11.5.07

Um exercício de solidão

DURANTE CERCA DE TRÊS HORAS, os dois homens conversaram em voz baixa e pausada. Abriam pacientemente as ostras com uma espécie de espátula e bebiam flautas de champanhe, guardando ambos um ar compenetrado de quem discute importantes questões.
As conchas vazias eram lançadas em baldes de plástico negro que silenciosos empregados substituíam, com regularidade, por outros vazios.
- O Poder não se partilha, o Poder não se cede. Quem detém o Poder deve conservá-Io, quem não detém o Poder deve tentar conquistá-Io – disse aquele que dos dois era seguramente o mais velho e que, bebericando aquele rosé fin de siècle era, decididamente, o anfitrião.
- A questão é saber o que fazer do Poder – retorquiu o outro, mais jovem, nos primeiros anos da casa dos quarenta. - O que fazer do Poder quando este se detém, de modo a reforçá-Io e, através dele, transformar as coisas da melhor maneira, para que a maioria disso possa beneficiar, se esse é o objectivo.
O mais velho, hirto no seu fato cinzento de risca branca estreita, levantou-se e caminhou vagarosamente até à balaustrada da varanda, com passo mais jovem do que se poderia esperar dos sessenta e tal anos que aparentava; olhou o jardim, que ficava em baixo, abriu os braços para pousar as mãos afastadas sobre o mármore ainda quente do sol do dia, e de costas para o seu interlocutor disse:
- O Poder, meu caro, é solidão. Nada mais do que um penoso exercício de solidão.
- Certo – retorquiu o mais jovem, levantando-se e agarrando no seu copo esguio. - Também viajar é um exercício de solidão, é como se nos movêssemos numa cápsula transparente à volta da qual gravitam seres de outros sistemas. E mesmo quando há contacto, estamos sós.
- Mas viajar é deixar os amigos em alguma parte. É separarmo-nos deles por um tempo limitado. Exercer o Poder é outra coisa: é sacrificar amigos, desconfiar de amigos, não contar com ninguém que nos possa ser leal, senão por qualquer dependência ou interesse. Exercer o Poder é atravessar um oceano sem instrumentos e sem valer de nada olharmos para trás.
- Nem recorrer às estrelas... – murmurou o mais jovem com um sorriso céptico. Pousou o copo na balaustrada, fechou a mão e ficou-se a olhar para as unhas cuidadosamente polidas, absorto nos seus pensamentos
- Vamos comer agora um pouco de carne, vamos para dentro e comemos um pouco de carne? - perguntou o mais velho, dispondo daquela casa magnífica.
- Não. Vou deitar-me. Tenho um avião a apanhar amanhã cedo e ainda um longo voo num dia que também vai ser longo.
- Homem, só um pouco! Tenho uma reserva de quarenta e oito...
- Peço-Ihe que me desculpe. Mas não conseguiria beber mais e se bebesse não sei como acordaria de madrugada. Agradeço-Ihe a oferta, mas a resposta é não.
- Vê como Poder é solidão?
Riram os dois e, a par, abandonaram, o terraço entrando no amplo salão de belas tapeçarias flamengas, a cobrirem as pedras rugosas da parede.
- O Poder também é isto – disse cinicamente o quarentão –, e isto custa largar.
- Não é só isso. É isto que conforta o recluso. Deixa de ser bom gosto e inteligência para se transformar em liturgia. A solidão arrefece-nos, o rito acaba por nos dar força, perante os outros, mas sobretudo perante nós próprios.
- Este é o meu corpo, este é o meu sangue.
- Até amanhã.
- Até amanhã e obrigado.
O seu motorista agarrou-lhe a pequena mala no fundo da escada do avião, sob a chuva miudinha.
- Fez boa viagem, senhor?
- Óptima. Vamos para o gabinete. Vou trabalhar até tarde. Deixe-me depois lá o carro pequeno, para eu regressar a casa, e amanhã não preciso de si.
A sala, austera, estava semiobscura. Apenas o candeeiro da mesa de trabalho iluminava os papéis e, por baixo da porta, entrava uma barra mais clara de luz branca, da sala da secretária, onde se ouvia a surdina do teclado electrónico da máquina de escrever.
Acendeu um pequeno charuto, olhou o óleo pesado que na parede mostrava uma cena de batalha naval, puxou para os ombros os elásticos dos suspensórios e, a caminho da casa de banho, disse para a sala do lado:
- Carimbe todas as folhas com «Multo secreto». Dói-me muito a cabeça. Este fim-de-semana deixe na telefonista os números onde a posso encontrar em caso de necessidade. Quando terminar, envie um estafeta nosso com isso. Vou sair da cidade, mas fico na quinta o tempo todo. Até segunda-feira se não houver nada antes.
Desceu directamente à garagem, o carro pequeno e anónimo tinha as chaves na ignição, o depósito atestado. Quando saiu o portão, o guarda fez-Ihe a continência e a cinza do charuto caiu-lhe nas pernas das calças.
Acordou com o cheiro de café fresco e de mel.
- Liga-me o rádio. Está quase nas notícias.
- E agora as notícias... primeiras Informações indicam a possibilidade de um golpe de Estado em... os aeroportos estão fechados e todas as comunicações com o exterior cortadas. Últimas notícias conhecidas numa capital de um país vizinho indicavam que o presidente se encontraria em poder dos rebeldes.
Desligou o rádio, sem tomar banho ou barbear-se, vestiu um fato de treino que tirou do armário, desceu a escada a dois e dois, passou pela empregada no átrio, assobiou pelo cão, abrindo a porta da rua.
- Se telefonarem, chame. Estou lá fora a correr com o cão.
E segurou carinhosamente a cabeça do setter irlandês contra o seu peito, retribuindo a amizade dos saltos do animal, sorriu e disse-Ihe baixinho, soprando-lhe o focinho húmido.
- Vamos brincar, Tom. De facto, ele tinha razão: o Poder é um exercício de solidão.

Lisboa, 1987

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