23.3.18

JUNTAR BENITE E SARAMAGO

Por Joaquim Letria
Conheci  “A Historia do Cerco de Lisboa” quando esta  peça foi levada à cena pelo Teatro de Almada, já com Saramago muito debilitado. Eu conhecia muito bem o autor e o encenador, respectivamente José Saramago e Joaquim Benite. 
Ambos haviam trabalhado no “Diário de Lisboa”, onde eu próprio começara a minha vida profissional de jornalista e os nossos passos cruzaram-se também desde ali e por muito tempo em que os três partilhámos não só essa profissão mas também as afinidades políticas e culturais. 
É interessante recordar hoje como nos conhecemos então, de modo muito diferente. Fico a dever a evocação desta recordação ao Joaquim Benite e a uma recente homenagem que lhe prestaram.
Eu e o Joaquim Benite conhecemo-nos quando ambos tínhamos dez anos de idade. Não foi de longe nem de perto, ou de “olá, estás bom?”. Foi uma relação muito próxima e duradoura, com laços indestrutíveis, pelas nossas vidas fora.
O Joaquim era o 20, eu era o 21. Os nomes emparelhavam-nos e os números confirmavam no que parecia um cuidado de secretaria. Joaquim Benite (JB) número 20, Joaquim Letria (JL) número  21, na turma B do 1º ano do Liceu Passos Manuel, decorria então o ano de 1953.
Depois do Liceu, onde o Joaquim bebia as aulas de certos professores fixando os seus olhos brilhantes e irrequietos naqueles em que mais confiava e maior interesse lhe despertavam, sujeitando-os, sempre que possível, a um comentário, uma pergunta, um pedido de esclarecimento.
 Lucília Estanco Louro, que viria a ser nossa professora de História, encantava-nos e Benite mostrava-se fascinado pelo seu espírito e conhecimentos, assim como se rendia ao encanto granítico de Soledad Fernandes, professora de Ciências Naturais, mulher do Norte que quando errávamos uma resposta ou fazíamos perguntas disparatadas disparava sobre nós um “oh meu menino, ide marrar com um combóio”, frase que em vez de nos ofender, nos despertava um regozijo  indisfarçável, abertamente assumido no riso contido de 40 matulões muito infantis que eram quantos de nós enchíamos  as nossas salas de aula.
Foi assim e ali que conheci o Joaquim Benite.
José Saramago vi-o pela primeira vez na pequena e mal amanhada sala de visitas da Redacção do Diário de Lisboa, na Rua Luz Soriano, para onde a chefia me despachara a fim de atender um editor que nos procurava. Estava de pé, apoiado na pequena mesa à qual nos sentaríamos a fim de eu saber quem era aquela figura austera e longilínea, um homem de meia idade vestido de fato cinzento completo, envergando  uma imaculada camisa branca. e o que  dali buscava. Soube então chamar-se José Saramago, e era representante duma pequena editora chamada Estúdios Cor.
 Mal sabia eu que nos viríamos a reencontrar naquele mesmo jornal, onde após a cisão que ditou o afastamento do director Norberto Lopes, José Saramago viria anonimamente a ser o editorialista que diariamente assegurava a opinião do “Diário de Lisboa”em escorreitos e secos editoriais com que  substituira as “Notas do Dia” do prévio director, por determinação do administrador Lopes do Souto. Aquela sua visita tinha o propósito de solicitar uma nota crítica a um livro de poemas que  aquela editora  publicara e também pedir a melhor atenção do suplemento literário daquele jornal para as obras que entretanto iriam saír com a chancela daquela modesta editora independente.
Lembro-me que era inverno, que estávamos no fim da manhã dum dia chuvoso e que falámos de literatura e de política, muito longe de saber eu que estava fechado naquela sala com um futuro Prémio Nobel da Literatura, aliás sem que Saramago se assumisse sequer como um escritor, vestindo antes a pele dum modesto editor revelador de talentos. Recordo-me que falámos longamente não só porque a conversa era interessante mas também na esperança de que a chuva intensa parasse de cair ruidosamente sobre o vidro da clarabóia do edifício. Dali só o viria a reencontrar em almoços ocasionais num pequeno restaurante do Bairro Alto ou numa tasquinha da Madragoa.
Por essa altura, era o Joaquim Benite um brilhante redactor de “O Século”, eu um modesto repórter do Diário de Lisboa e Saramago um discreto editor e promotor de obras literárias, nunca coincidindo os passos de nós três, senão anos mais tarde, quando finalmente trabalhámos ao mesmo tempo no mesmo jornal, o “Diário de Lisboa”.
Ao Joaquim nunca perdi o paradeiro e já depois dele abandonar o jornalismo e enveredar episodicamente pela publicidade, para acabar a montar em Campolide aquela que é hoje a companhia de teatro de Almada, encontrávamo-nos com regularidade, falando disto e daquilo até quase de manhã, mesmo que fosse com um pé e o costado contra a parede dos cafés Monte Carlo, ou Monumental.
Ao José Saramago nunca deixei  de acompanhar até ao fim da sua vida, sem que eu pudesse esconder a minha admiração pelos livros que foi publicando, desde o “Levantados do Chão”, daquela obra monumental de dar Portugal  a conhecer aos Portugueses  até desembocar naquele espantoso “Memorial do Convento” e todos os outros que se lhe seguiram.   
Vi a armadilha que lhe montaram quando foi Subdirector do Diário de Notícias, estive com o Joaquim Benite quando em último recurso foi trabalhar para a empresa do Vasco Morgado e quando eu visitava Portugal, durante os anos que vivi em Londres, procurei sempre estar com o Joaquim e com o José, que também regressava de Lancelote. Gostávamos uns dos outros e apreciávamos a dignidade por que pautámos as nossas vidas.
Estivemos os três juntos quando vimos ser cometido um acto ignóbil contra Luis Francisco Rebelo, traído no fim da vida na instituição que criara por aqueles que mais ajudara.
Por tudo isto não pude ficar sem me comover ao ver o carinho com que o Joaquim tratou o José naquela noite em que meteu em cena a “História do Cerco de Lisboa” no teatro municipal de Almada que muito justamente hoje tem o seu nome. A representação do “Cerco de Lisboa” devia ser obrigatória nas escolas, tal como não devia haver um Português sem visitar o mosteiro da Batalha.
Trazer de novo esta peça a cena nos teatros de Portugal seria a melhor  forma de  homenagear José Saramago e Joaquim Benite . E a melhor  maneira de manter ambos vivos.
Publicado no Minho Digital


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2 Comments:

Blogger José Batista said...

Um texto portentoso, de sensibilidade, beleza, coerência e dignidade. Parabéns.

24 de março de 2018 às 00:10  
Blogger 500 said...

Belo texto.

24 de março de 2018 às 14:31  

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