16.1.24

DAS MEZINHAS E REZAS AOS FÁRMACOS

Por A. M. Galopim de Carvalho

Um tema antigo, bem gravado na memória, é o das enfermidades e dos meios com que se procurava dar-lhes combate. Nos curtos anos da minha infância e adolescência pude assistir à substituição das mezinhas e dos remédios manipulados na farmácia pelos fármacos produzidos industrialmente. É claro que não conheço o suficiente de história da medicina e da instituição farmacêutica que me permitam abordar este tema em moldes minimamente fundamentados. Mas o que eu posso e sei fazer é relatar o que, neste domínio, se passava nesse tempo, no seio da minha família. 

Constipações, amigdalites, otites, gripes, sarampo, varicela, papeira e disenteria, embora com nomes diferentes, tudo isso andou lá por casa, tocando todos os filhos. Falava-se, de anginas, de dores de ouvidos, de bexigas doidas, de dores de barriga, tudo situações que a mãe ultrapassou, por si só ou com a ajuda do médico, mas sempre com muita fé, velas e promessas de cera ao Senhor Jesus dos Passos e muitas rezas a Nossa Senhora e às duas santas da sua devoção: Santa Rita e Santa Teresinha.

Uma purga com óleo de rícino ou um clister eram coisa certa sempre que aparecíamos com febre. Dizia a mãe que serviam, antes do mais, para limpar os intestinos. Vinham, depois, consoante os casos, os papelinhos de criogenina, para baixar a febre, as fricções com vinagre aromático ou com álcool canforado, o algodão iodado ou os emplastros de papas de linhaça e mostarda, a escaldar, colocados sobre o peito. Se doíam as costas pincelavam-se com tintura de iodo ou aplicavam-se meia dúzia de ventosas.

Nas dores de ouvidos, e quão fortes eram, a minha mãe procurava dar-nos alívio vertendo, lá para dentro, leite levemente aquecido, o que, segundo me lembro, pouco ou nada resultava. As dores só passavam quando a infecção era debelada pelas defesas próprias do organismo. Com as anginas, nome que se dava às amigdalites era a mesma coisa. As correspondentes dores de garganta, a febre e a dificuldade de engolir passavam ao fim do tempo que durava a luta dos leucócitos sobre o agente patogénico. Mas era crença generalizada que as anginas se curavam com as mezinhas caseiras e, assim, besuntava-nos a parte anterior do pescoço, onde se localizavam as ínguas, com pomada de beladona, sobre a qual se passava um lenço de algodão. Em complemento, gargarejávamos com água e sal, chupávamos sumo de limão, engolíamos colherzinhas de mel e fazíamos zaragatoas com azul de metileno. Este último tratamento, feito ao deitar, era aceite como uma brincadeira, porque tingia de verde a urina da manhã seguinte. Ir para a escola com um lenço atado ao pescoço, a cheirar a beladona não era agradável. Mas muito pior era quando o tratamento tinha sido feito com “enxúndia de galinha” que, com o mesmo propósito, era preferida pela minha avó. Esta gordura amarela da ave era guardada numa velha tigela de faiança de Sacavém, onde se oxidava, tornando-se rançosa e mudando a cor para castanho. Era nesta fase de apodrecimento, exalando um cheiro nauseabundo, que este unguento estava, dizia ela, em condições de produzir o efeito desejado.

