A casaca e o camuflado
Por Nuno Brederode Santos
ANUNCIAVAM-SE NEGOCIAÇÕES para parcerias energéticas da Galp com russos e venezuelanos, quando ocorreu o episódio que todos conhecemos. Foi no final da Cimeira Ibero-Americana de Santiago do Chile, não se encontrando já presentes nem Cavaco nem Sócrates. O "bolivariano" Hugo Chávez, naquele estilo inconfundível que é feito da falta dele, brindou Zapatero com uma sonora heresia diplomática. O Rei Juan Carlos, fazendo do Bourbon o refém de um súbito rancor plebeu, lançou-lhe aquele último olhar de Pizarro a Atahualpa e desferiu o já famoso "por qué no te callas?". Entre nós - já que na Venezuela e em Espanha isso era inevitável - alguma gente de direita e outra tanta de esquerda quis ver aqui, se não a ressurreição, pelo menos um novo fôlego para um seu herói. Mas o embaixador americano em Lisboa preferiu aproveitar o incidente para lançar sobre a empresa portuguesa envolvida naquelas parcerias e sobre o Estado que entretanto receberia Chávez, numa breve escala entre Paris e Cuba, suspeições e avisos. Com a Espanha a servir de involuntária boleia aos interesses que ele cá representa, Alfred Hoffman Jr. declarou várias coisas de oportunidade duvidosa. Destaco apenas uma: "Parece que a Espanha e os EUA estão na lista do Diabo e Portugal está na lista dos abraçados." (Para os mais distraídos, "el Diablo" é George Bush, na pitoresca nomenclatura de Hugo Chávez).
Alfred Hoffman não é um diplomata de carreira. Não tem, dela, a componente de bisbilhotice científica, nem o activismo aventureiro, que marcam a diplomacia americana. Nem a fleumática disciplina de salão e a sólida cultura conservadora que, de Kipling a Chesterton, um embaixador inglês, no pós-guerra, era constrangido a exibir. Talvez nem tenha a barrela escolar de relações internacionais ou história universal. Saber se estica ou não estica o dedo mindinho ao soerguer uma chávena de chá é irrelevante (ou foi-se tornando irrelevante à medida que o século XX se ia aproximando do XXI). Saber se é simpático de seu natural não é tão importante como saber se foi simpático a Cheney, Rumsfeld ou Wolfovitz. Ele é um milionário que, ao que se diz, por muito ter contribuído para a campanha eleitoral, Bush quis mais tarde agraciar com um posto diplomático. Está em cobrança de lazer. Há, na sua missão, qualquer coisa de veraneio cívico. E é provavelmente um devoto, que retomará a gestão da(s) sua(s) empresa(s) logo que o parêntesis da Administração Bush se feche. Não é, por isso, de estranhar que não veja qualquer delicadeza em se ingerir nos assuntos de uma empresa ou de um Estado, aliado e soberano. A diplomacia americana, esta que agora começa a fazer as malas, teve de se ajustar ao seu tempo: vestiu o camuflado e desceu à carreira de tiro. É a diplomacia Chuck Norris, esse apolíneo e aristocrático ranger do Texas que, em defesa de qualquer pardalinho ferido de asa, parte cabeças, queixos e braços a quantos humanos com ele quiserem partilhar o pequeno ecrã.
Registava um DN desta semana terem sido recebidas muitas cartas de leitores, incomodados com a sobranceira displicência das várias declarações de Alfred Hoffman. Mas eu não sei se não haverá excesso de candura em nos darmos ao trabalho de lhe explicar o óbvio. Ou seja, que, se as imprudências da história o fizerem outra vez embaixador, terá de ter a maçada de, antes de mais, mandar varrer à morteirada o território e passar a fio de espada os habitantes. Para depois, mas só depois, poder dizer - já em casa e causa próprias - aquilo que lhe passar pela cabeça.
De resto, consta até que ele está para se ir embora. E, por surpreendente que seja, eu lamento o facto. Primeiro, porque como, pelos vistos, poucos levam totalmente a sério a desenvolta ligeireza com que faz de dono da quinta, ele tornou-se uma assombração gentil, um fantasma da casa, como o de Canterville: espreita entre os bibelots e a família enternece-se. Depois, porque ele provavelmente sairia após a saída de Bush. E assim arriscamos uma escolha idêntica, mas nova - podendo, por isso, demorar mais tempo.
«DN» de 25 de Novembro de 2007
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