Um morto-vivo
Por Antunes Ferreira
As estórias mirabolantes dos mortos-vivos que pelas
aldeias eram contadas à lareira em noites de trovoada e que levava as crianças
a terem maus sonhos por mais que usassem pendurados ao peito em cordões de
prata ou de ouro ou mesmo guitas signos saimãos, figas ou outros amuletos foram
agora revividas, mas ao vivo“A esses jornalistas que dizem que cruzei a linha
vermelha [da ética, digo]: quando te mostram uma fotografia e uma fotografia da
preparação do teu homicídio, apresentam-te o teu homicida e perguntam: queres
sobreviver ou queres preservar a pureza ética, moral e espiritualidade da tua
profissão [o que fazes]? És livre para escolher a ética, a pureza moral da tua
profissão. Eu escolhi a opção de sobreviver.”
Pasme-se, na Ucrânia.
Passou-se o caso com um jornalista russo de seu nome
Arkady Babchenko, crítico do novo czar Vladimir Putin e do Kremlin que ele
comanda com mão de ferro, herança que recebeu de quando era o mandão do KGB dos
tempos da URSS. Babchenko ter-se-ia dado conta de que estava na mira de
assassinos mandados de Moscovo. Sabendo então que era um homem a abater
refugiara-se na Ucrânia.
Até aqui tudo bem, ou melhor tudo mal. Isto quer dizer, a
ser verdade, que a actual Federação Russa não perdeu os “bons” hábitos que
vinham da sua antepassada próxima União Soviética. És contra? Dá-se-lhe um tiro
e ponto final. Não chateias mais. Estavam as coisas neste pé e o jornalista
crítico ainda não se sentia em segurança. Por isso começou a pensar em fugir de
novo, desta vez para o Pólo Norte, onde
se esconderia. Mas, depois, lembrou-se que o ex-espião russo Serguei Skripal
também tentou esconder-se, antes de ser envenenado, e recordou ainda o incidente
com o caso de Alexander Litvinenko, um ex-espião russo que morreu por
envenenamento com Polônio em 2006.
Estava tramado, era um homem morto, não tinha hipótese,
quando os serviços secretos ucranianos o fizeram morto. E a notícia saiu na
comunicação social com foto dele em que se viam os três orifícios das balas com
que fora executado. As redes sociais uniram-se aos media, ultrapassaram-nos o
que é cada vez mais frequente e habitual e as declarações de repúdio quanto ao
hediondo crime bem como as de solidariedade com a família do falecido
tornaram-se virais.
Eis senão quando o morto aparece perfeitamente vivo durante
uma conferência de imprensa apinhada para dar a informação de como se passara o
crime. Foi a estupefação geral. Podia lá ser? Podia, afinal não se tratava dum
caso miraculoso de ressurreição, de um Lázaro do século XXI. Foi o próprio
Babchenko que explicou com muita soma de pormenores o que se passara
acrescentado com uma sombra de anedota que passara muito tempo em frente dum
televisor a ver como os noticiário diziam que ele tinha sido um tipo porreiro.
Tinham sido os serviços secretos ucranianos com a
colaboração de excelentes maquilhadores que preparam a encenação que inclusive
meteu sangue de porco e t-shirt com os três buracos das balas que tinha matado
o jornalista. Choveram as perguntas. Se ele não se envergonhava de ter andado a
gozar com o pagode se pensava que era método que se utilizasse e por aí fora.
Arkady Babchenko respondeu: “A
esses jornalistas que dizem que cruzei a linha vermelha da ética, digo isto:
quando te mostram uma fotografia da preparação do teu homicídio, apresentam-te
o teu homicida e perguntam: queres sobreviver ou queres preservar a pureza
ética, moral e espiritualidade da tua profissão o que fazes? És livre para
escolher a ética, a pureza moral da tua profissão. Eu escolhi a opção de
sobreviver.”
Ele lá sabe as linhas com que se cozeu.
Até
ao momento em que entrou na sala repleta de jornalistas, todos acreditavam que
Babchenko estava morto. Já no hospital, desfez-se a encenação. “Lavei-me o
melhor que podia, deram-me um lençol, enrolei-me nele e depois vi as notícias
que falavam do excelente tipo que eu era”, contou. As horas seguintes foram
passadas em frente à televisão e a percorrer os sites dos principais jornais.
“Fiquei as ver as notícias do excelente tipo que eu era”, disse, com ironia.
De
volta à casa onde teria sido assassinato, o jornalista explicou que lhe foi
entregue uma t-shirt com três buracos — o correspondente aos pontos de impacto
dos três disparos que lhe teriam tirado a vida. De seguida bebeu o sangue de
porco e foi despejado mais líquido sobre o seu corpo. A seguir, a viagem de
ambulância até ao hospital, durante a qual a equipa de médicos — envolvidos na
encenação — declararam o óbito. Foi levado diretamente para a morgue e, aí, a
“ressurreição”.
O
objetivo de toda a encenação? Expor os autores de um plano para matar o
jornalista russo, exilado na Ucrânia e que já estaria informado de um plano em
marcha para concretizar o seu assassinato. Babchenko começou por recusar a
ideia, fugir para o Pólo Norte, esconder-se. Mas, depois, lembrou-se: “O
[ex-espião russo] Skripal também tentou esconder-se]”, antes de ser envenenado,
contou.
Arkady
Babchenko sobreviveu. Mas isso não poupou o jornalistas a críticas. “A esses
jornalistas que dizem que cruzei a linha vermelha [da ética, digo]: quando te
mostram uma fotografia e uma fotografia da preparação do teu homicídio,
apresentam-te o teu homicida e perguntam: queres sobreviver ou queres preservar
a pureza ética, moral e espiritualidade da tua profissão [o que fazes]? És
livre para escolher a ética, a pureza moral da tua profissão. Eu escolhi a
opção de sobreviver.”
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