Na maior parte dos casos estas amigdalites eram passageiras e com ou sem mezinhas acabavam por passar. Havia, porém, situações graves como o garrotilho, designação que se dava à difteria. Esta exigia o recurso ao médico, mas havia uma norma nesse tempo, segundo a qual o doutor só era chamado se, ao fim de três dias, o doente não desse mostras de recuperação, em resposta aos tratamentos caseiros. Por vezes, este tipo de procedimento tinha consequências fatais. Isto aconteceu com um meu vizinho e colega de escola, vítima desta angina má. O estado da doença causada pelo Corynebacterium diphtheriae não cedeu ao soro que lhe foi ministrado tarde demais. Foi a consternação na minha rua. Morrera um menino. Passados dois ou três dias sobre este trágico desfecho, comecei com dores de garganta e muita febre. A minha sorte foi o estado de alerta em que a minha mãe ficara, o que a fez chamar, de imediato, o nosso médico. Foi já amodorrado na cama, cheio de febre, que vi surgir, na porta do quarto, o Dr. Fonseca, pai. De farta bigodeira branca, a chegada do velho clínico confirmou os meus receios, afinal, os mesmos da minha mãe. Experiente destas situações, ela já tinha ali, à mão, uma toalha de linho destinada à auscultação. Não havia ou, se havia, ainda não se usava estetoscópio. O paciente, de tronco despido, era coberto por este pano que a tradição e o brio da dona da casa mandavam que fosse branco e se apresentasse sempre muito bem passado a ferro. Com esta toalha de permeio, o médico encostou-me o ouvido às costas e ao peito, mandando-me respirar fundo, parar de respirar, tossir e dizer trinta e três, à medida que ia procurando, em audição directa, as respostas dos meus pulmões. Observou-me depois a garganta com o cabo de uma colher a servir de abaixa-línguas, e a sua conclusão, dita à minha mãe, numa voz descontraída que deu para eu ouvir perfeitamente, foi:

- Temos aqui, dona Adília, um caso de angina diftérica.

Face a esta afirmação, recordo, afundei-me resignadamente nos lençóis, convicto que teria o mesmo fim do Cardoso, o meu colega acabado de enterrar. Pouco depois da saída do médico, entrou a menina Rita, a enfermeira que habitualmente nos assistia, para me injectar o soro e, assim, as imunoglobulinas do fármaco inactivaram as toxinas produzidas pela bactéria, mas encheram-me de urticária, situação que se resolveu depois com um antiestamínico (Anafilarzan).

Foi um tempo em que a única vacina era a que se dava contra a varíola, enfermidade grave, tantas vezes fatal, conhecida por toda a gente por bexigas, pois deixava os poucos que lhe sobreviviam marcados pelas inúmeras pequenas cicatrizes das vesículas pustulentas espalhadas por todo o corpo, particularmente visíveis no rosto.

Uma entorse, por exemplo, num artelho ou num pulso resolvia-se, via de regra, com escaldões num alguidar com água quase a ferver onde se dissolvia um punhado de sal. Aí se mergulhava o pé ou a mão e parte do antebraço, procurando resistir ao intenso calor, o tempo considerado necessário. Por último apertava-se a articulação com uma ligadura, no sentido de a imobilizar e reduzir o inchaço. Depois era esperar uns dias até o incómodo passar. Nos casos mais difíceis de resolver por esta via, a mãe recorria a uma vizinha tida por muito virtuosa, para que ela “cosesse o torcegão”. Conheci a virtude desta senhora uma vez em que, correndo no Largo dos Penedos, torci um pé no sítio do tornozelo. Chegado a casa dela, levado pela minha mãe, a senhora mandou-me sentar à sua frente, numa cadeirinha baixa, pegou-me no pé magoado e ajeitou-o sobre os seus joelhos. A seguir tirou-me a ligadura, encostou um novelo de lã cinzenta à zona mais inchada e começou a “cosê-lo” com uma agulha grossa onde enfiara um pedaço de lã do mesmo novelo, sem o habitual nó na ponta do fio. A agulha e o fio iam entrando e saindo ao ritmo de uma reza, dita em surdina, para mais ninguém ouvir. Recebida da mãe à hora da morte, guardá-la-ia consigo enquanto vivesse e só ao sentir-se morrer a transmitiria à mulher que ela entendesse merecer tal virtude. A intervalos de tempo, como se de um refrão se tratasse, perguntava em voz bem audível.

—  O que é que eu coso? – e a minha mãe respondia, por mim.

—  Carne quebrada, nervo torto. – E a senhora confirmava – “Isso mesmo é que eu coso”.

Terminada a cosedura, repôs-me a ligadura e recomendou-me repouso e mais uns escaldões. O incómodo acabou por passar e tudo voltou ao normal alguns dias depois. Habituada que estava na assistência à doença, numa casa de família com seis filhos, a minha mãe passou a assumir, sempre que necessário, o papel da virtuosa senhora. Não conhecendo a tal reza, substituía-a por Padre Nossos e Avé Marias, com idêntico bom resultado. Em sua muito convicta opinião, o que contava era a fé com que se rezava.

 

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