ISTO É O JORNAL A FALAR COM OS SEUS BOTÕES
Reparem: a gente mete-se neste quadradinho e fala do que lhe apetece. Chegamos a escrever sobre o que nos vai na alma, acreditem, às vezes falamos de coisas simples, despretensiosas, que estão à vista de todos, está-se-mesmo-a-ver-não-está-se, outras vezes vamos às traseiras do nosso cérebro e tiramos coisas complicadas, que estão alapadas na nossa vida, e que disfarçadamente partilhamos com os outros.
Cronista de jornal tem destas coisas.
A gente escreve para os leitores, os estimados e queridos leitores que devem ser a razão de ser de quem escreve. Mas não resistimos, por vezes. Reparem: deitamo-nos nesta página e elegemos os leitores, os estimados e queridos leitores, em invisíveis psicanalistas estilo vejam-lá-esta ou então vocês-não-querem-lá-saber.
Cronista de jornal tem destas coisas.
Reparem: a gente atira as palavras ao vento como quem cospe para o ar e elas não voltam a cair-nos em cima. Podemos ficar com a dúvida legítima de saber se alguém as apanhou. Ou sermos tão convencidos que imaginamos o país inteiro a devorá-Ias. A verdade é que escrever para os leitores, estimados e queridos leitores, é escrever sem destinatário. Esta é uma questão que se deve pôr, porque assim como nós pensamos connosco próprios, que razão válida impedirá um jornal, que é um objecto inteligente, feito com cabeça, coração e muito nervo, de falar com os seus próprios botões?
Cronista de jornal tem desta coisas.
Reparem: eu, por exemplo, julgo que o jornal tem o direito de falar com os seus botões. E é isso que me inquieta, por uma razão muito simples: que pode este jornal pensar a meu respeito? E quando nos preocupamos com o parece-mal, então a gente cuida-se.
Ficamos portanto entendidos: daqui para a frente, nesta crónica, é o jornal a pensar.
Reparem: oferecem um quadradinho destes meus quadradinhos a este tipo para que ele o encha com palavras.
E ele desata a escrever, sem mais aquelas, sem eu perceber para quem. Instala-se com banca própria, e nem um «bom-dia» a oficiais do mesmo ofício.
Quando a gente se muda, para vizinhança certa de atestado de residência antigo na junta, que deve a gente fazer? Sim, que mandam as regras, as boas maneiras, que se faça? Bater à porta, cumprimentar na rua, anunciar a chegada e oferecer os préstimos. É o mínimo. E este, aqui deste quadradinho, que fez? Nada. Absolutamente nada. Ou melhor, instalou-se e começou a escrever.
Falou ele ao Teixeira Neves, inquilino antigo desta página, tirou o chapéu e agradeceu o que dele tem aprendido, do tempo do Militão Ribeiro e dos nossos dias? Desceu ao rodapé e foi àquele quadradinho do César Príncipe, um quadradinho tão pequeno que parece um quartinho em edifício de apartamento, pequenino mas limpo e independente, e apresentou-se? Bateu ele à porta do Baptista-Bastos e disse-lhe homem, então agora moramos na mesma página? Vivemos nós em Lisboa e vimos passar o fim-de-semana nesta página do Porto? Não, meus amigos. Não fez nada disso E podia ter feito mais, muito mais. Com o Baptista-Bastos, podia falar dos doces bares, discutir as questões que o Teixeira Neves levanta, a da necessidade de civilizar a Polícia, por exemplo, falar das palavras de Berlim a que se referia o Príncipe. Qual quê?! Nada. Chega aqui, escreve o que lhe dá na gana, não saúda ninguém e fica assim a falar sozinho. Uma página séria de gente honrada sem o menor respeito deste cavalheiro pelos senhores que aqui conquistaram direito de alforria.
Aqui o cronista intromete-se para escrever o que se vai seguir.
Até aqui, claro, era o jornal a falar.
Agora sou eu outra vez, para discordar.
Cronista de jornal tem destas coisas.
Reparem: se os que assinam neste jornal, os domingueiros e os dia-útil, começassem a falar uns com os outros, era capaz de ter piada. Talvez os leitores, os estimados e queridos leitores, pudessem mesmo gostar, porque tem que se aceitar que a generalidade das pessoas adora ler a correspondência dos outros. Carta aberta é invenção de desmancha-prazeres. Mas há que ter presente igualmente que os anónimos artífices que fazem um jornal, o compõem, o imprimem, o distribuem, o escrevem, desastre em Afife, corpo no Douro, aviões americanos na Líbia, talvez não gostassem. E têm razões para isso, mesmo que os leitores, estimados e queridos leitores, gostassem.
Reparem: escrevem eles, com palavras simples, coisas que dizem respeito a todos nós. E ficávamos nós para aqui diante de toda a gente a falar uns com os outros. A nossa sina não é essa. Pode ser desculpa minha, mas não é de mau pagador. O nosso destino não é esse. Ficar para aqui, a falar sozinhos, é o que nos compete.
Até que haverá leitores, estimados e queridos leitores, que dirão hoje que aquilo que me faltou esta semana foi assunto para a crónica. Podia defender-me dizendo que não senhor, que o que tenho é imaginação a mais. Mas não vou dizer nada. É melhor assim. Tenho destas coisas. Reparem: coisas de cronista de jornal.
Lisboa, 1987
Etiquetas: JL
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