20.8.22

Grande Angular - Um Verão violento

Por António Barreto

Um dia, mais tarde, recordaremos talvez este Verão de rara violência e de perigo iminente. Estranhamente, mas talvez fosse previsível, a população de muitos países, europeus nomeadamente, parece querer gozar os dias e as férias sem preocupação excessiva. Ou porque já se entende que dois ou três anos foram de mais. Ou porque nem sempre se mede a convergência de perigos e a conjugação de ameaças. Ou, finalmente, porque se trata das melhorias antes da desgraça. Do descuido que precede o desastre.

Basta olhar para os noticiários das televisões. Durante as últimas semanas ou meses foram o exacto espelho das tragédias e dos perigos. Os alinhamentos só dependem do dia da semana ou da semana do mês. A sequência é variável.

Os bombardeamentos na Ucrânia não diminuem, antes pelo contrário, com cidades destruídas, bairros e prédios civis derrubados. Entre cinco a dez milhões de ucranianos já fugiram para o exílio em outros países.

Os fogos florestais, apesar de previsíveis e previstos, não cessam enquanto houver calor e não chegue chuva. São dezenas de milhares de hectares perdidos, juntamente com animais, casas, fazenda e equipamentos. Pela Europa fora (e pelos Estados Unidos), são centenas de milhares ou milhões de hectares perdidos. O clima não explica tudo. Responsabilidades humanas e incompetência das autoridades ajudam.

Continua a pandemia, lentamente, em decréscimo aparente, mas ainda com dois ou três milhares de casos por dia. No total, foram valores altíssimos: só em Portugal, quase 5,5 milhões de casos e perto de 25 mil mortos. Na Europa, 200 milhões de casos e dois milhões de mortos. E no mundo, mais de 500 milhões de casos e seis milhões de mortos. Apesar dos progressos da ciência, da medicina e da protecção civil. Não há memória de nada de parecido, em tão pouco tempo, no último século. E ainda não acabou.

O Serviço Nacional de Saúde, resistente até onde foi possível, entrou em colapso. Em muitos hospitais e maternidades as urgências de obstetrícia e ginecologia fecham uns tantos dias por semana. Esses dias já são anunciados previamente. Um dos mais seguros pilares do Estado Social está em crise, treme e oscila. É um dos sinais mais desoladores da má gestão e da incapacidade das autoridades. 

Os aumentos dos preços dos produtos alimentares e de bens essenciais registam todos os dias valores desconhecidos há várias décadas. Já não são apenas queixumes e impressões. Agora há a certeza de que a inflação e a subida de preços, sem o correspondente aumento de rendimentos, estão a degradar a vida das populações, sobretudo, como sempre, os pobres, os remediados, as classes de trabalho e até as classes médias. Em menos de um ano, os melhoramentos de vários anos desapareceram e não é seguro que seja possível repor a breve trecho.

De fora, longe, chegam só noticias de alarme. Não vale a pena fingir que não é verdade. Nem pensar que há uns pessimistas que exageram. Não! Desta vez, o mal é universal, os perigos são enormes, as ameaças fatais e o medo colossal. Todos os grandes mercados e comércios estão parcialmente desmantelados. Os da energia, da electricidade, dos petróleos, do gás e do carvão. Mas também os dos produtos alimentares, sobretudo dos cereais.

Mundialmente, a crise económica, energética e alimentar está a provocar vítimas em números quase inimagináveis. Na África oriental, vários milhões de pessoas vão morrer de fome e doença no mais curto prazo. No mundo inteiro, cerca de 400 milhões de pessoas necessitam urgentemente de ajuda humanitária. Para o que não há, aparentemente, meios, clima, infra-estruturas, transportes, vontade, cooperação internacional e decisão eficaz.

Ricos e poderosos não querem abrir as mãos. Pelo contrário, parecem estar convencidos de que o momento é propício a aumentar os poderes e a multiplicar bens e fortunas. Há crescentemente histórias de miséria e de multidões esfomeadas. E é cada vez mais difícil organizar a filantropia, gerir a protecção e acudir a quem necessita. Em ambiente de crise e guerra, a ajuda humanitária é difícil.

A Rússia de Putin destruiu a configuração mundial existente. O ditador quer substitui-la por outra, na qual a sua Rússia tenha papel determinante. É o que está a fazer, sem escrúpulos e com toda a violência de que é capaz. O que sobrar, depois do que ele fizer, não voltará a ser o que era, nem sabemos o que será. Mas vai demorar anos, muitos, a encontrar um novo equilíbrio mundial de cooperação. Não sabemos, hoje, a que preço e com que custos de vidas humanas, de países, de instituições, de liberdade e de paz. O especial talento de Putin é o que se vê no exercício ou na utilização da mais bárbara violência sem remorsos nem moderação. E no desrespeito da lei internacional. Para Putin, a violência, a imposição e a força bruta são os primeiros argumentos, não os de defesa, de último recurso ou de derradeira necessidade. O mundo vai ter de viver com esta realidade durante muito tempo. As alianças que Putin procura, na China, na Índia, no Irão e algures na Ásia e na África, dispensam todas as liberdades e a democracia. Não é por acaso que, para lutar contra o Ocidente, Putin procura entre ditadores e autoritários os possíveis companheiros de jornada. Resta-nos uma sombra de esperança ou de optimismo: nunca a Rússia, a Índia e a China se entenderam por períodos duráveis e interesses comuns. Para já, querem ter um lugar à mesa. Mas, neste trio, há sempre dois a mais.

São tempos de pagar por erros passados. Os democratas do mundo inteiro confiaram excessivamente em si próprios, não trataram dos que sofrem, deixaram crescer a desigualdade social e não cuidaram das migrações. Não se importaram com a corrupção dos seus sistemas de governo e deixaram que a política democrática se transformasse numa actividade suspeita e duvidosa. Ajudaram às deslocações de empregos e indústrias, fizeram negócios com o diabo e foram complacentes com o terrorismo. Não recearam os totalitários, desde que fizessem negócios com eles. Entregaram-se nas mãos dos produtores de petróleo e gás e dos fornecedores de força de trabalho barata.

Além de recuperar a vida e a tranquilidade. Além de voltar a encontrar algum bem-estar económico. Além de procurar equilíbrio social no espaço público, além disso tudo, que não é pouco, importa recuperar a paz política, o clima de diálogo e um esforço de cooperação. Mas, sobretudo, procurar com democracia e liberdade. Ora, de todo o mundo, chegam apelos e movimentos de extrema-esquerda e extrema-direita que procuram aproveitar os erros das democracias. Fazem parte da crise, não a resolvem.

Público, 20.8.2022

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