30.11.07

Banda Desenhada

FOI GANHANDO SUCESSIVOS COMBATES. Para cada um deles entregava-se a uma longa preparação, suava dentro de plásticos, saltava a corda, corria, dava murros no ar. Depois, descansava, lia ou cortava lenha como um doido, agarrando com as duas mãos cavacas, do tamanho que a cozinheira gostava para o fogão.
Travava quase diariamente longos combates de catorze assaltos, contra os mais díspares adversários, brancos ou pretos, que invariavelmente não chegavam ao fim. KO, KO técnico, abandono - era o registo quase constante da sua carreira, feita a murro, quase sempre na América.
Um alemão, uma vez, resistira-lhe até ao fim, mas a diferença de pontos deu-lhe, na mesma, uma vitória confortável.
A avó, normalmente, dizia que ele havia enlouquecido.
«Não sei onde este rapaz vai buscar estas coisas Ele lá sabe, é assim que se entretém.»
E ele, saltitando da ponta de um pé para a do outro, com um enigmático sorriso, pensava. «Hei-de chegar ao Madison Square Garden. Hei-de ser campeão. E a minha namorada e a minha avó hão-de estar na plateia, e a vizinha que é muito gira estará sentada, sozinha, sofrendo com os golpes que eu apanho, muito bem vestida, com um casaco de peles que eu lhe comprei.»
Imaginava essa vizinha igual à namorada do Mandrake, enquanto a sua própria namorada era a mesma do Luís Euripo. O treinador é que já não pertencia aos quadradinhos - era o senhor Adolfo, do Café Pérola, que sabia de boxe, fora campeão quando era novo e que ele decidira que passava a ser polaco.
Tinha, depois, longos monólogos a duas vozes. Normalmente eram longos diálogos com o seu manager, desabafos com o seu «segundo», confidências de homenzinho à namorada, propostas desonestas à vizinha. No fundo, era a representação do mundo adulto tal qual os quadradinhos lho mostravam, sob a forma de monólogo, com trabalho, ambição, amor, lealdade, pecado e infidelidades.
De uma semana para a outra, fizera quase uma temporada. Viajara nos comboios de costa a costa, combatera uma vez em Paris, descansara, vestido de branco, uns dias de Inverno em Miami, partira lenha como um doido cada vez mais impaciente pelas quintas-feiras, dia de semana em que se publicava a revista dos quadradinhos, onde lia histórias, via bonecos, mas, sobretudo, de onde copiava estilos, apanhava tiques e decorava frases inteiras.
Foi na pesagem para um dos seus combates, pesagem e apresentação à imprensa, que a grande oportunidade lhe surgiu: «Queres combater para o título mundial, com uma bolsa de um milhão de dólares?»
Dissera que sim, sem hesitar, sem consultar ninguém, sem esperar por coisa nenhuma. Afinal, era a primeira e a única grande oportunidade: os avós iam ao cinema, ficava apenas a velha empregada na cozinha, a passar a ferro e a ouvir rádio.
Despachou rapidamente o adversário que tinha que despachar, porque há coisas que têm que ser feitas, partiu para a quinta onde fazia a sua preparação física, deu duas entrevistas, tudo isto das sete às nove da noite, fechado no quarto, onde esperou que os avós saíssem para jantar fora e irem ao cinema, para, depois, ele poder enfrentar o combate que era o desafio da sua vida.
Deu a volta à chave da vetusta sala de jantar, que permanecia encerrada na penumbra ou nas trevas, apenas se animando nas grandes datas, com o seu lustre de mil e uma lâmpadas, os seus cristais, os seus espelhos, as suas pratas - um templo. O único local que poderia para ele representar o Madison Square Garden.
Acendeu apenas uma parte do pesado lustre, tocou devagarinho o gongo de chamar a criada, apenas para verificar se o seu som servia, de facto, para separar cada assalto e foi equipar-se. Voltou com uma cadeirinha algarvia minúscula, de assento de palha e flores amarelas pintadas em fundo vermelho, a qual colocou sobre um dos cantos da mesa de carvalho. Foi para a casa de banho, onde vestiu os calções de ginástica do liceu, pôs as velhas luvas do avô forradas a pele de coelho, calçou um par de meias e pôs pelas costas um roupão turco.
Foi nessa altura que um gangster lhe fez uma oferta para ele perder.
Furtivamente, partiu para a sala de jantar, onde, ao acender todas as luzes do lustre, uma multidão gritou o seu nome. Viu a namorada e sorriu à vizinha, as duas em sítios diferentes na plateia, olhou de esguelha o adversário antes de subir ao ringue e, quando subiu, a grande mesa de carvalho empinou-se lentamente do outro lado, muito lentamente para acelerar de súbito, e ele, numa náusea de quem leva um directo no fígado, já em desequilíbrio, a agarrar-se ao lustre e o lustre a despenhar-se em milhares de vidrinhos, e a mesa a estrondear ao voltar à sua posição, e a instalação eléctrica a estoirar, e a casa nas trevas, e a criada a gritar, na cozinha: «Ai valha-nos Deus!»
Quando o avô voltou do cinema, apanhou uma tareia monumental. Foi a sua primeira derrota: perdeu a bolsa e nunca seria campeão. Fora derrotado por KO, ao primeiro assalto.
Lisboa, 1987

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