18.6.17

Sem emenda - A liturgia democrática

Por António Barreto
Todos merecem parabéns! Os Portugueses em geral, António Costa, Mário Centeno, o governo e os partidos que o apoiam e os sindicatos: pelo que fizeram e pelo sentido de equilíbrio. Mas também a Troika, os exportadores e o governo anterior que preparou parte do caminho feito. São dias de congratulação e de lugares-comuns.

Quase todos merecem também condenação. Muitos dos que acima são referidos, mais José Sócrates e seu governo, banqueiros e ex-banqueiros, assim como ministros, uns empresários das rendas e das PPP e os autarcas dos SWAPS. Todos merecem um julgamento impiedoso por terem contribuído para a ruína de Portugal.

É falsa a percepção de que só um governo, este ou anterior, fez o que tinha a fazer. É errada a noção de que a austeridade não era necessária. E é finalmente perigosa a ideia de que o essencial está feito e já temos uma folga. Muito falta fazer, como todos sabem, mesmo os que não querem dizer.

Nas televisões, ouvimos Schäuble sobre as pretensões do governo português: “Já remeti ao Parlamento alemão o pedido de Portugal para sair do défice excessivo da UE e para adiantar o pagamento ao FMI. Estou convencido de que o Parlamento aceitará e não haverá problemas. Portugal é um caso de sucesso”! O homem estava visivelmente satisfeito. Depois, também disse umas tolices sobre Centeno e Ronaldo.

Uma pequena nota passou desapercebida: “Já remeti ao Parlamento federal…”. Pois é. O poderoso governo alemão, a potente Angela Merkel e o irascível Wolfgang Schäuble têm de fazer o caminho do calvário, ir a Berlim pedir aprovação ao Parlamento. Sabemos que será coisa fácil, neste caso. Sabemos que pode ser mera liturgia. Mas terá de ser feito. O que funciona de duas maneiras. Obriga à aprovação posterior, tal como exige negociações anteriores.

Mesmo para questões europeias, a Alemanha nunca renunciou totalmente às instituições nacionais. O Parlamento federal alemão é, por vezes, a última instituição a pronunciar-se em toda a Europa e a demonstrar que a palavra final é sempre alemã! Também o Tribunal Constitucional se ocupa de inúmeras casos de decisões constitucionais europeias e toda a gente espera pelos seus acórdãos. E não esqueçamos que frequentemente compete aos parlamentos estaduais alemães aprovar decisões europeias!

Destes factos há lições a retirar. E experiências sobre as quais meditar. É chocante verificar o facto de o Parlamento alemão ter mais poder do que o Europeu! Atrás da Comissão e do Conselho, a verdadeira estrutura parlamentar é o Bundestag! Mas o essencial desta história não é a hegemonia alemã, contra a qual podemos rosnar. O essencial deste episódio reside na ligação entre União e Estado, entre as instituições europeias e as nacionais. Os alemães não abdicaram desta relação. 

Como se sabe, em Portugal, o povo, o eleitorado e o Parlamento foram deixados à margem dos processos de integração. Não houve aprovação parlamentar de muitas etapas da integração e do desenvolvimento. Como não houve referendo sobre as grandes questões europeias. Os próprios Chefes de Estado foram sendo deixados na berma, cada vez que um governo cioso e ciumento, do PS ou do PSD, dava passos em frente. Também o Tribunal Constitucional, que poderia ter funções especiais nesta área, foi deliberadamente mantido fora de tudo.

Assim se consumou o divórcio entre Nação, Povo e Estado, por um lado, Europa e União por outro. Foi erro grave. Também cometido por outros países europeus. Agora que há crise, que há populismos e nacionalismos que ameaçam a União e a democracia, agora se percebe que o cosmopolitismo federalista foi um caminho errado. Não se sabe se ainda vamos a tempo de recriar uma liturgia democrática que implique o povo e a nação. Mas sabe-se que vale a pena perceber que a democracia tem sempre um território. Uma história. E uma cultura. Coisas que faltam na União. Mas que sobram nos seus vinte e sete membros. Ela que as saiba aproveitar e não as espezinhe. 

DN, 18 de Junho de 2017

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