A cunha
Por Maria Filomena Mónica
HESITEI muito antes de escrever este artigo, pois o que vou dizer corre o risco de soar a auto-elogio. Mas não o é: apenas pretendo demonstrar que é possível viver em Portugal sem perder a integridade. Trabalhando desde os 19 e tendo hoje 68 anos, muitas foram as ocasiões em que me foram metidos «empenhos». Enquanto ocupei o lugar de intérprete no Ministério da Saúde, as cunhas vinham sobretudo de criadas (como então eram designadas as empregadas domésticas), que me pediam para lhes arranjar empregos para os irmãos que, vivendo na aldeia, não conheciam ninguém. Era-me fácil explicar-lhes que não tinha acesso ao poder.
Foi na Universidade que as cunhas adquiriram outro peso: não foram poucas as vezes, no Conselho Cientifico do ISCTE, em que x me sussurrou que, caso não votasse favoravelmente y, x não votaria na pessoa por quem me «interessasse». Não me «interessando» eu por ninguém, a chantagem não pegava. Passados anos, troquei esta Faculdade pelo Instituto de Ciências Sociais, então dirigido pelo Prof. Sedas Nunes, um déspota iluminado de quem me tornei amiga. Estávamos quase sempre de acordo, excepto num ponto: o das admissões.
Eu votava como me apetecia, o que lhe era indiferente, pois sendo o meu voto frequentemente minoritário, conseguia sempre levar a sua a melhor. Em 1991, o Adérito, como passara a chamar-lhe, morreu. Sem o saber, tornei-me na «decana» do ICS. Não houve concurso de promoções de colegas ou de admissão de jovens investigadores – a que, por obrigação legal, tinha de presidir – para o qual não sofresse pressões. De início, a coisa dava-me vontade de rir, mas a fricção acabou por me cansar. Foi então que decidi pedir a reforma antecipada.
Na Universidade, a minha resistência às cunhas nada me custou. Outra área existe em que a questão me levanta um problema. Será que a minha integridade prejudicou ou prejudica a vida dos meus filhos? Um dos meus amigos chegou a declarar que ou eu era «estúpida» ou, alternativa brilhante, «má mãe». Outro, sem que disso tivesse sabido, meteu uma cunha para um dos meus filhos, da qual aliás nada resultou. Claro que me preocupei - e me preocupo - com o seu futuro, claro que tentei - e tento - não os prejudicar. A minha consolação é pensar que eles compreendem o motivo por que actuo desta forma.
Não sendo estúpida, sei que os poderia ter «ajudado». Neste, como noutros governos, conheço ministros e secretários de Estado, não estando para além das minhas capacidades escrever um cartão de visita semelhante ao que o ex-Ministro da Justiça, Vera Jardim, enviou a um colega de governo, interrogando-o sobre se não seria possível despachar favoravelmente um pedido do «impetrante» (por desconhecer este termo, seria forçada a usar outro) relativo a um projecto de construção de um hotel no Algarve. A reportagem sobre os empenhos que o Público publicou, a 27 de Novembro último, é deprimente. Os portugueses aceitam a cunha como natural, o que corrói a alma, mina o esforço e prejudica a economia. Infelizmente, Portugal nunca foi, nem é, um país meritocrático.
«Expresso» de 10 Dez 11
HESITEI muito antes de escrever este artigo, pois o que vou dizer corre o risco de soar a auto-elogio. Mas não o é: apenas pretendo demonstrar que é possível viver em Portugal sem perder a integridade. Trabalhando desde os 19 e tendo hoje 68 anos, muitas foram as ocasiões em que me foram metidos «empenhos». Enquanto ocupei o lugar de intérprete no Ministério da Saúde, as cunhas vinham sobretudo de criadas (como então eram designadas as empregadas domésticas), que me pediam para lhes arranjar empregos para os irmãos que, vivendo na aldeia, não conheciam ninguém. Era-me fácil explicar-lhes que não tinha acesso ao poder.
Foi na Universidade que as cunhas adquiriram outro peso: não foram poucas as vezes, no Conselho Cientifico do ISCTE, em que x me sussurrou que, caso não votasse favoravelmente y, x não votaria na pessoa por quem me «interessasse». Não me «interessando» eu por ninguém, a chantagem não pegava. Passados anos, troquei esta Faculdade pelo Instituto de Ciências Sociais, então dirigido pelo Prof. Sedas Nunes, um déspota iluminado de quem me tornei amiga. Estávamos quase sempre de acordo, excepto num ponto: o das admissões.
