AVES DO MEU BANDO
Por Joaquim Letria
Não sei se é do avançar dos anos mas, ultimamente, dou comigo a recordar figuras, encontros e outras circunstâncias que andam desarrumadas pela minha memória. Em alguns casos, rebobino perfeitamente as recordações, viajando por elas com total nitidez; noutros fico-me por uma vaga ideia, tipo pintura de Noronha da Costa, mas no conjunto distraio-me tanto como se tivesse ido a uma matinée de cinema com filmes a preto e branco. Reparo que a morte de amigos e conhecidos íntimos, como é hoje o caso, me ajuda a escolher quem vou recordar. E ultimamente tem sido uma razia de tal ordem que parece andar alguém de caçadeira em punho a atirar às aves do meu bando.
Conheci José Fernandes Fafe era eu ainda um adolescente mal amanhado, prestes a converter-me num homenzinho a caminho da vida. Foi o meu primo Jorge Vieira, o escultor, quem me apresentou aquele senhor de ar e voz graves, sorriso fugaz e olhar arguto que me dedicou a atenção devida a um rapazinho como eu, então, era.
José Fernandes Fafe e Jorge Vieira eram vizinhos em vivendas contíguas e amplas de Cascais de há 50 anos. Percebi pelas meias palavras do meu primo e pelo empenho com que ele queria que eu o conhecesse, que José Fernandes Fafe era um homem notável e, para mais, um democrata, o que na ditadura não era muito frequente encontrar-se em encontros ocasionais e fortuitos como estes, entre nós três, aconteciam ser.
Estava eu então muito longe de imaginar que as nossas vidas se viriam a cruzar em encontros de amizade e reuniões profissionais. Impossível, ainda mais, pensar que mais tarde o visitaria nas suas residências de embaixador de Portugal respectivamente em Cuba, Cabo Verde e no México, e que nos desencontraríamos, tendo eu perdido a oportunidade de estar com ele também em Buenos Aires.
Reencontrei o Dr. José Fernandes Fafe nos atavios de produzirmos, com qualidade, parte do “Diário de Lisboa”, vespertino respeitado e independente que um e outro nos empenhávamos em fazer, cada um na sua função, todos os dias, semana após semana. Ele como mentor e director do suplemento semanal “Mesa Redonda”, 8 a 12 páginas de ensaios, sociologia e política que eu acabava a organizar e a paginar, no âmbito de coordenador dos suplementos do jornal. Estreitámos aí e assim o nosso conhecimento mútuo e, porventura, a nossa amizade.
Nos tempos das vivendas em Cascais, eu era um apanha-bolas e ele, para mim, o maior craque do mundo. Era assim que o via, eu a tentar vir a ser jornalista, escrevinhando à condição pequenas críticas a jogos de juniores e da terceira divisão para as páginas pares do “Mundo Desportivo” e ele ensaísta, poeta e romancista, articulista e escritor regular dessas pedras angulares da resistência séria e democrática que eram as revistas “Vértice” e “Seara Nova”. Por aqui se pode imaginar o que significou para mim colaborar com o Dr. José Fernandes Fafe.
A vida é cheia de idas e voltas, por isso fiquei muito contente quando após a sua função diplomática reencontro o embaixador Fernandes Fafe no Instituto Damião de Góis, organismo muito próximo da Presidência da República de Ramalho Eanes, que tinha grande consideração pelo antigo diplomata político que viria ainda a desempenhar funções de Embaixador itinerante para os países africanos.
Poder-se-á medir a esporádica relação que mantivemos ao largo da vida se aqui citar um discreto, tranquilo, simples e gostoso almoço no Alentejo promovido pelo seu filho José Paulo Fafe, ex-jornalista e actual marketeiro político na América Latina e África, com quem mantenho até hoje uma velha amizade.
Porém, se quisermos aquilatar a humanidade e as preocupações deste homem, saído da Universidade de Coimbra, autor de cerca de 20 livros, considerado o melhor biógrafo de Fidel Castro, com quem se deu, ou autor duma interessante biografia de Che Guevara, publicada na Mondadori, de Itália, sob pseudónimo, permitam-me que evoque um almoço, antes da sua partida para o México, para o qual convocou João Soares Louro e a mim próprio, ambos inquietos quanto ao objectivo. Descobriríamos após o café:
“Eu juntei-os para pedir a ambos que olhem pelo meu filho José Paulo. Eu sei que ele vos ouvirá e eu não vou cá estar”.
Estive na capela mortuária da Igreja de S. João de Deus a despedir-me do embaixador José Fernandes Fafe. Ali assisti à comovente despedida de seus netos e acompanhei a dor de seus filhos, em particular a de José Paulo Fafe. E num daqueles momentos em que ficamos poucos, por ser a altura de aproveitarmos e irmos “comer qualquer coisa”, pareceu-me que o embaixador, no seu leito de morte e com o seu humor peculiar, me sorriu brevemente para me dizer:
“De vocês todos já eu me livrei ”.
Publicado no Minho Digital
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