mais difícil. A não ser que se tenha experiência, conhecimentos, tempo e paciência.
Em todos estes casos e tantos outros semelhantes, as regras essenciais da filosofia e da política do serviço público estão em crise de modo permanente. As dificuldades de acesso são enormes. A burocracia é pesada e exclusiva. Há uma grande desigualdade prática e efectiva. A proximidade, palavrão político de todos os dias, é inexistente. A transparência, outro lugar comum, é uma ilusão.
Certidões, atestados, códigos de acesso…. Só quem nunca passou por estas andanças imagina o que pode ser o martírio, a burocracia e a espera. Os serviços exigem porque desconfiam dos cidadãos. Os “sites” dos serviços são óptimos exemplos de falta de clareza e de dificuldade. É provável que os mestrados em informática se desenrasquem, mas essa não é a maioria da população. Perdem-se horas e dias. Telefona-se e ninguém atende. O “site” remete para o telefone, o telefone remete para o “site” …
Importa ainda referir os serviços e as empresas privadas que hoje, com a ajuda das autoridades, dominam os cidadãos, os condicionam, tantas vezes os enganam, os convencem a “fidelizar” por uns anos, naquela que é a mais importante receita de aldrabice, o estímulo à vigarice e a autorização para, com protecção legal, enganar os consumidores! Estas empresas, que alteram unilateralmente os contratos, fazem o que querem dos seus clientes, trabalham sobretudo nas áreas das telecomunicações, da electricidade, do gás e da água.
O rol da desumanidade é infinito. Longas filas para as consultas médicas, análises, cirurgias e serviços de enfermagem, além da Segurança Social e do fisco. As horas passadas ao telefone, com música estridente, à espera que nos atendam. A permanente invocação da transparência e da proximidade, lugares-comuns de quase todos os políticos, mas evidentemente uma mentira colectiva. As alterações contratuais sem aquiescência dos cidadãos. A criação ou imposição de taxas de toda a espécie. A falcatrua da “fidelização”, verdadeira armadilha para os incautos.
Já se pensou que de tudo isto quem mais sofre são os menos competentes informaticamente, os que têm menos conhecimentos e menos “contactos”? Será que as autoridades já gastaram uns minutos a ouvir quem procura e não consegue, quem espera e não alcança?
O maior teste do governo e das instituições democráticas é o do serviço público. Da sua humanidade.
Público, 10.9.2022
Etiquetas: AMB
1 Comments:
«cuidar, com humanidade, dos mais vulneráveis e carentes» Pois, como os miseráveis de Vitor Hugo:
Como os sem abrigo na Av da Liberdade. Um amigo hoje na SS, experiência SA, depois de pedido Pensão de reforma início de Abril: quando recebe, disseram volte em Abril 2023; pergunta pelos 125 euros do Outubro da salvação Costa & Marcelo-Zero, de acordo com o registo de vida (previsto pensão perto de mil euros, recusada pensão antecipada) desemprego de longa duração, inscrito IEFP Benfica há dois anos. Aleluia Dr Costa.
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