Eu votava como me apetecia, o que lhe era indiferente, pois sendo o meu voto frequentemente minoritário, conseguia sempre levar a sua a melhor. Em 1991, o Adérito, como passara a chamar-lhe, morreu. Sem o saber, tornei-me na «decana» do ICS. Não houve concurso de promoções de colegas ou de admissão de jovens investigadores – a que, por obrigação legal, tinha de presidir – para o qual não sofresse pressões. De início, a coisa dava-me vontade de rir, mas a fricção acabou por me cansar. Foi então que decidi pedir a reforma antecipada.
Na Universidade, a minha resistência às cunhas nada me custou. Outra área existe em que a questão me levanta um problema. Será que a minha integridade prejudicou ou prejudica a vida dos meus filhos? Um dos meus amigos chegou a declarar que ou eu era «estúpida» ou, alternativa brilhante, «má mãe». Outro, sem que disso tivesse sabido, meteu uma cunha para um dos meus filhos, da qual aliás nada resultou. Claro que me preocupei - e me preocupo - com o seu futuro, claro que tentei - e tento - não os prejudicar. A minha consolação é pensar que eles compreendem o motivo por que actuo desta forma.
Não sendo estúpida, sei que os poderia ter «ajudado». Neste, como noutros governos, conheço ministros e secretários de Estado, não estando para além das minhas capacidades escrever um cartão de visita semelhante ao que o ex-Ministro da Justiça, Vera Jardim, enviou a um colega de governo, interrogando-o sobre se não seria possível despachar favoravelmente um pedido do «impetrante» (por desconhecer este termo, seria forçada a usar outro) relativo a um projecto de construção de um hotel no Algarve. A reportagem sobre os empenhos que o Público publicou, a 27 de Novembro último, é deprimente. Os portugueses aceitam a cunha como natural, o que corrói a alma, mina o esforço e prejudica a economia. Infelizmente, Portugal nunca foi, nem é, um país meritocrático.
«Expresso» de 10 Dez 11
Etiquetas: FM
2 Comments:
Não, Portugal não é um país meritocrático. É, ao invés, um país de corruptos. Medularmente. Constitutivamente. Identitariamente.
Também eu, no meu percurso de vida, julguei ter duas vantagens protetoras: ser (materialmente) pobre, o que me impede de vir a ficar... pobre, e não ter apetite por cargos diretivos: não tendo poder, ninguém me aborreceria a pedir influências, supus. Mas, em diversos momentos, pensei no que os meus filhos poderiam vir a sofrer. E com isso sofri. A minha "safa" foi dizer-lhes, desde sempre, que têm um pai assim. O que eles aceitam bem.
E por isso, quando um dia uma colega de profissão veio à minha porta, toda "ofendida", a reclamar por não ter "dado" a nota máxima à sua filha, foi-me fácil despachá-la.
Mas, passados cerca de 15 anos, a menina a quem não beneficiei, hoje médica, ignora-me,quando passa por mim. Ela, que foi minha aluna durante 3 anos, e sempre me tratara com grande deferência.
Cá em casa até já me disseram: oxalá que não vás parar ao hospital e venhas a ser tratado por ela. Ao que, com voz firme, respondi: - se isso acontecer peço-lhe cianeto.
É por isso que não consigo ter nenhuma admiração pelo meu país, enquanto estado organizado.
Nem um bocadinho que seja.
E no entanto, espantosamente, gosto da minha terra. E adoro a minha língua (se calhar por não dominar nenhuma outra...).
E pronto, não maço mais.
Uma questão que não é de todo abordada nesta crónica, cujo tema são as cunhas metidas, é o das cunhas recebidas. Custa a acreditar que MFM não tenha sido alvo destas últimas ao longo da sua vida, mesmo que "implícitas" (baseadas, por exemplo, na sua "cotação sexual" num determinado momento), para chegar aonde chegou. Isto é tanto mais provável quento, em termos de indicadores de produtividade objectivos, o CV de MFM é bastante fraco. A investigadora tem-se dedicado sobretudo a escrever uns livritos romanceados, relacionados com a área em que trabalha, para ganhar uns cobres. Mas em termos de artigos internacionais com arbitragem, que são aqueles que qualificam cabalmente a qualidade de qualquer investigador ou professor que se preze, os indicadores são fracos. Se se fizer uma busca na Web of Science, verifica-se que não tem mais do que 2 artigos referenciados nesta base de dados. Isso parece manifestamente insuficiente para se chegar ao topo da hierarquia do ICS por mérito próprio, mesmo que houvesse uma clamorosa falta de mérito dos outros candidatos ao lugar.
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