18.7.09

Sapos

Por João Paulo Guerra

O voto útil é uma instituição tão defensável como o casamento de conveniência. É fazer da ida às urnas um golpe do baú.

VOTAR É A ESSÊNCIA da democracia. O voto útil é uma perversidade dos jogos de poder. É um negócio, um arranjinho, um ‘ménage': alguém empenha as suas ideias e a sua liberdade de escolha a troco de vantagens eleitorais para outrem. O próprio não ganha nada com o tráfico, mas um terceiro recolhe voto útil aqui e ali para juntar à bolsa de caça. O voto útil é profícuo para quem o recebe e um descarte para quem o dá. É menos que uma balda num jogo de cartas. Com a balda o jogador livra-se de uma carta propiciando jogadas futuras, ou dando pontos ao parceiro. Com o voto útil o eleitor desfaz-se do único trunfo que tem jogando-o debaixo de um trunfo mais alto. O voto é a arma do povo. O voto útil é o desarmamento inútil.

O voto já não representa nos tempos actuais qualquer compromisso, nem por parte do votante nem da parte do votado. Mas o voto útil não serve nem sequer para atirar à cara. "Ah votou em mim e está arrependido? Olhe, votasse no outro que ainda estaria pior". É o voto no mal menor. E de mal menor em mal menor lá vai a democracia para a menoridade e a qualidade da democracia para os mínimos. O voto útil cria a democracia utilitária. Quem vota útil na realidade não vota: dá serventia a quem daí tira vantagem. Votar útil é próprio de quem tem voto mas não tem matéria. O voto é uma manifestação individual; o voto útil é uma porção de votos arrebanhados, uma transumância da soberania para o caciquismo.

Em quadras eleitorais o que não falta é a chantagem do voto útil. Até o velho Cunhal servia o voto útil com sapos vivos. A ‘nouvelle cuisine' apenas transformou os sapos em ‘foie gras'.

«DE» de 17 de Julho de 2009

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1 Comments:

Blogger Carlos Portugal said...

Como sabemos, não existe apenas um modelo de Democracia. O carácter polissémico deste conceito verifica-se em casos como o do "centralismo democrático" soviético, da denominação da Republica DEMOCRÀTICA Alemã, das democracias parlamentares, ou das democracias de base, com inspiração trotskista, e por aí fora...
O que não deixa de ser comum a todos estes modelos é a existência do voto. Nalguns casos só votam alguns, noutro votam todos. Nalguns o voto é secreto, noutro é de braço-no-ar, etc.
Por cá assumiu-se que o modelo mais perfeito contempla o chamado voto universal, para todos os cidadãos maiores de idade, independentemente da suas condições sociais ou de alfabetização. Jà Alexandre Herculano se incomodava com esta possibilidade e considerava que seria perigoso para o próprio modelo liberal do seu tempo permitir que os analfabetos votassem. Falava Herculano daquilo que viria a acontecer em larga escala mais tarde, com os caciques arregimentadores de votos e com as chapeladas monumentais.
Há dias, um amigo falava-me de uma proposta que me deixou a pensar: dizia ele que , em vez do cartão de eleitor, devia haver uma "carta de eleitor", como a carta de condução, que só seria concedida às pessoas que se apresentassem livremente a um exame escrito onde demonstrariam ter conhecimentos mínimos de cidadania e da nossa constituição que as habilitassem a pronunciar-se sobre o futuro de todos nós, através do voto. Com a aprovação nesse teste, seria concedida a "carta de eleitor" a cada cidadão, com o subsequente direito de votar.
Como disse, fiquei a pensar nisto..

19 de julho de 2009 às 14:33  

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