8.10.11

Paris, 1959

Por Antunes Ferreira

HOJE, SÁBADO, é dia de reflexão na Madeira. Por isso, mesmo estando aqui no contenente, mesmo sendo cubano, deixo-me do caruncho e vou contar-vos uma estória verídica, passada comigo. Cos diabos, a Constituição ainda não chegou a tanto, Portugal ainda tem regiões autónomas. São só duas, mas chegam.
Fazem o obséquio de desfranzir os cenhos carregados. Retirem esses rictus descrentes das vossas faces. Desafivelem as ironias arvoradas. Foi mesmo assim, palavra que foi. Os que me conhecem e que sabem das minhas invencionices poderão torcer o nariz. Porém, desta feita, acreditem e, como diria o nosso Solnado, façam o favor de serem felizes.

Era o ano da graça de 1959. O meu amigo Manel Robalo, alentejano da melhor cepa infelizmente já falecido, acompanhava-me numa viagem a Paris. Ainda podíamos obter licença militar e com os vistos nos respectivos nos passaportes rumámos à Cidade Luz, à boleia e de comboio.
Eu já lá estivera com os meus Pais, quando tinha 14 anitos. E, no ano anterior, ou seja 1958, voltara lá com o meu tio e padrinho Armando e o meu primo Jorge. Se a primeira estada fora calma e tranquila, vigiado cuidadosamente pelos progenitores, já a segunda tivera muito mais piada, metendo Moulin Rouge, Folies Bergère e afins. Uma noite fomos jantar ao Chez Madame Artur, local privilegiado de travestis. Bons tempos e boas… folias. Foi um vê-se-te-avias. Os meus comparsas era baris, como então se dizia.
Em 1959 a situação dos dois aventureiros era outra, a condição financeira outra também era. Mas, mesmo face a algumas dificuldades, decidi ir cear com o Manel ao Chez Madame Artur, para que ele, que saíra pela primeira vez do torrão natal, visse o espectáculo. Mas, malandreco, não lhe disse que elas eram eles.
Abancámos, e fazendo das fraquezas forças, mandei vir um couscous royal, que o mancebo jamais provara e uma garrafa de Bordeaux. O prato magrebino estava realmente divino, a condizer com o nome e lá fui explicando ao Robalo que se tratava de sêmola e que os acompanhamentos eram isto e aquilo. Um pouco como o cozido à portuguesa, não desfazendo.
Já depois dos crèpes suzette, metemos dois cafés e um Napoleon e foi quando chegou à nossa mesa uma boazona, toda rendas e folhos, um par de pernões e um decote abastado. Em suma, de fazer para o trânsito, sem recurso a engarrafamentos justificativos.
Vinha convidar o Manel para uns passinhos de dança; claro que ele foi, era o À media luz do Gardel e ei-los muito agarradinhos, trocando pernas obedecendo ao ritmo e ao banduñol. Mas, de repente, o alentejano regougou um porra, porra, e veio a galope para a mesa, vamos embora, fod…, vamos embora.
Contendo o riso perguntei-lhe o que tinha acontecido. Nã me digas nada, nã me digas nada. Atão eu estava dançando com aquela gaja, começou a crescer uma coisa entre as minhas pernas, nã era a minha nem nada… Desandemos, que isto não é lugar para alentejano que se preze. E pôs umas trombas que fariam corar de inveja o elefante do Jardim Zoológico. Aquele que, a troco de uma moeda de cinco tostões tocava uma sineta.
Só na pensão lhe passou a birra. Quando lhe expliquei o que era o Chez Madame Artur e a partida que lhe pregara, saltaram gargalhadas pegadas umas às outras tal qual cerejas. Aos dezoito anos que mais havíamos de fazer?

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